sábado, 30 de junho de 2012

MEL, UMA CACHORRINHA


Lord Byron
Belinha, Elmara, Anita e Elmar



MEL, UMA CACHORRINHA

Elmar Carvalho

Quando fui morar, no início de abril de 2007, no condomínio Pingo d’Água, em Regeneração, cidade onde passei, em minha adolescência, alguns dias de férias, em companhia de meu amigo Otaviano, que nela morara alguns anos, juntamente com seu pai, João Capucho do Vale, com sua mãe, dona Consolação, e com seu irmão Augusto César, grande craque do futebol piauiense, logo me chamou a atenção a cadelinha Mel, cujo nome doce não se deve ao seu sabor, mas a sua graciosa cor. Sempre a via quentando sol, graciosamente deitada sobre um tapete, na porta do apartamento em que morava, na companhia de seus donos, o senhor Rodrigo e dona Antônia, dedicada professora de geografia e história, disciplinas de que sempre gostei, ao lado de literatura.

Minha aproximação com essa cachorrinha foi um tanto difícil, pois ela era muito ciosa de seu “pedaço”, de seu território. E eu tinha de invadi-lo, quando ia ao trabalho, ou quando voltava, em meus dois expedientes diários. Ela latia vigorosamente, quando eu passava. Felizmente, eram latidos apenas de advertência, uma vez que ela nunca tentou morder-me. Empenhei-me, então, em conquistar a sua amizade, procurando fazer-lhe alguns “agrados”, estalando os dedos e lhe dirigindo algumas palavras afetuosas. Aos poucos, ela deixou de latir e já me permitia ficar em sua proximidade, mas nunca cheguei ao ponto de lhe tocar e acariciar, como gostaria. Gradativamente, tornou-se amiga de minha pequena cadela Belinha, que é arredia, um tanto desconfiada, mas muito dócil e tímida.

Gostava de ver Mel, passeando e fazendo evoluções e piruetas no largo corredor de acesso ao condomínio. De longe ela me mirava, focando sua atenção ao levantar suas pequenas e pontiagudas orelhas, como se estivesse em guarda ou na defensiva, ante algum eventual e invisível perigo. Sua dona, a bem de sua saúde e também para lhe assegurar a descendência, providenciou o seu cruzamento com um de seus descendentes, talvez na intenção de obter algumas fidedignas cópias. Dessa providência advieram quatro filhotes, um dos quais nascido morto.

Dona Toinha providenciou-lhes uma espécie de ninho, em um cesto, no qual Mel dormia com os seus três rebentos. Era esmerada em seus cuidados de mãe, diligente em seus deveres maternos, inclusive quanto ao asseio e alimentação. Contaram-me que segurava, um a um, os filhotes em sua boca, para descê-los do cesto, a improvisada alcova ou ninho. Quando um dos filhotes punha as patinhas sobre a borda do cesto, insinuando querer entrar nele, Mel o segurava, suavemente, pelo pescoço e o punha no aconchegante reduto.

Entrei de férias e não mais tive notícias dessa família canina. No final delas, vim a Regeneração, numa viagem maçônica, oportunidade em que encontrei a dona da Mel, pois o seu marido é irmão maçônico. Perguntei pela cadelinha e suas crias, tendo ela me dito que estavam bem, com os filhotes ficando tão espertos quanto a mãe.

Retornei de minhas férias e logo ao chegar tive uma forte comoção, um verdadeiro choque emocional, ao saber que Mel havia morrido. Senti uma profunda tristeza e um grande vazio em meu coração. Dona Toinha contou-me como foi o desfecho da vida de Mel. Gostaria de ter o talento de Platão, ao contar a sublime e bela morte de Sócrates, para narrar como foi a morte dessa encantadora e valente cachorrinha. Dona Toinha saíra para visitar uma vizinha, do outro lado da rua. Uma pessoa, inadvertidamente, ao sair, não fechou o portão. Mel, sempre ativa e inquieta, e talvez saudosa de sua dona, atravessou a rua para encontrá-la.

Depois de fazer a “festa” de praxe, abanando o rabinho em cumprimento, começou a brincar na rua, correndo e volteando de um lado para outro, buliçosa que era. Latiu para uns cachorros grandes, e os pôs em fuga. Claro que a fuga devia ser simulada, uma brincadeira dos cães, para aumentar-lhe a auto-estima. Certamente Mel, em sua bravura sem arrogância, achava que os pusera para correr de verdade. Em suas evoluções na rua, verdadeiras coreografias caninas, expunha-se aos perigos do trânsito, em virtude da imprudência e brutalidade dos apressados pilotos e motoristas dos estressantes dias atuais.

De repente, num átimo, que não se mede e não se espera, uma motocicleta, em alucinante disparada, passa por cima da pequenina Mel. A mimosa cadelinha, inteiriçada de dor cruciante, contudo aparentemente perfeita, sem um ferimento sequer, talvez pensando nos filhotes, talvez no desespero de uma dor insuportável, ainda se ergueu, e caminhou em direção a sua casa, tentando atravessar a rua. Mas caiu em seguida. Ergueu-se novamente, em heróico esforço, em busca dos filhos. Tornou a cair, transida de dor, para outra vez se levantar. Tombou, ainda outra vez. E ainda outra vez se levantou, sabe Deus a que custo e a quanto sofrimento.

Porém não resistiu, e, logo nos primeiros passos, voltou a cair para não mais se levantar. Sua dona a ergueu, traspassadas, ambas, de intensa dor; a cadelinha, creio, com dores físicas e sentimentais, pensando nos filhotes, que deixaria para sempre, e a sua dona possuída por forte comoção e tristeza. Levou-a, com muito cuidado e carinho, para o apartamento, em que Mel ainda resistiu por alguns minutos, para depois exalar o seu último suspiro, cercada pelos seus rebentos.

Dois filhotes se encontram, hoje, com parentes da professora Toinha. Cresceram em graciosidade e em esperteza. Todo dia, no Pingo d’ Água, vejo Juquinha, negro como noite sem luar, negro como asa de graúna, para fazer poética intertextualização. Embora negro, como luzidio e ambulante carvão, é uma cópia autêntica de sua mãe. Ao vê-lo, sinto uma grande saudade da Mel, bela e brava cadelinha, que tanto admirei, e que tanto me encantou em sua beleza sem vaidade, em sua bravura sem insolência, como disse o bardo Lord Byron, no epitáfio de seu cão.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Flagrante cinematográfico do Gervásio Castro

Texto e charge: Gervásio Castro


Inspirado nas fantasias eróticas de Bertolucci, "O Último Tango Em Paris" resultou numa grande polêmica internacional, provocando vários níveis de censura ao redor do mundo. Maria Schneider veio a declarar que fazer o filme foi o único arrependimento de sua vida e Brando disse que jamais faria outro trabalho como aquele.

A(R)FOGO, LIVO DE SANGUE E MEDO



Teresinka Pereira
Escritora e crítica literária

Com o livro “A(R)FOGO” (Romance da Revolução), que Francisco Miguel de Moura* acaba de publicar, sinto-me incapaz de fazer uma resenha crítica por todas as razões óbvias e ocultas que me possam existir. A primeira delas é que eu fugi com medo da tal pseudo “revolução” (golpe de estado, ditadura militar) e vim em exílio voluntário aos Estados Unidos, criando a maior contradição vigente em minha vida. Até hoje há quem pergunte: Por que ir para os Estados Unidos, o país promotor dos golpes de estado e ditaduras militares no mundo, e não para Cuba, o país da verdadeira revolução, como todos os revolucionários que se prezam?  E minha resposta é que ir a Cuba naquela época era uma questão de importância no cenário político. Eu era tão insignificante politicamente e tão jovem que minha inscrição na “Juventude Comunista” foi considerada, por sugestão de meu pai à burocracia do DOPS, como uma coincidência de nomes. Com isso, eu consegui “visa” para vir aos Estados Unidos. Nunca tive a valentia e a força de caráter de pessoas como a Dilma Roussef, de ficar e lutar, sofrer torturas e sobreviver sem o medo que tanto nos humilha e degrada.

