A ALMA DO CRUZEIRO
Elmar Carvalho
Meses atrás o meu amigo Zeca Lima veio me visitar. Fora meu amigo de infância na localidade Canafístula. Jogamos bola, caçamos e trabalhamos juntos nas roças de nossos pais, na época da colheita, quando eram feitos os mutirões. Na nossa adolescência, os seus pais se mudaram para o povoado Batoque, distante umas três léguas, aproximadamente 18 quilômetros. Raramente voltamos a nos rever, mas quando nos encontrávamos, em alguma festa, vaquejada ou torneio de futebol, era sempre a mesma alegria, a mesma irmandade. Ele viera me perguntar se eu aceitava ser o padrinho de seu primeiro filho. É claro que isso era uma honra muito grande para mim. Um pai dar um filho para ser afilhado de alguém, sobretudo o primogênito, era uma honra máxima; prova maior de amizade não existia. Fiquei emocionado e aceitei o convite. De logo ele foi me avisando que o batizado seria na desobriga que o padre Mateus faria ao seu povoado, nos festejos da igrejinha, quando celebraria a santa missa e faria os casamentos e os batismos da meninada, dali a dois domingos. Disse que não se preocupasse, que no sábado eu já estaria em sua casa, para jogarmos conversa fora e tomarmos umas talagadas de boa calibrina, uma branquinha da puba ou uma serrana do Ceará, que eu já levaria em meus alforges. Nesse tempo eu ainda era solteiro, de modo que não tive nenhuma preocupação, e tive apenas o trabalho de selar o meu alazão esquipador e avisar os meus velhos pais, para que não se preocupassem.
Segui no sábado, conforme o combinado, de manhã cedo. Por volta das nove horas, estava passando pela localidade conhecida como Almas, onde ficava velho cemitério campestre. Ficava em pleno e plano descampado dos tabuleiros, no meio do nada, no meio da solidão, porém, no entorno, havia moitas de mofumbo, macambiras, xiquexiques, mandacarus, coroatás, unhas-de-gato, sabiás e outras plantas espinhentas. Diziam que fora inicialmente um cemitério indígena e depois das pessoas da redondeza. Não havia nenhuma casa por perto. Parecia que todos queriam ficar distante do campo santo. Entretanto, em derredor, no raio de uma légua ou mais, todos os mortos eram ali sepultados. Comentavam que alguns passantes já tinham visto umas visagens, rondando por entre as sepulturas, quase todas simples, quase todas covas chãs, sem nenhum adorno ou construção. Falavam em luzes que vagavam sobre as covas; luzes mortiças, luzes sem fogo, que não esquentavam e quase não alumiavam. Eram como se fossem as luzes da própria morte, que pareciam simbolizar. Não me preocupei com isso. Afinal, como diz o ditado, nunca vi rastro de alma e nem couro de lobisomem.
O compadre e amigo Zeca me recebeu com muita alegria, juntamente com a comadre Damiana. Mataram um capão, e fizeram uma cabidela de primeira. De tardezinha, fomos tomar banho no riacho, e conversamos bastante. À noite jogamos um carteado, com vizinhos, apenas por pura diversão. Quando um dos jogadores soube de onde eu viera, tratou de me recomendar que não passasse pelo cemitério das Almas à noite, pois recentemente correra a notícia de que uma pessoa vira uma assombração, e correra feito um louco, até cair estafado e desmaiado, quase morto, no meio do caminho. Foi encontrado de madrugada, por umas pessoas que iam passando, ainda em estado de pavor. Apesar de não ter medo, não fiz nenhuma bravata e assegurei que sairia a tempo de passar no local com o sol ainda alto. Dei o caso por encerrado, e não toquei mais no assunto.
