segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O JORNAL DAS MULTIDÕES

Edmílson Caminha

Foto ilustrativa

Duas emoções, pela grandeza e pela força com que chegam, devem ser das maiores e mais sublimes experiências por que o homem pode passar. Fazer o gol que decide o campeonato aos 45 minutos do segundo tempo, a torcida em peso festejando e gritando o nome do jogador, é uma delas; a outra é reger a Nona Sinfonia de Beethoven à frente de uma grande orquestra, guiar músicos e cantores com o poder de um simples gesto, saber-se responsável pela magia e pela beleza que sobem aos céus como se ao encontro de Deus. Junte-se a essas, para quem possui alguma vocação literária, a alegria de se ver publicado em jornal pela primeira vez. Foi o que senti no dia 10 de outubro de 1964, um sábado, quando a edição do jornal O Povo trouxe o pequeno artigo "Mestre acima de tudo", assinado por Edmílson S. Caminha Júnior, "aluno da 1ª série ginasial do Ginásio 7 de Setembro". Aos doze anos, quis homenagear o meu professor de geografia, José Maria Campos de Oliveira, nomeado pelo Ministério da Educação inspetor seccional em Fortaleza.

Escrevera-o a mão, em folha de caderno, e pedira a meu pai que o entregasse na portaria do jornal. Não sei que alma caridosa datilografou o original para publicação, fazendo-me sentir a figura mais brilhante do colégio, a pessoa de maior destaque na família... – afinal de contas, era um autor, meu nome estava nas bancas! Abertas as portas, vez por outra redigia algumas linhas sobre grandes cearenses, fatos importantes da história do Brasil – textos que, não viessem com assinatura, todos reconheceriam como de um adolescente que se esforçava por escrever bem. Passava pelo jornal e entregava à recepcionista o envelope com o artiguete, ouvindo o barulho ensurdecedor das máquinas a imprimir a edição que logo mais sairia às ruas. Na tarde em que não a encontrei, fui entrando corredor adentro até o gabinete onde se achava, sozinho, o diretor comercial, José Raimundo Costa. Leu rapidamente a matéria, indagou-me a idade, se dispunha de tempo livre, e fez a pergunta que quase me deixa sem voz: "Você gostaria de trabalhar no jornal?" Antes que fechasse a boca, respondi-lhe que sim, lógico! – como se não tivesse pais a quem pedir autorização para assumir o emprego... Estávamos em 1967, e eu, com quinze anos incompletos, me orgulhava de ser o mais jovem redator de O Povo, "o jornal das multidões", como se autoproclamava.

No colégio até às onze e meia da manhã, pegava o ônibus pra casa, almoçava correndo e à uma da tarde era o primeiro a chegar à redação, na Rua Senador Pompeu, 1082, centro de Fortaleza. O ambiente me fascinava – pela desordem dos birôs, em que mal se viam as máquinas de escrever, tamanha a quantidade de papel; pelo barulho da rotativa, que abafava o quarteirão; mas, sobretudo, pelo cheiro da tinta, tão forte que se difundia por todo o prédio. Quase diariamente, descia às oficinas para acompanhar a produção do jornal: as linotipos, tocadas como pianolas de ferro por homens nus da cintura para cima, e que até hoje não sei como funcionam; a mesa comprida, onde se ajustavam textos e manchetes para o fechamento da página; a fundição do chumbo, matéria das placas em forma de telha; e a enorme impressora, barulhenta como uma locomotiva, os cilindros a girar a não sei quantas rotações por minuto, quilômetros de papel correndo nas entranhas do monstro até que por cortes e dobras se transformassem nos cadernos de que se fazia o jornal; depois, a edição deslizava na esteira sob o olhar sereno do Piloto, de quem só guardei o apelido.

Logo no primeiro dia fui entregue, como aspirante a redator, aos cuidados de Marcelo Pontes, pouco mais velho do que eu mas, já naquele tempo, um dos melhores nomes do jornalismo cearense e, mais tarde, da imprensa brasileira. Seria o seu pica-fumo, o foca a quem teria de ensinar, entre outras coisas, que o algarismo 1 é o l minúsculo na máquina de escrever... Com Marcelo Pontes, querido colega e amigo fraterno, aprendi a lição da grande reportagem e a ciência do bom texto, e ao jornal O Povo devo muito do conhecimento satisfatório e da segurança razoável com que escrevo. Se o curso de comunicação me poderia ter iniciado em programação visual e fotojornalismo, não precisei frequentá-lo para saber redigir: nessa cadeira, a melhor escola é a redação do jornal, a ditadura da pauta, a obrigação da notícia, a guerra contra o tempo. Foi o que me provaram Agladir Moura, Odalves Lima, José Maria Andrade, José Mário Pinto, Macário Oliveira, Morais Né, Edmundo Vitoriano e Francisco Lima, entre tantos mais.