A ditadura no Brasil foi uma grande marcha-a-ré na história da democracia brasileira. Mas esta opinião,que alguns de nós compartilhamos, anda bastante desmoralizada pela nova geração de brasileiros que desconhecem esta parte da história e pelos militares e seus fãs, que apontam a atual corrupção política do Brasil como culpa do governo revolucionário. Para mim, a única falta que tem o governo atual e o passado é a impunidade. Os milicos torturadores deveriam estar todos na cadeia e não bafejando seu “saudosismo” da época em que, como dizia o Chico Buarque na sua canção, em vez de chamar a polícia quando era atacado, era melhor chamar o ladrão.

Por isto é que estou qualificada para escrever sobre este livro. Voltei ao Brasil depois da ditadura e já não tinha família. Todo mundo morreu de tristeza e talvez de medo.  Terminou a ditadura e eu tinha passado a maior parte de minha vida aqui nos Estados Unidos e formado uma família que não era brasileira. Eu mesma já tinha que afirmar que era “brasileira de nascimento e de coração”... Por isto é que, lendo o livro de Chico Miguel, não entendo bem a estrutura do mesmo, nem as expressões, nem a ironia política ou as diretas como: “O resto é silêncio pago, / senador sem voto / re-formas, ré-pressões, re-voluções / ré – ré – ré... (provações)” in “Filho da moça”.

O poema “Os cupins subversivos” me faz mal e me faz pensar se esse cinismo poético nele expresso me toca, porque me consideram parte da corrupção: “e nós lhes bebemos o sangue: / pensamento de cupim / de sangue envenenado”. A base que tenho para entender esses versos é da poesia escrita nos Estados Unidos na mesma época da ditadura pelos membros ou os penetras da Beat Generation, como o poeta Charles Bukowski, nascido na Alemanha e morto de leucemia em Los Angeles, em 1994. Bukowski era um elemento contra-cultural, meio anarquista, que se identificava com os trabalhadores da rua, os mendigos e as prostitutas. Ainda exerce influência nos poetas estadunidenses rebeldes, principalmente os que são contra a educação e o estudo. Enquanto a Beat Generation entrava em decadência, a meu ver, depois de terminada a guerra, e suas passeatas nas ruas de New York não tinham já razão de ser; eles ficaram um pouco desfocados e se entregaram às drogas e ao cinismo poético, contaminando a geração que os admirava.

Quando eu leio os versos de “No país do “não pode”: “feio povo faminto, ferido, / na esquina do país do cruzeiro, / país do “não pode” / déficits, dólares, tevês / escores. / o tempores, o mores!”“, “não é só a rima que me distancia do meu país, é porque minha linguagem se sente menina e não alcanço a entender a estrutura poético-política. Meu compatrício Chico Miguel me parece cada vez mais com Bukowski, quando este, numa carta para a amiga (dele), Maria Penfold, se pronunciava sedento de realidades: “Quando eu acabo de ler um poema, não quero sentir seda ou casca de cebola seca nas minhas mãos, quero sentir sangue!” “Chico Miguel diz em “Com a pátria na mão”: “Nosso coração nos chama / nosso peito arfa. / Há rios de sangue abaixo / do rio grande”.

Aí eu começo a entender porque esse poema tem que ver com a América (do Norte) e com sua falsificada “Estátua da Liberdade”, na entrada de New York, cidade tão ambicionada por certos brasileiros... E também tem que ver com a cerca criminosa construída entre os estados do sul dos Estados Unidos, ou seja: Flórida, Texas, New México, Arizona e Califórnia (os quais foram roubados do México) para impedir que os imigrantes latino-americanos passem para o Norte. Gosto especialmente da menção do Rio Grande, o rio da fronteira por onde os “mojados” (molhados) cruzam para escapar à vigilância da patrulha fronteiriça. Aí então me meto no livro com a mente toda. E aprovo a intenção, o desafio e o desfecho poético da lição positiva de esperança, porque eu termino com esses versos na mão: “Então é construir, / sem cansar, sem parar, / mudando o diapasão quando for preciso”. É bom sentir que ao fim e ao cabo, o companheiro Chico Miguel escreveu esse livro histórico visando “mudar o diapasão”, porque agora, mais que nunca é preciso.

*Moura, Francisco Miguel de: A(R)FOGO (Romance da Revolução), Jundiaí, Paco Editorial: 2010.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

UM CASO DE ADULTÉRIO




28 de junho   Diário Incontínuo

UM CASO DE ADULTÉRIO

Elmar Carvalho

Estava conversando, faz poucos dias, com um amigo sobre assuntos diversos e aleatórios, quando, por associação de ideias, ele me contou um caso interessante de que ele fora protagonista. Serei fiel à sua narrativa, porém omitirei nomes de pessoas e lugares, de sorte a dificultar a identificação dos fatos que me foram revelados como sendo verdadeiros.

A trama se passou em outro estado, onde residiu esse meu amigo. Quando ele tinha apenas 21 ou 22 anos de idade, e morava numa cidade interiorana, fixou residência em um condomínio. Certo dia, sobraçava ele algumas fitas de filmes, à esperava do elevador, quando se aproximou uma deslumbrante mulher casada, que ele vira algumas vezes. A senhora o cumprimentou, e perguntou se os filmes eram bons. O rapaz, um tanto acanhado, respondeu que não sabia, vez que ainda não os vira.

Um ou dois dias depois, o jovem ouviu tocar a campainha. Ao abrir a porta do apartamento, para sua total surpresa, deparou-se com a bela e jovem senhora que lhe perguntara sobre os filmes. Ela estava com uma roupa, que mais realçava que escondia as suas atraentes curvas. Sem rodeios, disse que viera assistir aos filmes com o meu amigo. Para não entrar em enfadonhas delongas e nem fazer desnecessários suspenses e mistérios, que isso deixarei para os romancistas e contistas, direi logo que eles não apenas viram filmes, mas fizeram uma verdadeira encenação cinematográfica pornô.

A mulher, talvez para se justificar, revelou que era casada com o delegado regional do município, com o qual tinha um filho; que ele era homossexual, e que se casara apenas para manter as aparências; que frequentemente viajava para a capital do estado, onde era sócio de uma casa comercial. Era por ocasião dessas viagens que ele deveria encontrar-se com o seu parceiro. Ele lhe exigira, na época das núpcias, que ela levasse uma vida discreta, e jamais se envolvesse em escândalos, mas sem lhe revelar, contudo, a sua condição de gay.

A mulher começou a amiudar os encontros, chegando ao cúmulo de procurar o amante nos bares em que ele se encontrava a beber com amigos, pelo que este lhe repreendeu a atitude. Começou a fazer cenas de ciúme, o que causou preocupação ao rapaz. Por tais motivos, o meu amigo, em busca de conselho, contou o caso a um seu amigo, já cinquentão e casado. Este aproveitou a oportunidade para, sem a menor cerimônia ou constrangimento, pedir ao confidente, que lhe conseguisse a irmã da adúltera, que por sinal era outro “pitéu”, quase ainda uma ninfeta, não menos bela e nem menos sensual.

A irmã da mulher do xerife, graças à intermediação desta, passou a ter um caso com o velho dom Juan. E na parte que diz respeito a meu amigo, a história, se não teve um final feliz, ao menos não teve um epílogo trágico, com tiros, mortes e suicídio. Simplesmente, ele se mudou para outra cidade, e não mais reviu a bela, sensual e ardente mulher do senhor delegado regional de... Melhor pingar o ponto final e ser discreto, para o bem de todos e felicidade geral dos envolvidos.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A MORTE DA CADELA DO POETA


Poeta Alcenor, na charge de Fernando di Castro
Elmar e Anita



27 de junho   Diário Incontínuo


A MORTE DA CADELA DO POETA

Elmar Carvalho

De manhã cedo, recebi um comovente e-mail do Alcenor Candeira Filho e de sua esposa Ana Lúcia (Aninha), dando-me a notícia de que a sua cadelinha Bela havia morrido. Alcenor, como todos sabemos, é um dos maiores poetas e críticos da Literatura Piauiense, além de ser um dos mais respeitados professores dessa disciplina. Cultivamos uma amizade de três décadas e meia, que remonta aos meus primórdios parnaibanos.

