quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A VIOLÊNCIA NA FICÇÃO DE MILTON BORGES


A VIOLÊNCIA NA FICÇÃO DE MILTON BORGES

Cunha e Silva Filho

               Só conhecia  o autor,  Milton  Borges,   dos comentários gerais e breves que lhe faz  o poeta, historiador, literário e  ficcionista Francisco Miguel de Moura na sua indispensável   obra  Literatura  do Piauí.(Teresina: EDUFPI, 2 edição revista, ampliada e atualizada, 2013, 387 p).

               O historiador me informa  sobre   a produção  do ficcionista Milton  Borges, sobre o  prêmio  “Fontes Ibiapina”  que lhe foi concedido pela FUNDAC (Fundação Cultural do Piauí, pelos romances  Destino sobre rodas (2002) e Vale dos mal amados, este último   inédito, segundo o  historiador. Esclarece ainda que  Borges  participou de antologias e de outras obras coletivas. Na mesma história do autores  piauienses,  Miguel de Moura  o enquadra no grupo de autores  piauienses denomina de modo geral,  de “Geração marginal.” Na presente   resenha,  não  é  minha intenção de   discutir  esse tipo  de classificação  geracional.

             Na obra de Miguel de Moura, logo após  considerações  em torno da posição de Borges na  história da literatura  piauiense, o historiador inclui um conto de Milton Borges de título “ O passeio” (p.263-265) que, de alguma  maneira,  me permite refletir sobre alguns  traços  particulares e temáticos da forma de narrar  desse  autor.

           Não faz muito tempo, em  artigo, falei   que a literatura  piauiense   é muito mais numerosa em  poesia do que em prosa de ficção. Ora,  tal circunstância, por si  só,  nos deixa  mais animado  quando  mais um  ficcionista  surge  no  panorama  dos autores  piauienses  que se voltam  para  escrever ficção. Este é o caso também de Milton Borges (assim como de outros até mais jovens)   que nos surpreende  com  o seu mais  recente  livro, Sabor de vingança (Teresina: Editora Nova Aliança, 2015,  173 p.). A edição tem orelhas de  outro ficcionista   piauiense bastante  conhecido  do sobretudo público  piauiense,  José Ribamar Garcia. O livro tem   sugestiva capa de Ângela Rêgo.

        Situemos  criticamente  algumas características  evidentes na escrita literária de Milton Borges sem a pretensão de  avaliá-lo  por inteiro, já que só havia lido  o citado  conto  “Passeio”  que,  por  sinal,   abre  um flanco  para o conhecimento de sua  temática,  e, além do mais  nele pinço uma  particularidade   facilmente  à vista:  a tematização da violência e a força do seu  diálogo, muito vivo, muito ágil,  que me remete de alguma  maneira,  para  uma estratégia  de natureza cinematográfica,   quer  dizer,   iniciar  suas histórias, em geral,  in medias  res, e por diálogos que, a princípio, podem embarcar  o leitor quanto a saber  quem é quem  dos interlocutores. Este incipt do ato de narrar ficcionalmente,  de   representação  fílmica  ou  de telenovela é muito comum  na atualidade. Este estranhamento  inicial  faz, a meu ver,  parte do desenvolvimento de uma obra  de ficção nestas três formas de representação dramática.

        No entanto,  à medida que vamos  lendo o texto ficcional, que é o tipo que me interessa aqui,  o narrador  nos vai    aclarando  quem  é quem  e,  desta forma,  nos vai  pondo  diante  da identificação  dos personagens. Obviamente, este modo de iniciar  uma narrativa pelo diálogo  não é um  constante única,  mas é efetivamente uma   das constantes no livro de Milton  Borges.  Mais ainda,  se o diálogo  assim configurado  não surge no  início de cada história,  ele é frequente  na narrativa  de Milton  Borges a partir do que constato  pela  incursão  no seu    texto.

     Por outro lado,  o dado digressivo  ou  descritivo, da mesma forma   é utilizado   pelo narrador.  Entretanto,  isso  nos leva a uma  dedução,  Milton  Borges me parece   dar grande importância  à oralidade do discurso  . A estruturação  do seu texto   se constrói  por uma liberdade que  o  narrador se permite, observando-se mesmo,em algumas   frases um   forma sintática que nos lembra um   anacoluto. Seria nele uma traço estilístico ou  uma  defeito  de  estilo?

    Creio que seja  um traço  estilístico. Ou  seja,  uma maneira de  escrita literária  que se vale  da riqueza da oralidade,  no discurso ficcional  a fim de  mimetizar  ao máximo  o recurso da verossimilhança,uma aproximação  tanto  quanto  possível  do discurso do narrador  conectado  à oralidade  do próprio  leitor.  Esta  estratégia narrativa  resulta numa possibilidade renovada de  narrar sem as peias de  um discurso linguisticamente bem comportado. 