O dono de O Povo era Paulo Sarasate, ex-governador do Ceará e, naquela época, senador da república. Conta-se que Castello Branco o teria feito vice-presidente, não fosse o câncer de que já sofria por ocasião do golpe militar e que o mataria quatro anos depois. Quando em Fortaleza, Sarasate fazia tremer o jornal como um terremoto, pois não apenas assumia a direção da empresa mas a transformava em escritório político, para receber deputados e prefeitos, promover reuniões e atender eleitores. Impressionava-me o conhecimento que aparentava ter de todos os setores da casa – da redação às oficinas, do consumo de papel à corretagem de anúncios. Tanto se cria capaz de reescrever a matéria de um repórter quanto de ensinar a um linotipista como compor com perfeição. Sempre aos gritos, autoritariamente, no estilo nervoso que o caracterizava.

Certa vez, sozinho na redação, atendo ao telefone e recebo a ordem do senador para que lhe corresse em casa com as provas do discurso que fizera pela manhã, e no qual não admitiria erros. Nunca fora ao sobrado, no centro de Fortaleza, onde a governanta me recebe e convida para entrar – um momentinho só, o patrão está repousando no pavimento superior. Acomodo-me no sofá e espero dez, quinze, vinte minutos sem que chegue ninguém. Resolvo, então, subir a escada e bater à porta que me pareça a da alcova senatorial. Escolho a primeira à esquerda, e quem surge é Paulo Sarasate em pessoa
– de cueca samba-canção, as pernas muito finas e pálidas, a blusa do pijama entreaberta sobre o peito branco:

— O que você quer, meu rapaz?!

— Eu sou repórter do jornal, vim trazer o discurso que o senhor pediu...

— E você vai entrando assim?!

— Eu falei com a governanta, mas parece que ela se esqueceu de avisá-lo...

— Não se esqueceu não, ela me disse, era só esperar! Você é foca?

— Não, senhor. ("Se fosse, eu ainda estaria lá embaixo, sem saber se o senhor iria descer...", quase que dizia.)

— Vamos, entre!

Devo ter interrompido a sesta do casal na rede em que se encontrava Dona Albaniza, conforme o hábito bem cearense de dispor-se no sentido da largura, um meio termo entre o sentar-se e o deitar-se, para que o chão ao alcance dos pés proporcione o balançar confortável e gostoso. Foi a única vez que estive com Paulo Sarasate, homem que alguns temiam, muitos bajulavam e outros tantos criticavam, mas em cuja atuação todos reconheciam o gosto da política e a marca da inteligência.

Chegou 1968 e, com ele, uma dúvida: continuar no jornalismo – profissionalizando-me como autodidata, até que dispuséssemos de um curso de comunicação – ou me preparar para fazer medicina, realizando por meu pai o sonho que ele próprio não pudera concretizar. Na ilusão de que seria médico, passei no vestibular mas acabei desistindo da faculdade no terceiro ano, por absoluta falta de vocação para ambulatórios ou centros cirúrgicos. Longe da imprensa, não tive forças para abandoná-la de vez: escrevi sobre cinema, pratiquei a crítica literária e entrevistei alguns dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. Às redações só voltaria vinte anos depois, em 1987, para dirigir o departamento de jornalismo da rádio e da televisão educativas do estado do Piauí.

Passei, portanto, pelos três grandes meios de comunicação do mundo moderno: se a câmera fascina e o microfone seduz, o que me conquistou para sempre foram as teclas da máquina de escrever, o desafio do texto, a perfeição da manchete, o barulho da impressora, a corrida do papel, o cheiro da tinta, que me levam de volta a Fortaleza para um encontro, à uma da tarde, com o menino de quinze anos que me espera sozinho na redação de O Povo, "o jornal das multidões"...

(*) Veja abaixo a seção Decálogo, focalizando o escritor Edmílson Caminha.

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