terça-feira, 31 de março de 2020

POEMITOS DA PARNAÍBA


POEMITOS DA PARNAÍBA

Texto: Elmar Carvalho
Charges: Gervásio Castro



13.           Rodrigão

Que dizer do Rodrigão?
Que ele era um novo Atlas
a sustentar em suas costas
a esfera azul do sonho?
Não. Era um atlas de carne e osso
porque sua cara vista de perfil
era um mapa da América do Sul.



14.           Maria das Cabras

Passava com seu passo leve
– quase voo de pássaro –
com a suave elegância
de uma cabra montês.
Rápida cortava as
avenidas e as praças
até que a molecada gritava:
– Maria das Cabras!...
Maria subia a saia:
– Taqui o chifre da cabra!...
Os moleques com as cabeças
cheias de idéias e fantasias
em suas alcovas ou banheiros
se escondiam: Maria das Cabras
surgia como uma fada encantada
entre véus diáfanos que se
es~~~~~gar~~~~~ça~~~~~~vam.



15.           Marechal

Maluco, se dizia alta
autoridade do planalto.
Ficava fulo da vida quando
chamado de soldado ou de
Madame de Chaval.
Não andava: marchava
de farda e botas.
Davam-lhe plaquetas e selos
e pequenas chapas de metal:
eram as condecorações e os
distintivos com os quais desfilava
entre continências de
risos e zombarias.



16.           João Orlando

Surdo, surdo como um surdo,
aprendeu com Bilac a ouvir estrelas.
E as ouvia nas lindas noites estreladas
de Parnaíba.
Em sua surdez de pau
ouvia o bater dos corações das pedras.
Ouvia o bang-bang dos colts
em suas leituras de faroeste.
Com sua morte silente
aprendeu a ouvir o silêncio
absoluto da morte.   

segunda-feira, 30 de março de 2020

DIÁRIO - 30/03/2020

Fonte: Google


DIÁRIO

Elmar Carvalho

30/03/20 20


            Estava me sentindo ameaçado, entre pessoas estranhas, numa cidade que não identifiquei. Fugia numa motocicleta pequena, que não atendia a meu comando de aceleração. Parecia que ela a qualquer momento poderia “estancar”, pois também não obedecia às minhas tentativas de redução de marcha. As luzes da cidade eram mortiças, e eu pouco enxergava na penumbra que tudo embaçava. Quando eu estava mais angustiado e apreensivo, acordei. Constatei, de imediato, que se tratava de um sonho, pois eu cavalgava uma rede, e não uma motocicleta.

            Vamos a outro sonho, ocorrido na mesma madrugada de anteontem, cuja narrativa será igualmente curta, e, acredito, um tanto jocosa. Estava num quarto ou numa sala, com familiares, quando apareceu um rapaz, conhecido de minha filha. Logo se comentou que ele calçava uma sandália nova e baixa, mas um pouco logo depois já não era sandália, e sim um tamanco leve, feito talvez de cortiça. Não me contive e disse: “É melhor você usar um tamanco grosso, grande e pesado, feito de aroeira, para engrossar suas pernas de cambito!” A gargalhada foi geral.

            Não tenho nenhuma explicação ou interpretação para esses dois sonhos. Apenas vou aproveitar a deixa para formular algumas considerações sobre esse tipo de atividade cerebral.

            Não faz muitos dias, encontrei no Riverside o meu amigo e confrade Humberto Guimarães, psiquiatra, leitor voraz e arguto, escritor de mérito, e, quando o deseja, um conversador atraente, sobretudo pelos muitos “causos”, anedóticos ou não, com que ilustra sua prática.

            Já não me lembro a propósito de que (ou se sem propósito nenhum), disse-lhe que não concordava integralmente com a tese atribuída a Freud de que os sonhos revelam desejos ocultos, pelo menos não todos. Apresentei duas ou três exemplificações.

A meu ver, se eu sonhar matando ou espancando alguém, mormente um desconhecido, não significa dizer que eu queira fazer alguma dessas duas atrocidades com quem quer que seja. Aliás, tenho pavor com a simples ideia de que eu precise matar alguma pessoa, mesmo em legítima defesa. Ele me respondeu que os sonhos e os sonos têm muitos mistérios, e que pouco se conhece sobre esses dois estados mentais. Em resumo, o desejo contido num sonho, é apenas uma faceta diminuta em face do que ainda não sabemos.

Muitos acreditam que no sonho, pelo menos em algum deles, nossa alma ou espírito deixa o nosso corpo, e faz longas viagens, creio que em outras desconhecidas e inefáveis dimensões. Não tenho nenhuma certeza quanto a isso, mas também não rechaço de forma peremptória essa hipótese.

Consta que temos muitos sonhos em cada período de sono. Quando na adolescência, em que eu tinha um sono profundo e longo, não tinha muita convicção quanto a isso. Mas hoje, que já acordo algumas vezes durante a noite, muitas vezes em meio a um sonho, verifiquei na prática que isso é verdade.

Em regra, só recordo meus sonhos quando acordo no momento em que eles estão a acontecer. Às vezes, se não fixo minha atenção neles, logo os esqueço. Aliás, já li que não devemos forcejar em recordá-los. Se os esquecemos, é porque eles foram feitos para o esquecimento. Portanto, melhor seria esquecê-los.