O seu bilhete eletrônico foi vazado nos seguintes termos:
Eu e Ana Lúcia acabamos de reler o seu comovente texto "Anita". Acabo de reler também o famoso capítulo sobre a morte da cachorra Baleia, em "Vidas Secas".
O interesse neste momento pela releitura desses dois grandes textos se deve à recente morte de nossa cadelinha "Bela". Aos seis anos de idade. Problema de plaqueta baixa e crise hemorrágica. A saudade é imensa. A leitura que acabamos de fazer calou fundo na nossa alma, fazendo um enorme bem.”

Triste com a notícia da morte da cachorrinha, mas contente com as palavras que ele disse sobre meu texto, enviei-lhe a seguinte resposta internética:
Lamento muito a morte de sua cadelinha. Fiquei comovido com suas palavras sobre o texto a respeito da Anita. Posso dizer que foi um dos maiores elogios que um autor piauiense poderia receber. Li um texto, no Navegação de Cabotagem, em que o Jorge Amado disse que deixou de criar animais para não mais sofrer com a morte deles. É um dilema, que a gente tem de resolver. Criar ou não criar. A tristeza com a morte deles é grande. Fica um grande vazio, preenchido apenas pela dor.”

O meu texto, referido pelo poeta Alcenor, titulado Anita, encontra-se disponível nos mares internetianos. Tem comovido alguns leitores. Tenho notícias de lágrimas derramadas por algumas leitoras mais sensíveis. Nele eu falo da beleza inefável e fofa de nossa cachorra, de suas graças, amuos e chiliques. E sobretudo falo de um envenenamento que ela sofreu, em que eu e minha família pensamos que ela fosse morrer, o que nos causou preocupações e sofrimentos.

Felizmente ela continua viva, embora seja hoje uma anciã. Por vezes temos que suportar os seus achaques e enjoos. Mas ela nos compensa e cativa com a sua graça e afeição. Creio que após as mortes da Anita e da Belinha, que espero demorem muito ainda, não mais iremos criar esses animais, para não termos de amargar a dor da perda, assim como fizeram Jorge Amado e Zélia Gattai. Quanto ao texto de Graciliano Ramos, dispensa comentários. É uma das maiores páginas em prosa da literatura brasileira e universal. Embora seja o capítulo de um romance, pode ser lido como um conto, de forma independente. Texto magnífico, merece ser lido ou relido por quem acaso me esteja honrando com a sua leitura.

Em vários poemas, crônicas e contos, muitos publicados na grande rede, tenho tratado dos sofrimentos e maus-tratos que o ser humano vem causando aos animais. Já escrevi sobre cachorros, jumentos, urubus, bem-te-vis, sabiás, rolinhas, mucuras, preguiças, e até sobre lobisomens, mistura mítica de lobo e de homem. Os jumentos tornaram-se, digamos, obsoletos, e hoje vagam, abandonados, pelas beiras das estradas, a morrer e a matar em acidentes de trânsito. Tenho dito que enquanto o homem maltratar os bichos, ele terá muito ainda que evoluir espiritualmente. Talvez seja mais do que o momento de se criar a Lei Áurea da libertação dos animais, os nossos irmãos menores.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Flagrante do Gervásio Castro

Texto e charge: Gervásio Castro


Alguém sabe me dizer onde foi parar o futebol do Neymar?

Aldo, esportista insone




Fonseca Neto

Outro dia esteve em Teresina o deputado federal Aldo Rebelo, ministro do Esporte. Em coletiva, fez uma alusão à sua primeira vinda a esta terra, quando “o Osmar Júnior era presidente do DCE da Ufpi”.

Vou fazer aqui um reparo à recordação do valoroso camarada, não para pegar em seu pé alagoano, mas para homenageá-lo. Entendo que ele não tem a obrigação de recordar, em detalhes, datas e pessoas com as quais partilhou experiências em sua tão já extensa caminhada militante.

Aldo veio aqui pela primeira vez em 1980; o presidente do DCE/Ufpi era o alinhavador desta memória - fui presidente dessa entidade no mandato livre de maio de 1980 a maio de 1981. No mandato anterior, 79/80, o DCE ainda vinculado à burocracia ufpiana, já nosso grupo político fora eleito e o dirigira – quando, por decisão do Cepex, fui compulsoriamente substituído pelo vice, o estudante de Medicina, Luís “Paulista”.

Em maio de 79 fomos a Salvador para o Congresso de reconstrução da UNE e lá conhecemos Aldo, já uma liderança proeminente, meses depois escolhido em eleições diretas para Secretário Geral da UNE, pela chapa Mutirão, gestão 79/80, à frente o estudante Rui César Costa Silva, presidente do DCE da Ufba. Aproximando-se o final desse mandato, num contexto de racha na Diretoria, para as eleições de novembro de 1980, saíram duas candidaturas: a do Aldo, chapa Viração, e outra, encabeçada por Marcos Galvão, o “Kalói”, chapa Voz Ativa, esta apoiada pelo presidente Ruy. Ganhou a Viração, do Aldo. E foi a articulação dessa chapa que o trouxe aqui pela primeira vez. Esse racha era, antes de tudo, um racha no PCdoB, do ponto de vista de sua inserção no Emeé: parte de nossa própria Diretoria, aqui, ficou então com Kalói e outra com o Aldo. E é bom recordar que esse debate, rachas e eleições acaloradas, ocorreram sobre uma fogueira em labaredas vivas no mundo da esquerda, traduzida na criação, naquele ano, do Partido dos Trabalhadores. Conjuntura de clara fragilização da Ditadura, economia em frangalhos e a grande imprensa empresarial abrindo algum espaço à contestação do regime.

Força hegemônica no DCE do Piauí, os estudantes organizados no GEG (Grupo de Estudos Gerais, atuando na esfera eleitoral como espécie de “corrente”, a Travessia), ainda em 78, estabelecemos ligações com o DCE da Bahia, na gestão de Valdélio Silva, da tendência Viração, aos quais seguiríamos até o Congresso de Salvador e com quem votaríamos as propostas em deliberação. Fora nossa principal referência nesses passos iniciais do DCE/Ufpi. Vandilson Costa, um dedicado militante comunista, esteve conosco mais de uma vez nos atos preparatórios do Congresso.

Nessa primeira vinda do Aldo ele foi meu hóspede. E em minha mente um episódio ilustrativo. Ao deixarmos a sede do DCE, entre dez e onze da noite, rumo à minha casa, onde jantaríamos, pediu passássemos numa Banca para comprar o Estadão, porque, disse-me, não conseguiria dormir sem ler o Caderno de Esportes. Acelerei rumo à praça Pedro II, aventurando encontrar aberta a revistaria do Joel. Estava fechada, mas ainda com as frestas acesas, sinal de gente dentro do quiosque. Chamei mais de uma vez e um atendente nada humorado respondeu dizendo para voltar no dia seguinte. Expliquei e passei a imploração ao próprio Aldo, que o convenceu a abrir o balcão, entregar o exemplar e receber o pagamento. Tocamos para casa. Lá, jantamos, o Aldo foi apresentado ao quarto em que dormiria, pedindo para ficar na sala, lendo, até mais tarde. De fato, ficou. Pelas duas e meia p. três da madrugada, minha mãe percebeu que ele não deitara e então foi pedir que o fizesse. Disse-me depois que lera o dito Caderno, o jornal todo e mais alguma coisa.

Depois contei o fato aos companheiros e todos ficamos pasmos com essa paixão dele por futebol. Para nós, um jovem comunista não poderia se preocupar com isso, coisa de alienado, trauma da geração do Tri, evento da propaganda Médici. Ficou essa boa lição de Rebelo, agora significada em sua atuação à frente do Esporte brasileiro.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Carta a um jovem crítico



Cunha e Silva Filho

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012

Meu caro jovem crítico:

Ao transpormos um determinada fase etária que não nos permite mais pensar trinta ou mais anos para diante, é tempo mais do que aprazado para poder ter pelo menos a dignidade da velhice a fim de sugerirmos conselhos que, em geral, pouco são seguidos à risca. Cada um, de uma forma ou de outra, consegue encontrar um caminho, ou não, por uma circunstância ou outra.

