OUTRO ENTARDECER EM AMARANTE
Elmar Carvalho
Na véspera das eleições gerais,
estando tudo absolutamente tranquilo, fui contemplar o pôr-do-sol amarantino.
Ao passar pela avenida Desembargador Amaral, em demanda do cais do rio
Parnaíba, vi umas pessoas sentadas na calçada do Museu do Divino, criado e
mantido por Marcelino Leal Barroso de Carvalho, que foi meu professor no curso
de Direito da UFPI. Graças ao seu empenho e recurso financeiro, foi reativada a
antiga Festa do Divino, com sua alegria, cores, músicas, insígnias e
estandarte, cujo cortejo percorre os vetustos casarões e ruas de Amarante.
Tempos atrás, dentro da
programação desse folguedo religioso, tive a satisfação de ter o meu livro Lira
dos Cinqüentanos lançado na grande sala de um dos solares da cidade. Hoje,
Marcelino é ele o diretor geral do Instituto Camillo Filho, que ajudou a fundar,
ao lado do professor Charles Silveira, de quem também fui aluno. Fui
cumprimentado pelo professor Melquíades. Pedi-lhe transmitisse ao seu irmão
Marcelino as minhas considerações. Conduzido pelo defensor público Ivanovick
Pinheiro, que viera disputar uma partida de futebol em Amarante, fui postar-me
em meu observatório, no Pelicano.
Meia hora depois, passou pelo
cais, onde eu me encontrava, o professor Melquíades, que fora dar uma volta
pela cidade, acompanhado pela família. Ele, na condição de exímio violonista,
participa da parte musical da Festa do Divino. Mas não é só virtuose do violão,
o que já seria muito; toca também instrumento de sopro, órgão e piano.
Portanto, é literalmente um homem de sete instrumentos. Formado em Filosofia,
tem especialização em História da Arte e Arquitetura. Ante a sua pós-graduação,
Melquíades tem escrito alguns textos historiográficos, e passou, evidentemente,
a interessar-se mais pela História do Piauí, e de Amarante, em particular.
Em sua passagem pela beira-rio,
entretivemos uma rápida conversa. Disse-me ele que as velhas carrancas, que
guarneciam a proa das embarcações do Parnaíba, antecederam, ao que tudo indica,
as do São Francisco. Existem informações sobre esse amuleto em livros do
estrangeiro Ludwig Schweenhagen, que o homem simples chamava jocosa e
onomatopeicamente de “chove n’água”, e da professora Mafalda Balduíno. É vero
que alguns intelectuais torcem o nariz com relação a certas teses do primeiro,
como a de que os fenícios estiveram no Piauí, especialmente em Pedra do Sal,
que seria uma espécie de porto desses antigos navegantes, e Sete Cidades, cujas
caprichosas formações rochosas, esculpidas pelo tempo, o vento e a chuva, devem
ter incendiado a fértil imaginação do austríaco.
Segundo me contou Melquíades
Leal, as carrancas do Parnaíba tinham um artefato de couro de boi, algo
semelhante a duas asas laterais, que dispunham de um mecanismo que lhes dava
movimento. Os indígenas, que perlongavam a sinuosidade do Velho Monge, direcionavam
suas flechas contra a carranca, e não contra os seus passageiros e tripulantes,
por ser um alvo mais à vista e porque aparentava conduzir o barco. Eram as
carrancas diabólicas.
Acrescentou o mestre, que um
desses barcos, com o seu artefato artesanal, foi atingido por um raio
fulminante, na barra do Saco, que fica poucos quilômetros a montante da barra
do Canindé, fazendo a embarcação incendiar e mergulhar para sempre nas águas do
Parnaíba, onde ainda se encontra. Certamente, o episódio fantástico e
cinematográfico deve ter atiçado o imaginário dos ribeirinhos, com mais um fato
histórico a se confundir com a mitologia cabocla. Após essa rápida conversa, o
professor Melquíades se retirou e eu voltei a observar o rio e a serrania
distante, que já começava a sofrer os influxos do sol poente.
De onde eu estava, pude ver, no
lado maranhense, uns jovens a jogar futebol na coroa do rio. Lembrei-me de meus
tempos de peladeiro e de minha adolescência, em que eu pensava ingenuamente que
essa quadra demoraria a passar. Na juventude não pensamos na morte e nem na
velhice, a não ser de relance, quase como se fôssemos imortais. As luzes
mortiças da cidade de São Francisco começaram a acender, e logo os jogadores
foram embora. Os poucos banhistas deram seus últimos mergulhos e também se
retiraram.
Já o céu estava raiado do
vermelho crepuscular. As serras se apagavam pouco a pouco, até imergirem na
noite que tudo envolveu. Essa bela hora solene, propícia à meditação e a
pensamentos mais elevados, em que o silêncio ou uma música suave em surdina seria
o complemento ideal, foi brutalmente esmagada pela zoada ensurdecedora de um
inoportuno aparelho de som, com suas tuítas e amplificadores embutidos num
automóvel. Depois de importunar a todos, com a sua música ruim e estridente, o
som foi desligado.
Pensei que iria ter um justo e
merecido sossego. Ledo engano. O carro deu marcha à ré, e veio para mais perto
de onde eu estava. Então começou o martírio de um interminável estribilho, em
que a cantora, com sua voz de taquara rachada, repetia à exaustão: “não aguento
mais”, “não aguento mais”... Não sei o que ela não aguentava mais, pois não
tinha o menor interesse em sua letra horrorosa. Agora, quem não aguentava mais
aquela bagunça sonora era eu.
Apesar disso, foi gratificante
contemplar, mais uma vez, o belo e bucólico entardecer de Amarante. É um
magnífico espetáculo, em que a natureza se esmera e se excede em nos
prodigalizar graciosamente.
24 de novembro de 2010
Muito bem, Dr. Elmar, referências por demais merecidas.
ResponderExcluirBucólico entardecer
ResponderExcluirCrônica para ser relida sempre, porque se atualiza a cada entardecer na memória de quem é ou gosta de Amarante. O lirismo na descrição da paisagem natural e humana, evidentemente, constitui privilégio de um grande poeta. Amarante respira e inspira poesia! É um céu sob outro céu! Marcelino Barroso, seu admirador e amigo.
ResponderExcluirNão me alongarei no comentário. Só paro para que feflitamos: os Fenícios não deixaram registros em desenhos e escritos, demonstrando a presença deles por nossas bandas?! Quem nega este fato histórico, o faz com fundamento em quê?
ResponderExcluirNa minha infância e adolescência, muitas vezes, pude vivenciar tardes bucólicas no interior de São João do Piauí: Poço do Rego e Jacaré, onde moravam tios meus.
Eram momentos em que eu me encontrava no Paraíso, entre Montanhas, leite do peito da vaca e o degustar cuscuz com leite e milho-com-feijão, cozidos por minha tia Pompília.
Wilton Porto
Muito obrigado, estimados amigos, pelo acesso e amáveis comentários.
ResponderExcluirAmarante sempre lembrada na elegância dos escritos de Elmar. Um homem sentimental que cria o seu mundo dentro de outro mundo e este fica mais rico com sua visão insaciável de ternura e amor por está Terra tão abençoada. Fico maravilhado com a sua dedicado, nobre poeta.
ResponderExcluirComentei (Virgílio Queiroz)
ResponderExcluirVeja se descobre o comentário presente nos Anônimos.
Obrigado, caro Virgílio, por seu acesso e comentário.
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