Fisicamente, só recuperamos nossa energia com o sono. E dizem que são os sonhos que organizam e “reparam” nossa mente, sobretudo nos momentos de estresse; que sem sonhos, enlouqueceríamos. Acho que os sonhos servem também para nos mostrar que somos todos potencialmente frágeis e pecadores, porquanto em muitos sonhos temos os mesmos pecados e vicissitudes que reprovamos em nossos semelhantes.

Muitos sonhos são repetitivos. Outros, são uma total novidade. Alguns, são estranhos, bizarros, e se revestem de um conteúdo totalmente insólito. Em quase todos os meus sonhos, mesmo os mais semelhantes à realidade tal como a conhecemos em nosso estado de vigília, há um momento de excentricidade, de esquisitice, o que nos facilita distinguirmos o sonho da realidade em que estamos acordados.

Talvez pela posição de nosso corpo ou mesmo pelo fato de apenas estarmos dormindo, sentimos dificuldade ou travamento em executar certos movimentos e ações em nossos sonhos. Mas, algumas vezes, fazemos coisas que jamais faríamos acordados, como voar, atravessar uma parede, nos tornar um genial escultor ou executar um hábil malabarismo circense. Ou pescar uma sereia ou cavalgar um Pégaso (ou, ao menos, um pangaré alado).

Porém, não raras vezes, tudo na vida nos parece tão irreal como um sonho dentro de um sonho, dentro de um sonho, dentro de um sonho... como um espelho frente a outro espelho... ou como as bonecas matrioskas (russas), em série infinita.   

SER CONSIDERADO VELHO NÃO TEM A MENOR GRAÇA




SER CONSIDERADO VELHO NÃO TEM A MENOR GRAÇA

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

                Encontrei-me com Sandoval, dia desses, exatamente, dezenove de março último. Como nunca acontecera antes, dessa feita fui eu que, mesmo sem cumprimentá-lo, para seu espanto, comecei a despejar mágoas minhas recentes.

                Meu caro, vou lhe dizer o seguinte: fazia muito tempo, nem me lembro quanto, que uma tristeza assim, tão doída, absoluta, pesadíssima se abatera sobre mim, como ontem. Completava quarenta e três anos de serviço público, no qual ingressei aos dezoito anos. Sem festa, mas, a despeito do coronavírus que já ocupava todos os meios de comunicação, todas as conversas familiares, todos os discursos e espaços disponíveis, senti-me bastante feliz com as efemérides que o Todo-Poderoso me permitira viver: era muito tempo de trabalho, e eu, ainda “novinho” em folha, sentindo-me disposto, um bem conservado ex-atleta. Isso tudo, toda essa alegria mixou ao chegar em casa e receber dura admoestação, seguida de ditatorial ordem familiar: que é que o senhor pensa estar fazendo, saindo de casa para trabalhar quando até o governo já abriu a exceção, principalmente, para pessoas na sua condição, de fazer isso em casa? Se não se incomoda, pessoalmente, bom que saiba que tem outros com os quais convive que não aprovam essa sua “maluquice”. O senhor não é nenhum super-homem, está na faixa de idade cujo risco em relação à COVID-19 é muito maior que todos de sua casa. Pense nos filhos, na esposa, nos netos. A partir de agora, fique em casa, não saia sob propósito algum, estamos combinados?

                 Como não sou um bobo comum, mas um grandíssimo tolo, percebi que, de fato e de direito, passara a ser o mais novo idoso da família. E pude constatar, amigo, que ser considerado, pelos outros, velho é muito pior do que por si mesmo.

                Sandoval quis intervir, não deixei. Meu velho, nunca pensei que isso machucasse tanto; talvez mais porque a verdade fora tornada pública pela mesma família que, em muitas oportunidades, antes, teimara em me contrariar quando dizia já estar ficando velho, afirmando que não, que eu parecia bem melhor do que alguns deles, mais novos. Um bando de mentirosos, enganadores. Foi só um malsinado e desgraçado vírus aparecer para que a verdade viesse à tona.

Portanto, perguntaria a você, Sandoval: será que depois que a situação se normalizar, for superada esta amaldiçoada virose, caso permaneça saudável, deveria aceitar os rapapés e salamaleques daqueles falsos? Mesmo que continue fazendo as coisas que somente os não velhos realizam: peladinhas três vezes por semana; cervejinhas sempre que tiver vontade; uma panelada ou um sarapatel, por mês, e outros atos e ações sobre os quais não preciso falar, vou continuar ou não atravessado com eles? Ou seria melhor aproveitar a nova e fática velhice para agir como um velhinho mau: explorar a boa vontade, a paciência e a disponibilidade dos jovens familiares, sempre que entender necessário?

                Dando um tempo, permiti a Sandoval manifestar-se. Olhe aqui, amigo, isso que aconteceu a você somente agora, e por conta de um maldito vírus, faz tempo vem ocorrendo comigo. Até já me acostumei; não raro, deixo que digam ou façam como quiserem. Às vezes, quando algo ocorre de forma contrária ao que decidiram, critico ou questiono: por que não falaram comigo, antes; um cidadão mais velho e experiente, certamente, não faria a bobagem que fizeram? Bem feito. E continuo o discurso: olhem, velhice não veio só para fazer doer todos os nossos ossos e juntas, adoecer-nos ou nos tornar grandes teimosos, mas, também, para nos fazer escutados, sermos consultados, pensarmos em soluções que passariam despercebidas ou nas quais vocês nem pensariam, prezados jovens. Experiência, meus amigos, serve, inclusive, para levarmos quem pensa que sabe tudo mais que todos - como se dizia quando eu era jovem - “numa boa”.