Mas, vejamos no seu caso. Você me pede não um conselho apenas, mas uma orientação dessas que os escritores mais velhos , alguns, pelo menos, gostam de passar às gerações mais novas.

A primeira coisa que você deve ter em  mente não é declarar-se ser crítico de moto próprio de forma narcisista, vaidosa, sem o mínimo de autocrítica (perdoe-me o trocadilho, que pode soar aos seus ouvidos um tanto pejorativamente) antes que alguém mais experiente lhe possa afirmar diretamente ou por terceiros. É óbvio que você tem, nos seus verdes anos, já um bom discernimento para saber relativamente o que pretende fazer com o vasto campo literário da crítica,  dividido e fracionado em múltiplos aspectos, em muitas correntes, antigas e modernas.Atividade literária esta que, de vez em quando, se proclama morta ou, no mínimo, em crise.

Ninguém, que eu saiba, pelo menos no caso da literatura brasileira, de repente se auto-proclamou: “sou um crítico literário!” Acredito que alguém que tenha porventura feito isso, já se arrependeu há muitos anos e talvez tenha-se debandado para outro gênero (ou gêneros)  que, em tempo, descobriu ser mais conveniente ao seu talento.

Por falar de grande experiência de crítico, além de talento para este ofício, lembro-me, agora, de uma autor de um utilíssimo livro sobre correspondência oficial, que escrevera há muito tempo uma carta ao velho e agora esquecido crítico Agripino Grieco, solicitando-lhe opinião apreciativa a respeito da obra de Camilo Castelo Branco, notável ficcionista romântico português, famoso por obras como Amor de perdição, Amor de salvação, um escritor que deixou uma produção numerosa no campo da ficção. A resposta de Agripino foi, como se podia esperar, de um grande leitor da sua espécie: uma lição admiravelmente resumida do que pensava da obra camiliana, dos seus valores estéticos da sua posição de alto relevo na literatura portuguesa.

A atividade crítica, assim como todas as outras, mesmo as não literárias, pressupõe uma condição fundamental: a formação intelectual. Esta é seu pilar, sem o qual não pode existir o crítico na acepção rigorosa do termo. Alguém, porém, pode argumentar: “E quando não havia o que hoje denominamos formação em Letras, ou mesmo um modalidade já em vigor em algumas universidades brasileiras, que é o curso de estudos de crítica literária? Ora, na falta das universidades, o seguro seria começar pelos filósofos gregos que estudaram questões de altíssima relevância aos estudos literarios, como Sócrates (469 a.C); Platão (427 a. C.), nos diálogos socráticos, discute a doutrina do seu mestre, na obra Íon, em que estuda a inspiração poética; Protágoras, no qual se discutem a virtude e o conhecimento, considerando ambos a mesma coisa; Geórgias, tratando da retórica; Crátilo, ocupando-se da linguagem; Maior, a respeito da beleza. Este último, segundo estudiosos, é de autenticidade duvidosa, assim como Íon,Menexeno, Hípias Maior, Epinômides; .Aristóteles (384 a. C.), com a sua Retórica e a sua Poética.

A par da contribuição gigantesca daqueles filósofos antigos, nenhum passo significativo pode ser dado rumo às atualizações do saber teórico-literário,  como  a intimidadae obras-chave em toda a história da literatura universal não podem ser desconsideradas na formação do jovem crítico. Seu trabalho consiste em combinar um série de área afins e de área complementares: a literatura, a história, a geografia,  a filosofia, a socióloga, a estatística,, os estudos de línguas modernas (espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, numa seleção mínima), e os de línguas clássicas, o grego e o latim.

Dentre as obras de enorme contribuição ao repertório do crítico, destacaríamos, por autores, numa citação sumária e assistemática, as seguintes: as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, as obras de Milton, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Samuel Taylor Coleridge, Nietzsche, Hegel, Locke, Santo Agostinho, Bacon, Wittgenstein, Maquiavel, Marx, as obras de Homero, de Sêneca, de Aristófanes, de Goethe, Shakespeare, Dante, Petrarca, Milton,, Samuel Taylor Coleridge, Miguel Cervantes de Saavedra, Schiller, Gil Vicente, Stendhal, Camões, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud,  Sterne, Poe, Fernando Pessoa, Hölderlin, Thomas Mann, Flaubert, Balsac, Victor Hugo, Dostoiévski, Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Borges, Ezra Pound, Edmund Wilson, T.S. Elliot, Faulkner, dos filósofos, ou antropólogos, ou críticos, ou teóricos, ou linguistas, ou pensadores: Boileau, Saint-Beuve, Taine, Bennedetto Croce, I. A. Richards, Sartre, Marcuse, Heidegger, Freud, Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Adorno, W. Benjamin, Saussure, Horkheimer, Spitzer, Dámaso Alonso, Carlos Bousoño, Vossler, Roman Jakobson, Wolfang Kayser, Pierce, Chomski, Todorov, Julia Kristeva, Lukács, Auerbach, Edmund Wilson, David Daiches,  Mihail Bakhtin, Raymond Williams, Renné Welleck, Austin Warren,  Habermas, entre tantos outros de primeira plana.

As citações acima servem apenas para mostrar o quanto é espinhosa e complexa a atividade crítica, a sua preparação acadêmica no sentido de o crítico também exercer a docência superior combinada com o exercício da critica ou do ensaio.Outras vezes, o crítico, sem ser especificamente um professor universitário, por uma natural vocação e amor aos estudos de obras e às questões teóricas, pode com sucesso construir uma obra no terreno da crítica, da historiografia literária e da teoria literária. Exemplo disso no Brasil são muitos, como Agripino Grieco, Fausto Cunha, Assis Brasil. São o que poderíamos chamar de self-made critics , críticos independentes, surgidos fora dos campi universitários.

Meu caro aspirante a crítico,  você sabe que o ato crítico é espinhoso, muitas vezes injusto para seu praticante e exige uma continuidade de atualização e  de leituras de autores em quantidade sem paralelo que vêm surgindo, sobretudo nos últimos anos. Tanto isso é verdade que muitos críticos tendem a se especializar no gênero da poesia e, em segundo plano, na ficção, no teatro. E podemos radicalizar ainda mais, muitos críticos se tornam especialistas em um autor, ou num período literário.Outros ainda, por razões de múltipos talentos, além de críticos, são contistas, romancistas, poetas, ensaístas, historiadores, dramaturgos, crítico de artes.

Uma outra questão problemática e de grande complexidade é a escolha da linha do pensamento crítico, tomada de decisão intelectual que está muito associada à formação das leituras teóricas do crítico e das influências sofridas por ele no tempo e no espaço. Cada aspirante a crítico seria, por assim dizer, produto do seu tempo no que tange ao pensamento crítico que vai lhe nortear a produção .Ao longo da história da crítica literária ocidental, diversas correntes foram surgindo, as quais remontam aos períodos mais fecundos do pensamento helênico e latino, num espectro tão abrangente que Carmelo M. Bonet chamou, em sintese,  de crítica dogmático-hedonista, passando por Platão, Aristóteles e vindo atingir até à época de Cervantes. Para simplificar, nomeemos as mais influentes correntes do pensamento crítico ocidental a partir do século XIX:



1) “Crítica compreensiva;”(Mme. De Staël);

2) determinismo (Taine);

3) crítica biográfica (Saint-Beuve);

4) crítica evolucionista (Brunetière);

5) impressionismo ( Anatole France);

6) crítica expressionista (influenciada pelas ideias de Benedetto Croce);

7) formalismo russo (Roman Jakobson, Boris Eichenbaum e Victor Shklovski);

8) o new critcism, de procedência anglo-americana, divulgado por Afrânio Coutinho e aplicando entre nós a abordagem da obra literária considerando sobretudo o seu estudo nos seus elementos intrínsecos dissociados de componentes extra-literários, procurando ainda na obra a sua autonomia de forma de linguagem, no estilo, nos aspectos formais,  i.e., em elementos como personagens, espaço, tempo, enredo, ponto de vista, metáfora, símbolos, imagens, símiles, mitos, métrica, rimas, ritmos, enfim,  as partes de sua  estrutura linguística em estado de tensão com o padoxo, a ironia, a ambiguidade, utilizando-se de uma retórica objetiva e afastada de conceitos de natureza impressionista, subjetivista como sensações, relação entre autor e obra (biografismo) ou seja, a obra analisada como se fosse um objeto científico, mas visando a fins estéticos;