     Sabor de sangue, composto de  vinte e oito contos, de   extensão  breve, a maioria não ultrapassando três páginas,  é uma outra   forma de  estratégia  narrativa   que, de nenhuma maneira,  deseja  entediar  o leitor,  uma vez que a trama, a intriga,o desfecho e o  epílogo se realizam  tecnicamente dentro dos limites da  sua  brevidade   de tempo de leitura, embora o espaço  seja  diversificado e dinâmico.

   O conjunto de  contos  gira em torno  de um  tema, a violência urbana, opção no livro  que é explicitamente  reconhecida pelo  narrador num dos contos,  “Um copo de tentação,”  um dos pontos altos da narrativa de Milton Borges.. Nesta história  o protagonista, Edilson, é uma  espécie de símbolo da    policial brasileiro  às voltas com a sua  precária condição  de vida, carência de alimentação,   baixos salários, falta de preparo para a sua  missão de defender a lei,  flagrado  num instante de fraqueza  diante da insistência de beberrões resultando na prisão dele por embriaguez  envergando a própria  farda.

    Este livro de contos se alinha  no tipo de  narrativa  que, nos anos setenta e oitenta, já fizera surgir  notáveis  autores  brasileiros que tematizaram  a marginalidade, a violência urbana, como  Aguinaldo Silva,  João Antonio (1937-1996),  Rubem Fonseca, José Louzeiro, entre outros  ficcionistas.

    Com o processo de industrialização crescente  por que passava o pais e com o crescimento  desordenado das  capitais  brasileiras, estas se  inflaram   de um   grande contingente do interior dos estados,  e imigrantes despossuídos que  invadiam  as nossas metrópoles e as nossas capitais, inclusive o  espaço geográfico de Teresina,   onde se ambienta todo o cenário  de crimes e do surgimentos do tráfico de drogas   e da  escalada da violência sem precedente   na cidade e, por extensão, no país inteiro. 

     Milton  Borges se inclui neste filão de ficcionistas que têm como  tema nuclear   a exploração,  no campo  ficcional,  de histórias nas quais  os protagonistas   pertencem à galeria  de  criminosos   e de todos os vícios  que  apareceram  nas urbes, quer nos redutos das favelas   verticais (os morros cariocas,  por exemplo)), quer na horizontais,  nos bairros da periferia, onde a miséria e a promiscuidade  prosperam  de forma crescente.

   É bem provável que  estamos diante do  ficcionista piauiense que  mais se concentrou   em narrar  todas as mazelas  trazidas  pela nova marginalidade   que assola o país atualmente  e até no  interior. Sabor de sangue radiografa, sem papas na língua, este underground  do crime  e abre  espaço para a discussão  da marginalidade   tentacular que tomou  conta  do Brasil  sem a correspondente  competência dos governos  para   reduzir este gravíssimo  problema  social

   Usando  a técnica da surpresa  no desfecho  de um conto, como   o primeiro  do livro, de título ”Segredo de confissão” (p.7-13),em que uma mulher, fingindo  manter uma vida limpa,  após confessar-se,  subtrai  o celular  do  padre;  a denúncia social, a brutalidade  escancarada,  o tráfico de influência, como no conto “O maioral”(p73-79),. em que  um funcionário da Secretaria de Segurança, um espertalhão, por ser primo do governador,  não permitia que lhe cortassem  o fornecimento de luz por fala  de pagamento, deixando em situação  embaraçosa  o funcionário designado para  desligar  a luz de sua  casa;.o conto do vigário  de que foi vítima uma viúva metida a esperta , no conto  “Loteria premiada” (p.57-62); um deficiente bancando de assaltante, no  conto  “Pavor coletivo” (p. 103-109);  a delinquênca  juvenil,  no conto “Amor de mãe” (p. 149-150); o  trágico drama  de um jovem  epilético e doente mental, no conto “O cadáver  disputado” (p. 157-161); outro   drama trágico de dois amigos de infância que se tornam  marginais de “gangues rivais,” no conto que dá título ao livro, “Sabor de sangue”(111-115).


     Este livro de contos  - pode-se  dizer -  é o cartão de visita  às avessas  da marginalidade e da violência   em que se transformou  a velha Teresina  tranquila e provinciana dos anos 1960, aproximadamente. . Milton  Borges se coloca, assim, como um dos seus principais  intérpretes e como um ficcionista  que  traz para as páginas desta obra  a fisionomia de uma  Teresina  que reclama por soluções  mais  efetivas e urgentes  no enfrentamento   da criminalidade, da brutalidade,  da selvageria  e do desamparo em que   encontra a sociedade local, desde as camadas mais  humildes até as mais  sofisticadas.Violência que se  equipara, em muitos  ângulos,  àquela enfrentada   pelas grandes metrópoles brasileiras.. Por outro  lado,   fica uma sugestão ao autor, que  não  restrinja  a sua  imaginação  e o seu talento apenas ao tema da  marginalidade. Que abra espaços do seu  universo ficcional  para novos  temas  visto que  me parece  ter  domínio   e condições   de  amadurecer  tanto a linguagem literária  quanto    a sua disponibilidade  para novas   obras.

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