                Retomando a palavra, para encerrar, falei a Sandoval – mas gostaria que elas ecoassem ou replicassem em outras paragens -: vou tentar me acostumar com a recém-adquirida velhice. Creio que vou precisar de muito menos tempo do que o já prestado como servidor público. Na verdade, acho que vai ser fácil: bastar-me-á passar a não aceitar que refutem ideia que, antes, lançava e que, no fundo, parecia verdadeira: de que eu era um idoso já anteriormente ao último dia dezenove de março.

                Todavia, ser considerado velho, de repente, principalmente, por quem vivia inflando seu ego, iludindo-o, negaceando essa sua condição, não tem a menor graça. Isto é fato. Comigo concordou Sandoval, com um gesto de cabeça. 

domingo, 29 de março de 2020

Seleta Piauiense - Francisco Miguel de Moura

Fonte: Google


PAISAGEM

Francisco Miguel de Moura (1933)

      “Toda paisagem tem um ar de sonho”.
      Dante Milano

Mal os braços se abrem
a paisagem me come
o coração – corcel dos nervos.

Bebida em haustos
a vida bate,
enverdece o sol,
amarela os frutos – esperança.
E a saudade em chuva e orvalho
não cai roxa.

O tempo não avança.

Minhas lanternas corporais
são meninas vadias,
e os ouvidos ouvem pássaros,
mistérios, eflúvios,
arrepiando os tentáculos.

A alma que voava
me pousou
na beira de outro sonho.   

sábado, 28 de março de 2020

SOLTA...SOLTA...SOLTA...

Foto meramente ilustrativa. Fonte: Google


SOLTA...SOLTA...SOLTA...

Antonio Gallas
Contista e cronista
  
Mal o prefeito Mão Santa determinou  através de um decreto a abertura  do comércio no dia 27 de março do ano de 2020 que o Apolinário começou suas estrepolias culminando em sua prisão no final da manhã e início da tarde.

Há mais ou menos uma semana o comércio de Parnaíba havia fechado suas portas por conta de um decreto governamental que,  segundo o governador do Estado, estaria cumprindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde - OMS, como forma de evitar a proliferação da Convid 19,  conhecido como Coronavírus e que muito mal estava fazendo à população do mundo inteiro e que, se tivesse grandes proporções no Brasil causaria um desastre muito maior ao país, não apenas à economia, como também aos demais setores da nação.

Apolinário que nunca trabalhou na vida, vivia de biscates, de enganar as pessoas,  e nos descuidos dos comerciantes em pequenos furtos.

Não tinha morada certa, mas atualmente estava no chamado Carandiru, no Bairro Mendonça Clarck nas proximidades do Mercado da  Quarenta. Por suas investidas já era bastante conhecido nos distritos policiais e por isso ganhou o cognome de Mala.

- Lá vem o Mala de novo, dizia o delegado do plantão. -  O que foi dessa vez, Mala?

Pois bem. Tão logo percebeu que algumas lojas começaram abrir suas portas preparou-se para o seu "trabalho", pois afinal há   uma semana que ele  não fazia nada, não ia ao restaurante popular, ao "troca-troca" etc... Ficar  entocado  o dia inteiro, deitado  no chão quente e sujo do Mercado da Quarenta não era negócio pra ele.

Na manhã dessa sexta-feira dia 27 de março de 2020 o Mala saiu disposto a arranjar uns trocados que dessem para, pelo menos,  poder tomar uma pinga num dos botecos em frente à parada das Vans na Vala da Quarenta e comprar um pó para cheirar à noite e assim poder dormir, sonhar e viajar sob o efeito da droga.

Dirigiu-se ao Banco do Brasil e não conseguiu nada. Caminhou então rumo às lojas da rua Almirante Gervásio Sampaio onde existem lojas de variedades, de confecções masculinas e femininas, lojas de ferragens, sapatarias e tudo mais.

Adentrou em uma loja de artigos femininos e ao primeiro descuido do proprietário surrupiou uma calcinha, peça íntima do vestuário feminino e  arribou na carreira. Só que ele não contava que nesse momento um policial militar fosse passando na porta da loja para azar seu.

Na carreira apressado  esbarrou no cabo Êta que por coincidência , ou para o seu azar passava na porta da loja.

- Espera aí ô rapaz! Tá pensando o que?

À esta altura seu Alonso, proprietário da loja gritava: - ele roubou uma peça da minha loja.

- É verdade. Roubei uma calcinha para fazer uma máscara e me proteger do Coronavirus, pois  estou sem dinheiro para comprar na farmácia.

- Que máscara que nada, disse o cabo Êta. Vamos já para delegacia.

- Por favor, não me prenda. Eu tô doente. Acho que peguei o Coronavírus.

O policial não quis saber de conversa. Chamou o camboarão e levou Apolinário para a Central de Flagrantes.

O delegado ao ver Mala chegar mais uma vez na Central de Flagrantes coçou o quengo e sorriu.