9)  fenomenologia (Edmund Husserl). Outras versões da Fenomenologia:

10) reader-response criticism (Stanley Fish, Wolfgang Iser);

11) estetica da recepção (Hans Robert Jauss);

12) crítica estruturalista (Roland Barthes, Jonathan Culler);

13) pós-estrututuralista (Barthes, Lacan, e Foucault);

14) desconstrução ( Jacques Derrida);

15) teoria feminista ( Elaine Showwater, Jacqueline Rose, Mary Jacobus, Kaja Silverman);

16) psicanálise (Jacque Lacan através da base teórica vinda de Freud);

17) crítica marxista (Karl Marx, Engels);

18) novo historicismo/ materialismo cultural ( Raymond Williams, Catherine Balsey, Jonthan Dollimore, Alan Sinfield e Peter Stallybrass, Stephen Greenblatt, Louis Montrose);

20) teoria pós-colonial (Edward Said);

21) discurso de minorias (promoveu-se dentro das instituições dos EUA os estudos da escrita negra, latina, asiático-americana, nativo-americana;

22) queer theory



. É óbvio, caro jovem, que outras correntes e métodos críticos contemporâneos ou mesmo mais remotos não foram  referidos aqui por completo. Contudo, o jovem crítico, a partir de suas próprias leituras e cruzamentos de leituras teóricas,  irá delas tomar conhecimento ou, quem sabe, poderá fazer parte de sua abordagem de escolha.



 Você, desejoso de estabelecer familiaridade mais profunda com a atividade da crítica literária, não deve negligenciar que, na França, além dos mais conhecidos movimentos teóricos surgidos nos últimos anos, e divulgados para outros países europeus e para as  Américas, a cultura francesa voltada para a análise crítica de autores e para os aspectos teóricos envolvidos, oferece um grande espectro de abordagens muitas vezes pouco conhecidas em nosso país e, para isso, cumpre estar atento para algumas obras que deem boa fundamentação sobre o assunto, como, para ilustrar, podemos ler em A crítica literária de Jérôme Roger e até mesmo um livrinho antigo, La critique littéraire, de J.C. Carloni e Jean C. Filloux, o primeiro traz um Quadro Cronológico, mencionando, em duas colunas; na primeira obras literárias, cuja citação começa com Homero e, na segunda, valiosos títulos de obras de crítica.. Na primeira obra e na segunda, constam bibliografia sobre crítica literária.

Conjugando o conhecimento crítico importado e a atividade crítica no país desde suas origens até à contemporaneidade, o jovem crítico, por esforço próprio e pela formação acadêmico-erudita adquirida, dentro ou fora da universidade, há de conseguir desbravar o seu próprio método de trabalho que, geralmente, seguirá algumas das  correntes em voga da crítica contemporânea ou mesmo  tornar eclético seu  pensamento crítico  Com sua abordagem preferida, e assim fizeram todos os seus predecessores na sua época, com as exceções dos críticos de formação independente, que preferiram - vamos dizer - criar os seus próprios fundamentos teóricos de interpretação das obra. A recepção dos resultados do seu fazer crítico-analítico é que em geral vai receber a classificação e o reconhecimento , ou não,  de seus pares  nesse  gênero. Ficou célebre a frase "crítico ao Norte!", de Alceu Amoroso Lima quando da publicação de Dimensões I (1958), de Eduarado Portella, primeiro  volume de  crítica literária   de uma série de três com este título.Sua estreia se dera com  Aspectos  de la poesía brasileña contemporánea (Madrid, 1953).

Fazendo uma comparação simples, o jovem crítico semelha a um cantor no início da carreira, quando elege um cantor famoso como seu modelo. Seria esta uma fase de imitação até natural, a qual, à medida que passa o tempo, o jovem cantor vai adquirindo voz própria, encontrando finalmente seu caminho no espaço musical.O crítico já experiente sofreu influências, teve suas preferências por certos crítico e isso pode-se fazer notar até nos seus escritos de início de atividade. É que não podemos fugir à nossa formação, às nossas leituras teóricas com as quais mais nos identificamos, embora isso não signifique que possa haver evolução, ou melhor, mudança de direção nos métodos e correntes do pensamento crítico, assim como pode haver mesmo interrupção da atividade de um crítico, o que ocorreu com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que da crítica militante do Modernismo, passou à produção de pensador e líder católico, no que muito o ajudou a sua grande erudição e os variados campos do conhecimento que dominava bem e com grande talento e capacidade de polígrafo. É bem verdade que, no Jornal do Brasil, de quando em quando, vinha ele com sólidos artigos focalizando questões de crítica e teoria literária.

Porém, é de bom alvitre que não se deixe levar pela mera opinião de terceiros, uma vez que, no campo da judicatura crítica, o que vai prevalecer são dois aspectos básicos: a formação cultural do crítico e sua personalidade literária, sua capacidade de ser original e criativo e o nível de seus estudos e pesquisas. Por outro lado, ninguém há de moldá-lo nos seus objetivos traçados, em suas ideias com intenção renovadora de ir a fundo no fenômeno estético. Só o tempo dirá até que profundidade alcançaram  seus estudos, os autores pesquisados e seus silêncios sobre outros autores, assim como sua contribuição aos estudos realizados durante a sua vida útil na função espinhosa e muitas vezes ingrata e mal compreendida de crítico. Será entendido por alguns, mal interpretado por outros e até desprezado por outros mais. A história da crítica literária em nosso país está apinhada de casos dessa natureza, de polêmica homéricas, de diatribes, de inimizades e, por incrível que pareça, de reconciliações.

O seu maior compromisso, em questões de crítica, estará vinculado à sua visão de abordar obras e temas literários e de fazê-lo com a maior seriedade possível em se tratando de uma atividade intelectual que agrada a egos, causa melindres, provoca frustração, despeito, inveja e até ódio. Essa dimensão pessoal, personalista e destruidora não deve fazer parte do exercício da crítica, mas seres humanos que somos, uma vez ou outra caímos  na fraqueza das vaidades e a literatura, neste caso, por instante, perde seu brilho e o sortilégio de seu renovada sensação do mistério da obra literária.

Espero, prezado jovem, que alguma diretriz ou um pouco de minha experiência venha a contribuir para, se assim for de sua vontade, vir fazer parte dos que, como condição primeira de gênero de escrita e de atividade intelectual, fizeram a opção pela leitura de obras como possibilidades de aproximação interpretativa e de fazer outros melhor entenderem a grandiosidade da literatura e de sua importância para uma visão mais densa da vida, dos homens e do mundo.

Permito-me, quebrando o protocolo dos gêneros, finalizar esta carta, com uma bibliografia(vide abaixo) em respeito aos autores citados e ao mesmo lhe desejo um fecundo caminho de militância crítica.

Com os cumprimentos do

Cunha e Silva Filho


Referência biblliográfica:

AMOROSO LIMA, Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira, 3 ed. ver. e aumentada. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969.

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984.

.BONET, Camelo. Crítica literária. Trad. de Liz Aparecido Caruzo. Editora Mestre Jou, 1969.

CARLONI, j.c. et Flloux, Jean-C. La critique littéraire. 5ème édition revue. Paris: Presse Universitaires de France, 1966.

CULLER, Teoria literária: uma introdução. Trad. e notas de Sandra Guardini T. Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções  Culturais Ltda, 1999.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma orientação. Trad. de Waltensir Dutra. Martins Fontes: São Paulo, 1997.

________________. Thre function of criticism. – from the Spectator to Post-Structuralism. Thetford, Norkolk: Thetford Press Ltd., 1984.

GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. 2nd edition. 3rd impression. Essex, England: Longman York Press.1994.
COSTA  LIMA, Luiz (org.). 2 vols. Teoria da literatura em suas fontes.2 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992.