No dia seguinte, após o batismo de Pedro, meu afilhado, fomos para a casa do compadre, juntamente com alguns convidados. Ficamos debaixo de frondosa mangueira, que dava uma sombra que quase não acabava mais. Foram abatidos dois porcos e algumas galinhas, de modo que a comemoração foi bastante farta e animada. Um dos convidados era o Chico Malaquias, um dos mais afamados puxadores de fole de toda aquela região. Além de beber como gente grande, o caboclo comia como um condenado e tocava com gosto, com muita arte e competência. Quando já estava perto de três horas da tarde, o colega do carteado não se esqueceu de me advertir: “Amigo Juvêncio, espero que você deixe para viajar amanhã, para termos o prazer de desfrutar de sua companhia por mais tempo. Mas, se realmente quiser ir hoje, coisa que não desejo e não aconselho, é melhor ir logo, para evitar algum encontro com alguma alma desgarrada do cemitério... Eita, lugarzinho pra me dar sobrosso e calafrio!” Não sei se foi já efeito da cana, ou se foi apenas desconfiança minha, mas notei um certo tom de zombaria na voz do caboclo, como se fosse uma espécie de desafio, para testar minha coragem ou para me desmoralizar. O certo é que aquelas palavras serviram apenas para que eu ficasse mais determinado em viajar naquele mesmo dia. Disse ao Nonato, era esse o seu nome, que não se preocupasse, que na hora certa eu seguiria meu caminho. Ouvi outras músicas do sanfoneiro Malaquias, que, de vez em quando largava o copo e a colher, e arregaçava o fole para tocar uns baiões de Luiz Gonzaga, tomei mais umas doses da serrana, e decidi que já era hora de ir embora. Já passava das cinco da tarde.
O compadre Zeca ainda me chamou de lado, pedindo para eu não me aborrecer com a besteira do Nonato; que eu não precisava mostrar coragem pra ninguém, mas que já estava tarde, e era melhor eu ficar e seguir na madrugada seguinte. Agradeci, desconversei, mas disse que tinha um trato de manhã cedo, e não podia faltar. Me despedi, tomei a saideira, acenei do meu cavalo, e tomei o rumo de casa. Quando me espantei, ao sair da curva que rodeava um capão de mato, já me deparei com o campo santo. A lua estava na fase de quarto-minguante. Porém, deu para eu ver um vulto perto do cruzeiro. Como disse, não tinha medo de alma, mas aquelas histórias de aparições que a gente ouve contar na infância servem para nos sugestionar, para nos arrepiar a pele, para nos fazer ver o que de fato não existe. O fantasma, ou seja lá o que fosse, estava defronte ao cruzeiro, isso eu via muito bem. Havia momentos em que parecia se ajoelhar; depois se levantava; depois, se abaixava novamente, como se seguisse um ritual entremeado de genuflexões. Devo informar que o caminho, em determinado ponto, passava muito perto do cruzeiro, fixado próximo do portão do cemitério.
Pensei: “Ou vou ter que dormir no meio do mato, sem nenhum conforto, ou vou ter de voltar e servir de gozação para o cabra Nonato, ou então vou fazer uma volta, pelo meio do mato, sem muita visão, me arriscando, sem saber direito por onde vou seguindo, podendo cair em algum buraco, atoleiro ou moita de espinhos... Além do mais, o que acho ainda pior, vou ficar na dúvida sobre se realmente vi uma alma, ou se o vulto é de algum vivente, algum maluco pagador de promessa, rezador dessas quebradas...” Mesmo com certo sobrosso, tomei a deliberação de prosseguir, para saber que visão era aquela, e para não contar conversa fiada. Para piorar a minha situação, a lua entrou em densas nuvens e o cruzeiro e o rezador desapareceram de minha vista. Mas não recuei no firme de propósito de descobrir a verdade sobre aquela imagem que rezava tão contrita naquelas horas da noite. Quando já estava quase na frente do portão, a lua saiu das nuvens, e eu pude ver que a alma não passava de uma vaca branca a pastar perto do rústico cruzeiro. Quanto baixava a cabeça para comer, parecia se ajoelhar; quando a erguia para melhor mastigar, parecia, vista frontalmente, à distância e na fraca luminosidade, um homem em pé. Disse, para os meus botões, que se eu não tivesse sido firme em minha decisão de ver o que realmente era o que parecia ser coisa do outro mundo, eu seria mais um a espalhar pelos sertões que havia visto uma assombração.
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