Apolinário  sentou-se em frente à mesa do delegado e enquanto o escrivão preparava o computador para promover o flagrante quando Mala desembestou-se a tossir e espirrar...

O delegado  assustado, tampando o nariz com a mão esquerda e com a direto fazendo o tradicional sinal de quem manda embora exclamou: "solta...solta... solta!       

POEMITOS DA PARNAÍBA

POEMITOS DA PARNAÍBA

Texto: Elmar Carvalho
Charges: Gervásio Castro

9.           Xigau


Assim como há
o espírito de porco
o espírito de gato há.
Xigaaaau... Xigaaaaaau...
Não articulava palavras,
apenas miados e miados
e a semiótica linguagem
de seus gestos de gato.


10.           Jibóia

Trazia a lembrança viva
de um passado morto e sepulto
dos Bailes Azuis e do
burburinho dos porcos d’água
e das meretrizes do cais.
Reinava na boite Rio-Chic
e desfilava pelo grande salão
cheio de espelhos e de sonhos
e de risadas esparsas
como num reino encantado.
A imagem de Jibóia morta
reproduzia-se pelos quatro
cantos do salão através das
pupilas perplexas dos espelhos.
(As velas do velório
 lágrimas de cera choravam,
enquanto as mulheres, entre soluços,
rezavam contritas.)


11.           Hosana

Hosana nas alturas!
Hosana nas alturas
de sua vida sofrida
de pobre e alienada.
Interventora dos gabinetes
(cediam-lhe os pequenos tronos
de burocratas para rirem
o riso fácil e gratuito).
Cobradora de impostos e taxas
(davam-lhe ínfima moeda em
troca do riso rasgado).
Andava sempre com sua
roupa branca de marinheiro –
primeira e única almirante:
            alma mirante
            alma errante
            alma navegante.
Sempre de
branco como as nuvens
que alvejavam em sua
cabeça de nefelibata.


12.           Boa Idéia

Um dia
ou melhor uma noite
Boa Idéia teve a idéia
de construir um telescópio
para sonhar/sondar aqueles pontinhos
cheios de pontinhas chamados estrelas.
Galileu Galilei da Parnaíba
construiu sua luneta
desvendou estrelas e planetas e cometas
e perscrutou os umbrais do infinito.
Autodidata da astronomia
com seu telescópio passeava
pelos “mares” da lua
dizendo coisa com coisa
que ninguém sabia.
Brincava de bambolê
com os anéis de Saturno.
Jogou bola de gude
com as luas de Júpiter.
Morfeu o levou para ser
centurião de galáxias. Mas
voltará não num rabo de foguete
mas na caudabundante flamejante -
mente reluzente do cometa de Halley.

sexta-feira, 27 de março de 2020

DIÁRIO - 27/03/2020




DIÁRIO

Elmar Carvalho

27/03/20 20



            Ontem de manhã recebi um telefonema do amigo Fabrício Amorim Leite. Além de advogado do Banco do Nordeste, ele é interessado em literatura, e cultiva a crônica e uma boa leitura. Sem radicalismo e intransigências, é um estudioso da doutrina de Kardec. Mas, principalmente, é um bom cidadão, amante do bem e da generosidade.

Considero-o como sendo um dos meus poucos leitores. Temos tido algumas boas conversas, quando caminhamos juntos, algumas vezes, na Raul Lopes. Ligou-me para me dar uma notícia jurídica, em assunto de meu particular interesse, mas também para me incutir coragem nesta quarentena coroniana.

Contou-me que num período em que esteve licenciado, em tratamento médico exitoso, a oncologista Vanessa Castelo Branco lhe estimulou a fazer caminhadas dentro de casa, não para que se tornasse um atleta ou fortão musculoso, mas para ter confiança e bem-estar psicológico. Disse-lhe que passaria a seguir o conselho de doutora Vanessa, neste período de isolamento social. Aconselho o leitor a que também o siga.

Quando ele falou na palavra confiança, lembrei-me de um episódio do final de minha juventude. Estava num dos mais altos platôs da Serra Azul, ou ainda Serra de Santo Antônio, também chamada com certo ufanismo de Serra Grande de Campo Maior, quando veio uma rápida e inesperada chuva. Cessado o aguaceiro, o nosso guia, de forma algo imprudente, nos incentivou a descermos a encosta até um ressalto que havia. Ele, o Zé Francisco Marques, eu e meu irmão Antônio José descemos.

Porém, na subida tive medo, ainda mais porque a terra estava um tanto escorregadia e eu estava calçando apenas uma chinela havaiana. Uma queda poderia ser fatal. No entanto, o guia, de forma calma e decidida, disse-me para que me segurasse num tenro arbusto que havia, e, vendo o receio estampado em meus olhos, acrescentou: “A planta é apenas para lhe dar coragem”. Talvez em lugar de coragem, tenha dito confiança, já não recordo com exatidão.

O certo é que adquiri coragem e confiança em mim mesmo e executei a íngreme escalada. Agora, nesta reclusão da covid-19, digo a mim mesmo e ao leitor: Tenhamos Fé em Deus, meditemos, façamos nossos exercícios e caminhadas em casa, e oremos, que tudo vai passar, como de resto tudo passa.