MONDIN, Battista. Curso de filosofia – os filósofos do Ocidente. Vol. 1. 2. Ed São Paulo: Edições Paulina, 1981.

ROGER, Jerome. A crítica literária. Trad. de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

SOUSA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 3 ed. São Paulo^Ática, Col. Princípios, 1990.


domingo, 24 de junho de 2012

Antologia do Netto


Texto e charge: João de Deus Netto


DÍLSON LAGES


O poeta nasceu em Barras do Marataoã (PI), aos 14 de dezembro de 1973. É membro da Academia de Letras do Vale do Longá, da UBE (PI), do Círculo de Psicanálise do Piauí e da Associação dos Escritores do Amazonas. Autor de + Hum-poemas (1995), Colméia de Concreto (1997), Os Olhos do Silêncio (1999), O Sabor dos Sentidos (2001), A Metáfora em Textos Dissertativos (2001 – duas edições) e co-autor de Cabeceiras - a marcha das mudanças (1996). Possui no prelo Como ensinar poesia. Participa regularmente da vida de alternativos literários de diversos estados.
Dílson Lages Monteiro é especialista em língua portuguesa e, atualmente, ministra aulas de Leitura e Produção de Textos no ensino médio e universitário, em Teresina-PI, onde dirige o Laboratório de Redação Professor Dílson Lages (espaço em que atua junto a vestibulandos e orienta oficinas de criação literária).
SAIBA MAIS: http://www.dilsonlages.com.br/

sábado, 23 de junho de 2012

Vila da Manga



Reginaldo Miranda
Presidente da Academia Piauiense de Letras

À margem direita do rio Parnaíba, na foz do riacho da Uíca, fica a povoação da Manga, outrora vila de mesmo nome. É velha localidade piauiense. Do outro lado do Parnaíba existe povoação de igual nome, uma como desdobramento da outra.

De fato, as tropas da Casa da Torre em sua expansão de conquista povoaram com seus currais o sul do Piauí, mais tarde iniciando a conquista dos sertões dos Pastos Bons e ribeira das Balsas, do outro lado do Parnaíba. Para realizar essa expansão buscaram ponto seguro de travessia no caudaloso rio Parnaíba. Então, foi a quatorze quilômetros abaixo da foz do Gurguéia, que encontraram essa passagem. E a fim de descansarem os rebanhos para enfrentarem a travessia do rio, construíram pequeno cercado ou curral de faxina, também conhecido por manga, daí o nome que passou a ser conhecida a localidade. E a travessia ficou conhecida por Passagem da Manga. Pelo menos é essa a versão que temos ouvido por aqueles sertões.

Mais tarde, suas terras foram ocupadas com fazenda, cujo proprietário construiu uma capela que já existia em 1829(Pereira da Costa). Em 1839, quando tem curso a Balaiada, já era uma tímida povoação, tendo sido ponto de partida dos Balaios. Em 1857, sediava um distrito de paz. E tendo prosperado um pouco, foi elevada a freguesia sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição da Uhica da Manga, pela Lei Provincial nº 502, de 7 de agosto de 1860. A capela da povoação foi reconstruída mais tarde pelo major Joaquim Pereira da Silva e sua mulher dona Maria Joaquina da Silva, fazendeiros na região. E assumiu como seu vigário o Pe. Antonio Marques dos Reis (ainda encontrava-se em 1878).

Foi elevada à categoria de vila e município conservando os mesmos limites da freguesia, pela Lei Provincial nº 543, de 20 de julho de 1864, desmembrando-se de Jerumenha e instalada oficialmente em 8 de maio de 1868. Por essa mesma lei foi criado um tabelionato do público, judicial e notas, cumulativamente com os ofícios de escrivão de órfãos, provedorias, capelas e resíduos, cível, crime e mais anexos. Possuía duas cadeiras de instrução primária, sendo uma para o sexo masculino criada pela Resolução n.º 495, de 29.09.1859, e outra para o sexo feminino criada pela Resolução n.º 593, de 06.08.1866. Suas posturas municipais foram instituídas através das resoluções n.º 685, de 05.01.1870, n.º 863, de 11.06.1874 e n.º 943, de 16.05.1877. Em 1873, na presidência de Franklin de Menezes Dória, houve uma tentativa de se levar até seu porto a navegação no rio Parnaíba, tendo, porém, a embarcação encalhado na foz do rio Itaueira.

O território da Manga era vasto e englobava todo o vale do Prata, Itaueira e até os limites com Amarante e Oeiras. A lei supracitada que criou a freguesia(1860) estabeleceu o seguinte território: “começará do lugar denominado Porto das Almas, à margem do rio Parnaíba, seguindo a linha leste a compreender as fazendas Caraíbas, Flores, Buriti Grande, Prata do Meio, Riacho do Mato e Santa Teresa, no rio Gurguéia. Daí seguindo a Sudeste compreenderá as fazendas Várzea, S. João, Riacho, Uhica, S. Francisco, S. Lourenço, Olho d’Água e Sapuru. Descendo pelo rio Itaueira compreenderá as fazendas e lugares de um e outro lado, que pertenciam à freguesia de Jerumenha, inclusive as denominadas Conceição, Jacaré, Calçadinho e Papagaio. Seguindo da fazenda do Mato a linha do Noroeste compreenderá os sítios Pau-de-leite, Carneiro e Caldeirões, à margem do Parnaíba”. Essa linha demarcatória foi alterada pela Resolução n.º 610, de 14.10.1867, que modificou a fronteira com Jerumenha, estabelecendo os seguintes limites: “os lugares denominados Papagaio, Capuame, Morrinhos, Várzea e Santa Teresa, pertencentes à freguesia da Manga servirão de limites pelo lado de NE. O rio Gurguéia desde Santa Teresa até a Barra do Esfolado, e toda esta ribeira às suas vertentes no lugar denominado ‘Cabeça d’Água’, ficam pertencendo pela margem esquerda à freguesia da Manga. Da Cabeça d’Água seguirá a linha divisória em rumo de O. até a passagem denominada Malícias, na ribeira da Estiva, e daí em direção a S. Diogo até encontrar os limites da freguesia do Bom Jesus”. Novamente, esse limite com Jerumenha foi alterado pela Resolução n.º 712, de 30.08.1870, que em verdadeiro efeito repristinatório, declarou em vigor a lei n.º 502, de 07.08.1860, restabelecendo, assim, os anteriores limites. E, por fim, pela Resolução n.º 779, de 04.12.1872, devolveu à freguesia de Jerumenha as localidades Riacho do Mato e Prata do Meio, até então da Manga.

Portaria de 05.05.1873, do governo provincial, criava uma marca de gado para cada municipalidade do Piauí, a fim de identificar a origem do rebanho e dificultar descaminhos. Manga recebeu a letra “R”. E dessa forma seguia a Manga como freguesia e municipalidade piauiense.

Contudo, o progresso foi lento, sobressaindo em seu termo uma das fazendas do Real Fisco, onde o governo provincial criou o Estabelecimento Rural São Pedro de Alcântara, sob o comando inicial do agrônomo Francisco Parentes. E, por essa razão, foi a sede municipal da Manga transferida para essa nova localidade pela Lei Provincial n.º 144, de 08.07.1897, suprimindo, assim, sua autonomia político-administrativa.

Porém, a antiga vila da Manga sobrevive como uma povoação e balneário ainda existente no Município de Floriano. É a terra natal do saudoso desembargador e senador da República, Esmaragdo de Freitas e Sousa, que foi figura de escol na sociedade piauiense.

(Artigo publicado no jornal Meio Norte, caderno arte & fest, página Academia, edição de 19.09.2008).

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Flagrante do Gervásio Castro

Texto e charge: Gervásio Castro


O homenageado do 29º Salão de Humor do Piauí, que acontece entre os dias 26 e 30 de junho, na Praça Pedro II em Teresina,tem 46 anos de pintura, mais de quatro mil obras espalhadas por todo o mundo e já fez cerca de 20 exposições fora do país,pelos EUA e Europa: NONATO OLIVEIRA, o gênio que coloriu o Piauí. 