Contudo, para sempre guardemos as lições recebidas, e nos esforcemos na busca do autoaperfeiçoamento, nos tornando um ser humano “revisto e melhorado”. 

quinta-feira, 26 de março de 2020

Comentário a meu texto sobre a covid-19

Batista Rios. Fonte: Google


Comentário a meu texto sobre a covid-19

O juiz aposentado e diácono Dr. João Batista Rios comentou o meu texto do dia 25/03/2020 com muita proficiência e propriedade, de modo que achei oportuno publicá-lo como matéria autônoma, na íntegra, conforme segue abaixo:

Meu amigo e colega Dr. Elmar.

É como Deus estivesse dizendo: Ei turma aí da terra, eu existo. Esqueceram de mim, né?

Você escreveu: “... porque Deus permitiu”. Sim, permitiu, sim. Permitiu, permite e permitirá que flagelos, pestilências e males se processem para que a humanidade se advirta de que este mundo tem dono e é o próprio Deus que diz em Levítico quem é o seu dono: “Porque a terra é minha e vós estais em minha casa como estrangeiros ou hóspedes”. (Lv. 25, 23)

Ora, qual a reação de quem se vê agredido em seu patrimônio moral e/ou moral e físico?

O Deus das escrituras (Velho Testamento) falou ao homem pelos profetas, mas hoje ele fala por Jesus Cristo (Novo Testamento) bem como pelos acontecimentos. Eu existo turminha daí da terra.

Ao longo da história da humanidade (não se sabe ao certo o tempo desta história), Deus sempre provou seu amor infinito (“Eu te amo, Israel, com amor eterno) por ela, e os homens têm sido cruéis com Ele. Ele é misericordioso, mas também é justo.

É que o homem, meu caríssimo Dr. Elmar, o homem se endeusou. Dizendo-se criador de mil e um avanços científicos, batendo palma para si mesmo entronando-se como o inventor, sentindo-se bem em ignorar o que diz em Eclesiastes 1, 9: “Nada de novo sobre a terra”. Deus é que deu ao homem a capacidade para em penetrando nos seus arcanos divinos fizesse descobertas, nunca inventos. (Aliás, Pedro Alvares Cabral descobriu e não inventou o Brasil).

Você foi deveras grandiloquente quando disse: “Talvez, caso não aprendamos a lição uma segunda onda venha com uma letalidade ainda maior”. E coroa: “Mas não sou profeta, muito menos do apocalipse, sou apenas um observador dos sinais. E os sinais estão no ar”.

Sobre isto: Deus, na sua vontade permissiva facultou a primeira grande guerra que ceifou 20.000.000. Mas as suas lições não foram decoradas. Tanto é verdade que a mesma vontade permissiva de Deus veio a se manifestar numa segunda com 85.000.000. “...caso não aprendamos a lição ....”.

Sei que você “não é profeta muito menos do apocalipse”, apenas um “observador dos sinais”, mas sua visão crítica se engata e se afina no contexto da atmosfera da Covid – 19.

O dedo de Deus pode estar aí, convocando a nós homens por um rearmamento moral e religioso.

Os homens, nós devemos reconhecer Deus como o Senhor da vida e do mundo, que tudo move e é em torno do seu nome que acontece e gira.

Humildade é palavra de ordem. Sem jamais esquecer: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”. (Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te transformarás).

Um grande abraço do colega e amigo que o preza e admira.

Um super abraço.

Batista Rios.   

DIÁRIO - 26/03/2020


Fonte: Google

DIÁRIO

Elmar Carvalho


26/03/2020

            Dizem os ditados que gato escaldado de água fria tem medo, e que cachorro picado por cobra tem medo de linguiça.

Como caiu o acesso dos internautas que frequentavam minhas postagens, me é lícito perguntar: será se nestes dias de quarentena “coroniana” (e não, claro, coronariana), por causa de certo vírus coroado, o leitor de plataformas virtuais passou a ter medo de “pegar” virose informática?

Aos meus amigos


Fonte: Google


Aos meus amigos

Carlos Henriques Araújo
  
Oi pessoal,

Há alguns meses eu passei uns dias no Coqueiro sozinho, aí bateu uma saudade dos amigos, então eu fiz uma crônica “Procura-se um amigo”, não sei se mandei para todos vocês.

Agora, já com duas semanas sem sair de casa, e se aproximando uma data inesquecível, principalmente para mim, quero dizer-lhes algumas palavras que traduzem meus pensamentos:

A vida é bela, a felicidade é um estado de espírito e está dentro de nós. As três melhores coisas do mundo são: Saúde, família e amigos. Existem outras coisas boas, como a música, os livros, filmes, um bom vinho e viajar, que as elejo como as melhores, não necessariamente nesta ordem.

Sete ponto zero, setentinha, seja lá como chame, a verdade é que o tempo não para, todos vamos chegar lá. Então para agradecer esta benção planejava reunir os amigos aqui em casa no dia 26/03, mas por motivos óbvios não vai ser possível.

Escrevi o livro “Sem lenço, sem documentos” para comemorar meus cinquenta anos, e para os setenta pensava em escrever a segunda parte mas, não por conta do vírus, não foi possível. Vai ficar para os cem. Vou apenas revelar o nome dele: “Vim, vi e venci” Este é também o nome de uma poesia do meu próximo livro de poesia. Veja:


VIM, VI E VENCI

Parece que foi ontem,
deitado na calçada olhando pro céu,
procurando carneirinhos entre as nuvens,
correndo descalço na rua atrás de uma bola.

A infância passou como uma nuvem que passa,
foi numa manhã de sol ou numa noite de lua,
demorou muito tempo, não me lembro mais,
não pensava no futuro como hoje penso.

A adolescência chegou de repente,
as amizades com malícia e amor,
os sentimentos do bem vinham à mente
mas depois de muito estudo e festinhas,
só o “pé na estrada” restou.

Mas tarde, formado, pronto pro trabalho,
caí no mundo em busca de emprego.
Hoje, casado, mulher e filhos maravilhosos,
 ótima saúde física e financeira,
levo uma vida com muito sossego.

E nessa tranqüilidade a aposentadoria chega
O que fazer? Tudo. Não deixar nada pra depois,
Curtir a casa, a família, os amigos, lazer infinito.
Ouvir música, ler, escrever, tomar um bom vinho
 viajar para lugares novos, distante e bonito.   

quarta-feira, 25 de março de 2020

DIÁRIO - 25/03/2020



DIÁRIO

Elmar Carvalho

25/03/2020

            Não sendo um teólogo e nem um religioso, mas tendo a minha religiosidade cristã, e aproveitando este período de quarentena a que quase todos estamos submetidos, fiz algumas reflexões sobre o impacto do novo coronavírus na humanidade.

            De início, acredito que essa covid-19 aconteceu porque Deus permitiu, como de resto creio que nada acontece por acaso, até porque, de fato, não existe o que chamamos acaso; não existe uma entidade, física ou espiritual, com esse nome, que tenha o condão de fazer acontecer ou não acontecer o que quer que seja, e que tenha uma existência concreta, real.

            O que existe é uma sincronização infinita de causas e efeitos. Quando não temos uma explicação para determinado fato ou acontecimento, dizemos que foi por acaso ou que houve uma coincidência. Aliás, dizem que o acaso é o nome que se dá aos momentos em que Deus passeia incógnito.

            Na mecânica quântica, em que tudo parece estar interconectado, há fatos e acontecimentos estranhos e surpreendentes, inclusive o princípio da incerteza. Será se essas estranhezas e incertezas, inacessíveis ao atual conhecimento humano, à falta de outro nome, não seria o “espaço” que Deus reservou para fazer as suas sutis intervenções ou milagres, que de tão discretos quase ninguém percebe, ou mesmo deseja perceber?

            Observo que nas últimas décadas, a ciência e a tecnologia têm feito muitas descobertas, invenções e aperfeiçoamentos tecnológicos. Mas, em contrapartida, o homem em sua ganância, egoísmo, consumismo e hedonismo tem feito muita loucura, inclusive comprometendo o equilíbrio ecológico e o chamado desenvolvimento sustentável.

Com isso, muitos recursos naturais entram em colapso, desastres naturais já se esboçam e o efeito estufa é uma lamentável realidade, que já provoca modificações e catástrofes climáticas. Muitos crimes, cometidos por causa do egoísmo e da ganância, tais como estupros, assaltos, mortes por encomenda, latrocínios tomam proporções nunca dantes vistas.

As pessoas “convivem” mais com os aparelhos eletrônicos (som, celulares, tv, computadores, jogos etc.), do que com o seu semelhante. Esses aparelhos são ligados a partir do momento em que o dono mal acorda. Não existe tempo para o silêncio, para a reflexão, para a leitura ou para uma simples conversa. Mesmo num restaurante poucos conversam. Muitos preferem curtir mais uma rede social do que uma rede de verdade. E muitos só adormecem se o aparelho de som estiver ligado.

O ser humano andava numa aceleração constante, cada vez em busca de maior velocidade, em constante situação de estresse e ansiedade. Agora, foi compelido a pisar no freio.

Tivemos duas guerras mundiais e uma infinidade de outras guerras ao longo de milênios. Temos e tivemos guerras e guerrilhas por motivos étnicos, religiosos, econômicos e ideológicos. Mas a meu ver nada justifica uma guerra, exceto a defesa. Para mim uma guerra não tem nenhum sentido, tais os malefícios e sofrimentos que provoca nas partes em luta e mesmo no seio da sociedade civil.

Contudo, qualquer guerra é iniciada pelo homem e pode ser paralisada pelo homem; porém, o mesmo não se pode dizer da covid-19. Os bunkers e as casamatas protegem as altas autoridades e os generais, todavia, o novo coronavírus não respeita autoridades, generais, valentões, tamanho, cor de pele e nem idade. Todos estamos no mesmo barco, e o mesmo barco se chama planeta Terra. E todos seremos afetados, de uma forma ou de outra, através do confinamento e do medo, ou da infecção de um parente ou amigo, por um pedacinho de molécula invisível e tão diminuto. Dependemos uns dos outros, e estamos todos interconectados, em permanente interação, influenciando e sendo influenciados.

Acho oportuno transcrever o que disse John Donne, velho poeta inglês: "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti."