Violência, crimes hediondos e modernidade no Brasil



Cunha e Silva Filho

Não há como negar que o país, não obstante os avanços conquistados em alguns níveis sociais, sobretudo das classes rotuladas de desfavorecidas, os muito pobres e os que saíram da extrema pobreza, a inserção da sociedade civil no circuito do consumismo trazido pelo capitalismo desenfreado das três últimas décadas e em ritmo crescente teve forte influência em mudanças de padrões de comportamento do indivíduo, sobretudo oriundos das nações mais adiantadas do planeta e, em particular, dos EUA via diversas formas de mídia, tendo à frente a internet e os outros meios de comunicação hoje amplamente interconectados, de tal sorte que a televisão, o celular, os mais diversos gadgets que dia a dia estão invadem nosso país, todos eles visando a dar acesso de informações em nível interplanetário a seus usuários. São mudanças radicais e imediatas que os mais velhos não conseguem acompanhar nem mesmo assimilar.

Um país como nosso, que ainda mantém alto índice de assimetrias sociais, culturais, econômicas e de baixo nível de escolaridade e de qualidade de formação ainda muito desfavorável em relação às nações adiantadas, dificilmente consegue o equilíbrio necessário no inter-relacionamento entre seus habitantes, divididos que estão pelo fosso enorme das mencionadas assimetrias. Em outras palavras, o país, em algumas áreas de sua estrutura sócio-cultural, mostra-se em plena sintonia com o mundo avançado na tecnologia e, em outros domínios da vida social e da estrutura do Estado, bastante atrasado, como na saúde pública,  na segurança,  nos transportes.
O Brasil, enquanto funciona burocraticamente com serviços de alta tecnologia para movimentar parte de sua máquina do Estado, por outro lado sofre a defasagem de oferta de qualidade na educação fundamental e média de nossa escolas públicas, e de parte da privada. Temos universidades com quadros de professores de alta competência e ao mesmo tempo nos faltam infraestrtura de condições de trabalho, plano de carreira que não sofra com o tempo achatamento salarial, para que seus mestres possam transferir conhecimento e desenvolver melhor nível de pesquisa  inicial (iniciação científica)  na graduação  e em nível  de pós-graduação, além de sobre os mestres recaírem problemas que interferem profundamente na formação dos estudantes, como salários ainda não compatíveis para a relevância da missão dos docentes.

Antigamente, costumava-se usar a expressão “os dois brasis’, i.e., o Sul, adiantado e o Norte, atrasado. Isso não cabe mais hoje. As realidades se misturam e, tanto uma região quanto outra apresentavam e ainda apresentam disparidades em setores múltiplos, quer dizer, o arcaico tanto pode se divisar em alguma parte de regiões mais adiantadas, quanto o moderno em regiões subdesenvolvidas. Tudo depende do setor e das condições de cada região.

Bem, todo esse pano de fundo, serve neste artigo para ressaltar duras realidades por que está passando o nosso país. A modernidade de que falo aqui está conexionada com componentes de vida que surgem de várias situações de vida social, as quais estão ligadas a valores materiais e morais, tendo como epicentro  o sistema capitalista gerador simultaneamente de formas hedonistas de vida e de individualismo que, por sua vez, propiciou a   banalização  da vida em  variadas formas de convivência,  seja  interpessoal, de amizade,  de emoções,  mesmo   diante da dor alheia.  Vivemos uma fase crucial  do "eu sozinho", do descarte de quem  não nos pode oferecer  nada, sobretudo materialmente.
. Vivemos a desenfreada corrida da competição em direção ao  supremo valor atribuído aos que supostamente mais são dotados na ordem de seleção natural da pessoa humana -  espécie de neoevolucionismo darwiniano  na sociedade material-virtual.

Isso que os ingleses chamam de “rat race”, pela própria inerência de sua natureza competitiva, é profundamente desumano e aniquila qualquer resquício de natureza sentimental e emocional. O que impulsiona seus seguidores, se assim podemos dizer, obter sucesso e chegar ao pódio.

Só vale para os seus adeptos e admiradores se o competidor chegar primeiro, mostrar que é melhor, que sabe mais, que tem mais competência. Não existe um meio termo e a plateia que o aplaude só tem olhos para ele. O resto se torna escória, figura raté como diria o grande crítico social Lima Barreto (1881-1922) em Os Bruzundangas (1922) que estou relendo com prazer, uma caricatura do país da Velha e nascente República e um prognóstico de um Brasil “país do futuro,” com tantas semelhanças ainda em vigor para vergonha de nossa decantada “modernidade”

Ninguém quer saber dos decaídos da vida. A sociedade das celebridades e do idiotia do efêmero – e isso vale para o espaço universal das sociedades civis afluentes e ditas civilizadas. - que está na moda,  só vale  para os vitoriosos, os quais parecem os únicos em geral  a "merecerem " “ prêmios.

Não é de admirar que, homens e mulheres, cada qual a seu modo, sendo cercados por todos os lados por essa aparente e ilusória realidade real-virtual, tentarão buscar, por todos os meios, sobretudo os ilícitos, os criminosos, os  hediondos, os expedientes da força que atos indignos passam a exercer num país de impunidade de leis anacrônicas.  E  por isso mesmo é que falo de assimetrias de realidades sociais brasileiras,  que  permeiam   a intimidade de  lares mal construídos. Lares  construídos sobre  alicerces da imoralidade, do interesse, da ausência do amor. Lares construídos   sem a cumplicidade sadia e duradoura, daí resultando  a previsibilidade  dos mais abomináveis crimes que o ser humano  possa  cometer.
Doente está a nossa sociedade, campeã  da impunidade, da certeza de  que pode matar e não ser punida de acordo com a gravidade do delito, sociedade que se encontra num emaranhado de leis e de brechas legais que fazem de um assassino de trânsito, de um assaltante desalmado, de um monstro, homem ou mulher, um bicho capaz de esquartejar um ser humano, matar uma crianças, um adultos, uma velho.

Quem acompanha a crônica policial no país sabe que, dia após dia, está em níveis insuportáveis o cotidiano da sociedade brasileira. Nem seria preciso e urgente a pena de morte para os grandes crimes. Basta que o criminoso cumpra a sentença do juiz na inteireza de sua duração legal, sem brechas, nem progressões,nem tampouco o desmoralizado  conceito de “bom comportamento,” que não passa de uma hipocrisia legal.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

BALULA, UM MESTRE DA ARTE DE DECLAMAR



21 de junho

BALULA, UM MESTRE DA ARTE DE DECLAMAR

Elmar Carvalho

Nos meus anos de juventude parnaibana, em várias infucas etílico-culturais, me encontrei por acaso, se é que o acaso existe, com o Balula. Era ele um tipo de pele clara, alourado, de olhos esverdeados ou azuis, já um tanto encorpado nessa época, mas não gordo. Sua voz era forte, quase estentórea, vibrante, tendente ao grave, mas de timbre levemente metálico, o que parecia emprestar maior clareza às palavras que pronunciava.

Conquanto não fosse considerado um erudito, tinha invejável cultura geral, sobretudo em literatura, e mais especificamente na relativa aos grandes mestres da poesia. Sem dúvida era um causeur. Parecia detentor de eterna alegria, quase como se ainda fosse um entusiasmado adolescente. Possuía o dom de atrair a atenção. Gostava de declamar e falava de forma rítmica, vibrante, quase como se estivesse a discursar.

Pelo modo alegre e entusiasmado como conversava, denotava ter muita energia e vivacidade. Sorvia a cerveja com elegância e sobriedade, e não como um bebedor qualquer. Nunca o vi a choramingar nem a debulhar amargura, rancores ou tristezas. Era um entusiasta da vida e da arte, e portanto propagava alegria e sentimentos positivos.

Na primeira vez em que o encontrei, fez a interpretação de um poema que eu não conhecia, embora fosse eu, já então, um bom conhecedor da poesia brasileira, pois já lera vários poetas e antologias, sabendo de cor vários poemas, que recitava, apesar de não ter a maestria de Balula. Segundo Vicente de Paula Araújo Silva (Potência), esse texto era As mãos de Eurídice, monólogo de Pedro Bloch, um dos mais encenados da literatura brasileira.

Com expressões corporal e facial apropriadas, com sua bonita e límpida voz, Balula não apenas recitava o texto; na verdade, como um lídimo ator, o interpretava com emoção e de forma convincente, como se estivesse vivenciando aquela experiência trágica. Antes do início da declamação, ele discorria brevemente sobre o poeta e fazia uma notável contextualização do poema, provocando uma espécie de suspense, com o que mais ainda nos despertava o interesse. O final da encenação, que consistia no seu ponto mais dramático, era quando ele dizia que iria quebrar a taça da amargura – e literalmente quebrava a mais transparente e bela taça que existisse no recinto. Todos nos emocionávamos, e o aplaudíamos com muito entusiasmo.

Não sei se é verdade ou se é apenas uma “folclorização” de algum espírito jocoso, de forte imaginação anedótica, mas consta que em certa comemoração familiar o marido presenteara a mulher com uma rara coleção de taças de cristal, de alto preço. O Balula, como era de praxe, ao finalizar o monólogo, espatifou dramaticamente uma das taças, tornando incompleta a coleção. O marido, um tanto colérico, quis tomar satisfação com o nosso poeta, mas foi dissuadido de fazê-lo, por um dos filhos do casal, naturalmente por reconhecer a alta qualidade da performance balulística.

Em outra ocasião, uma sábia dona de casa, de forma precavida, já conhecedora da arte interpretativa do mestre, colocou na mesa várias taças, mas de plástico. Foi, talvez, o seu momento de maior frustração quando, nessa ocasião, ao encerrar apoteoticamente a mise en scene, tentou por várias vezes espatifar “a taça da amargura”, sem consegui-lo. O vaso empinava, mas se mantinha teimosamente íntegro.

Foi, igualmente, com frustração e tristeza, que, ao entardecer melancólico do dia 9 deste mês, por telefone, recebi do professor Antônio Gallas Pimentel a notícia de que a taça da vida de Balula fora quebrada. Certamente a essência espiritual de seu conteúdo foi recolhida por Deus. Em algum dos páramos celestiais, Francisco das Chagas Veras, seu nome no registro civil, haverá de erguer a taça da beatitude e da alegria plena, sem jaça.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

CASAMENTO E OUTRAS LEMBRANÇAS

Os noivos Jamylle e Jorge Daniel
Os noivos e seus pais, vendo-se: Alfredo, Sued, Jamylle, Jorge, Antônio das Chagas e Maria do Rosário


20 de junho   Diário Incontínuo


CASAMENTO E OUTRAS LEMBRANÇAS


Elmar Carvalho


Meses atrás, o advogado da Eletrobrás/Piauí Alfredo da Paz Neto, um amigo de várias décadas, ao telefone, pediu-me para celebrar o casamento de sua filha. Prontifiquei-me a desempenhar esse ofício, que foi realizado neste sábado. Revi alguns amigos, meus e deles. Entre outros, ali estavam o senhor Silvério, sua mulher Maria Dalva e a filha do casal, Rosário. Silvério foi por muitos anos administrador da empresa Marc Jacob em Campo Maior. Conversamos sobre o fastígio e queda dessa tradicional loja de departamento, bem como de suas concorrentes Casa Inglesa e Casa Almendra, ambas já inativas há várias décadas.

Conversei, também, com o Gregório Paranaguá da Paz, filho do tenente Jaime da Paz, operoso e probo prefeito de Campo Maior, e de dona Mariema, digna mestra de várias gerações de campomaiorenses. Gregório é engenheiro e um dos diretores da Eletrobrás/Piauí. Ainda entretive rápida prática com o Milton Higino, gerente do BNB em Água Branca, e que presidiu o Comercial Atlético Clube, que já conquistou o campeonato piauiense, e vem fazendo uma boa campanha no certame do corrente ano. Gostou da referência que fiz ao saudoso atacante Edgar Pinto, em minha prédica casamenteira. Vi também o Diogo da Paz, verdadeiro alquimista ao improvisar um coquetel, ou ao bolar, por mero esporte, uma iguaria exótica.

No meu “sermão”, citando Rui Barbosa, que dissera ser a pátria uma família amplificada, eu disse que a sociedade é um somatório das famílias, e que, se entendemos que a sociedade não está bem ou que esteja violenta, também estamos a admitir que a família não está saudável, vez que aquela é apenas uma amplificação desta. Portanto, adverti que os pais devem se esforçar para bem criar os filhos, através do exemplo e da disciplina, para que eles, desde bem crianças, conheçam os seus limites e as regras básicas de convivência, para que não venham a se tornar adultos intolerantes e tendentes a não aceitar os limites da lei, da ética e das normas sociais para uma boa convivência.

Aduzi que se uma criança é acostumada a ter os seus caprichos e chiliques satisfeitos, a sair de casa no momento em que bem entende, a voltar na hora que lhe der na telha, a não cumprir seus deveres escolares, quando o pai ou a mãe quiser lhes impor horários e modos de comportamento, por volta dos dez/doze anos, talvez já seja tarde demais, porquanto esse garoto já está habituado à plena liberdade e indisciplina. Por conseguinte, esses controles, disciplina e orientações devem ser ministrados nos primeiros anos de vida, para que a criança tenha uma noção clara do que pode ou não pode fazer, e que existe o poder familiar de seu pai e de sua mãe.

Entre outros lugares comuns, repetidos em esponsais, adverti os noivos dos desgastes naturais que a convivência muitas vezes produz. Por isso, lhes disse que deviam exercitar sempre o perdão e a tolerância, pois todos temos a nossa quota de defeitos. Enfrentei a perícopa bíblica de que a mulher teria sido extraída de um osso da costela de Adão, fazendo referência à parte recitada de uma música antiga de Silvinho, em que é dito que a mulher foi formada desse osso para que ela não se sentisse superior nem inferior ao homem; para que fosse efetivamente sua companheira. Acrescenta os versos que ela foi formada de um local próximo ao coração do homem, para que este a amasse e a protegesse, o que nos dias das patrulhas do “politicamente correto” implica em dizer que a recíproca deve ser verdadeira. E deve mesmo, convenhamos.

Após fazer essas e outras considerações e advertências, que são de praxe, e que julguei ser meu dever funcional fazê-las, disse que eles através do amor e da compreensão venceriam todas essas mazelas e percalços, mesmo porque o noivo, sendo coerente com o seu nome – Jorge Daniel – seria um santo guerreiro, o são Jorge, vencedor do temível dragão da Capadócia, ou o profeta Daniel, destemido pela fé inabalável em Deus, que não se acovardou quando foi jogado na cova dos leões. Por outro lado, falei que o nome da noiva – Jamylle – significa beleza plena, e que ela, tendo beleza plena, certamente teria beleza espiritual, ou seja, seria uma mulher virtuosa. Por conseguinte, saberão ambos, com as suas qualidades, superar as vicissitudes que a vida oferece, e que nos servem de advertência e exemplo, para que nos aperfeiçoemos, como deve ser o desiderato maior de todos nós.

Ao cabo dessas palavras mais sérias, mais severas, proclamei que aquele era um momento de alegria, um momento festivo e de congraçamento dos esposos com seus pais, familiares e amigos, antes de partirem para a constituição de seu próprio lar. Lembrei-me de um saudoso amigo, o Balula, recentemente falecido, que em outras eras, quando nas alegres libações da juventude, gostava de recitar um poema, em cujo final apoteótico, falava que iria quebrar a taça da amargura, e literalmente espatifava a mais rica taça de cristal da casa em que se encontrava, para o mais efusivo aplauso de seus ouvintes, e para a profunda tristeza da dona do lar, que ficava com a sua coleção desfalcada.

Asseverei, porém, que ali estávamos para celebrar a felicidade, tal como nas bodas de Caná, em que o próprio Cristo, a pedido de sua mãe, operou o seu primeiro milagre, transformando alquimisticamente água em vinho da melhor qualidade, para que aquela festa esponsalícia não perdesse o brilho, com a falta dessa substância do espírito. E pedi que erguêssemos a taça da ventura, e não a da amargura, como no poema melodramático do repertório do Balula.