Creio que, como o homem não aprendeu as lições da História e das guerras, e não escutou as advertências e pregação de Cristo, veio agora essa praga para nos sacudir em nossa zona de conforto, para nos afastar do egoísmo e de todas as formas de egolatria. Veio para nos desacelerar, para nos fazer refletir, para que nos voltemos mais para Deus, e não para o hedonismo, futilidades, “espertezas” e culto ao corpo, que de resto é frágil, vulnerável e mortal. Mas essa pandemia, suponho, é apenas um “cascudo” ou cocre, apenas uma forte admoestação. Talvez, caso não aprendamos a lição, uma segunda onda venha com uma letalidade muito maior. Mas não sou profeta, muito menos do apocalipse; sou apenas um observador dos sinais. E os sinais estão no ar.

Menos casamata, mais “casamáter”, mais hospitais, mais saúde, mais amor e mais fraternidade e caridade. Oremos e vigiemos, como disse Jesus. Tenhamos Esperança e Fé. Afinal, Deus é o construtor e piloto desta nave Terra, e ela há de seguir a sua rota perfeita, consoante a Sua vontade.

Que o homem se humanize, se aperfeiçoando, e se torne realmente humano.   

terça-feira, 24 de março de 2020

Os três degraus

Fonte: site da APAL


Os três degraus

Pádua Marques
Contista e romancista

Quando a canoa tocou o bico da proa no barranco do porto Salgado naquele meio de dia, 16 de setembro de 1939, os três rapazinhos ainda impressionados pelo movimento dos armazéns e lojas, mal perceberam mais longe a torre da igreja de Nossa Senhora da Graça e as outras casas comerciais, embora naquela hora fosse hora de almoço. José Justino, Moisés e Aurélio estavam chegando em Parnaíba, vindos do Brejo dos Anapurus, no Maranhão.

Tinham os dois primeiros, dezessete anos e o outro, dezesseis mal completados em abril. José de Ribamar Justino vinha atrás de um emprego no comércio, no Moraes, em algum dos armazéns do porto e tinha fé que seria mais fácil porque sabia assinar o nome e fazer alguma conta de cabeça. Mas vinha triste. Sua mãe havia morrido pouco mais de dois anos atrás mordida por uma cobra quando catava babaçu numa porção de terras abandonadas e ele ficou sozinho no mundo. Dos três era o único que tinha algum sinal de conhecer alguém naquela cidade.

E essa pessoa era sia Vicença, conhecida de sua finada mãe nos Anapurus. Vicença morava nos Tucuns, perto da lagoa do Bebedouro numa casa miúda, pintada de branco, coberta de palha, de dois quartos, chão de tijolos e uma janela dando pra rua. Tinha uma filha, cega de um olho, moça velha de uns trinta e poucos anos, muito feia, que pouco falava. A protetora de José Ribamar Justino era viúva de um barbeiro, Pedro Teodoro, que havia morrido enfraquecido, tuberculoso e no meio da rua em Parnaíba há dois anos.

Uma coisa horrível de se lembrar. Caiu soltando sangue pela boca em frente à loja de seu Antonio Tomás, perto do Mercado.   E foi sia Vicença quem veio de casa naquele dia, naquele terror de sol, buscar o rapaz e seus companheiros no cais do porto Salgado e lhes dar acomodação.

Vicença se admirou do tamanho que estava o filho da finada comadre Domingas e tratou logo de procurar ver seus companheiros de viagem. Eram os dois, Moisés e Aurélio muito novos e acanhados. Mas José Ribamar Justino foi quebrando a vergonha dos companheiros dizendo que eles agora estavam na Parnaíba e tinham que criar alma nova! A viúva foi logo procurando saber o nome dos meninos, a idade, se tinham muita coisa na bagagem, pois a viagem até os Tucuns seria longa.

E assim foram os quatro entrando de Parnaíba adentro e olhando aquele movimento no início da tarde. No outro dia ela iria atrás de alguma colocação em algum armazém ou casa de gente rica dando sinal de que eram os três rapazinhos pessoas de sua confiança e quase seus filhos. Pelo caminho ia apontando esse ou aquele comércio, loja, barbearia, o cinema, Éden, açougue, oficina de sapateiro. Um homem dando de comer pra seu animal de carroça.

Aqui uma mulher estendia na porta de casa um pano e em cima desse pano, camarão pra secar. Mais ali na frente um homem consertava uma rede de pesca e mais adiante umas meninas jogavam pedrinhas no chão de uma calçada. No largo da igreja de Nossa Senhora da Graça e tendo a igreja do Rosário, a dos pretos do outro lado, se benzeu e fez uma prece batendo os beiços.

Pedia por eles, aqueles três viventes em início de vida, principalmente José Justino, filho de sua conhecida. Mas também pelos outros dois, Moisés e Aurélio. Eles caminhavam em fila e cada um trazendo a pouca bagagem. Duas mudas de roupas, camisas e calças de botão, cuecas, espelho, um pão de sabonete e uma toalha de pano, copo de alumínio pra beber água, um pente de chifre, uma rede e um lençol ordinários. Era tudo o que tinham e o que conseguiram juntar com a ajuda de parentes pra aquela viagem.

Mas enfim chegaram na casa dos Tucuns e a moça feia, de nome Maria da Luz, veio abrir a porta. Sia Vicença não se acanhou e tratou de oferecer todas as acomodações da casa pequena aos três rapazinhos. Ficariam alojados no quarto da frente. Era pequeno, mas arejado e de frente pra rua. Correu até a cozinha a colocar uma chaleira no fogo pra fazer um café pra que logo em seguida procurasse alguma coisa pra os agora cinco dentro de casa comessem.

A moça velha, Maria da Luz, pouco deu sentido aos três rapazinhos e de pouca fala até mesmo com a mãe, foi ajudando aqui e ali com alguma tarefa. Mas no outro dia Vicença saiu com os três pra Parnaíba procurar colocação de serviço. A igreja de São Sebastião, nos Campos, estava em obras. Era grande o movimento de pedreiros, serventes, carpinteiros, mestres. Foi lá e pediu que queria falar com o encarregado. O homem veio e pediu que esperasse um instante. Não demorou muito e veio.

A viúva foi logo fazendo a propaganda de Moisés. Disse quem era ele e tudo o mais, menino de dezessete anos e bem fornido, moreno, de cabelo liso, não bebia, não fumava, ainda não tinha cegueira por rapariga e estava doido pra trabalhar! Quanto era o dia de serviço? Tudo acertado. Moisés ficou ali mesmo já traçando massa e carregando tijolos. Saíram os três à procura de outro serviço, dessa vez pra Aureliano, o mais novo. E não demorou muito, passaram em frente ao Mercado Central e viram umas bancas de frutas.

Vicença reconheceu o dono, seu Corinto, irmão de um conhecido freguês de seu finado marido, de nome Quincas Magalhães, dono de uma loja de frutas e doces. Puxou conversa, comprou umas bananas e ofereceu o segundo rapaz pra emprego. Deu certo de novo. O serviço era ficar gritando o preço das mangas, laranjas, bananas, sapotis, rapadura, mel de abelha e tudo o mais. Não podia ser acanhado! Com o tempo era bom ir aprendendo a fazer conta! Freguês chegasse e era pra encostar e ir oferecendo tudo e sendo gentil. Aparecia muita gente rica! Pagamento no final do dia. Nada mal pra quem nunca havia pegado em um vintém!

Era outro dia. Agora era o protegido e filho de comadre Domingas, que uma cobra matou com seu veneno naquela mata de babaçu nos Anapurus. Saíram pela manhã no rumo do centro de Parnaíba. José de Ribamar Justino e sia Vicença estavam passando agora pela Pharmacia do Povo, de doutor Raul Bacellar, quase na beira do rio. O doutor era de Brejo, conhecia muita gente e gente que tinha dinheiro. Talvez fosse mais fácil encontrar um serviço ali mesmo, entregando remédio, limpando o chão, os vidros, dando recado, varrendo a calçada, tudo.

Mas a moça do balcão, depois de perguntar do que se tratava, disse que o dono não estava naquele momento. Voltassem depois! Vicença não era de perder tempo e de ter medo de nada. Ficou perambulando com José Ribamar Justino mais um pouco e viu gente indo no rumo do Moraes, lá pra os lados do rio, na Coroa. Iam pra lá era agora! Uma fila de gente, uns quinze rapazes e até homens feitos procurando colocação. Não desanimou. Justino ali perto, mordendo os beiços e procurando criar coragem pra qualquer coisa. Sabia fazer um pouco de conta. Havera de ajudar.

Na sua vez Vicença foi chamada por um homem de barba por fazer que estava sentado atrás de uma mesa e sempre se levantando. Meio alto, pele queimada, poucos dentes na boca, falando alto e às vezes até gritando com algum companheiro lá pra dentro. Mas atendeu a viúva e seu protegido com certa cerimônia. Mandou sentar e tudo. Ela não encompridou conversa. Aquele era José Ribamar Justino, vindo de Brejo, terra de doutor Raul Bacellar! Conhece a Pharmacia do Povo? Conhece doutor Raul Bacellar?

E o rosário da vida de Justino foi sendo cantado sem tempo de sia Vicença tomar fôlego. Disse que era um rapaz de boa família, trabalhador pra toda obra e até sabia fazer conta de somar e dividir, multiplicar e diminuir. Sempre teve vontade de trabalhar no Moraes! Não bebia, não fumava, nem passava perto de cabaré. Justino, aquele rapaz ali na frente, era de extrema confiança! Nem se preocupasse. Era gente de dentro de sua casa! Falou de Pedro Teodoro, o barbeiro conhecido em toda a Parnaíba. Sia Vicença ia fazendo terreno.

Fazendo terreno e elogios pra ir ganhando corpo o pedido de emprego pra o filho de sua comadre. Firma boa essa do Moraes, muito movimento! Tinha que ter astúcia pra dar o bote na hora certa, feito cobra dentro de buraco. Ouvia dizer que o Moraes tinha negócios até no Rio de Janeiro, tinha navio levando óleo pra o estrangeiro, muita gente importante trabalhando. O encarregado pediu que deixasse o rapaz falar um pouco dele mesmo.

Sia Vicença ia acompanhando e até de vez em quando se intrometendo. No fim deu certo. José Ribamar Justino, que há pouco tempo havia chegado de Brejo dos Anapurus com Moisés e Aureliano pra mudar de vida na Parnaíba, cada um com duas mudas de roupas dentro de uma mala de madeira, um pente de chifre e um pedaço de sabão de coco pra tomar banho, era a partir de amanhã o varredor de pátio da firma dos Moraes!