segunda-feira, 15 de novembro de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


TRAIÇÃO FRATERNA

ELMAR CARVALHO

Eram praticamente iguais. Diria iguais, pois, se existiam diferenças físicas, a olho nu não se notava. Um imitava a assinatura do outro com perfeição. Às vezes, por brincadeira ou por conveniência, um se apresentava para fazer negócio em lugar do outro, inclusive em casos de contrato de empréstimo bancário. Chegaram a tal arte de dissimulação, que, em algumas ocasiões, se apresentavam simultaneamente com os nomes trocados, um se fazendo passar pelo outro. Muitos só os chamavam de Gomes, pois não sabiam se estavam em presença do Cosme ou do Damião. Casaram no mesmo dia. Foram morar na grande casa que herdaram. A residência tinha duas suítes e vários quartos, de modo que seria mais econômico para os dois. A mulher do Cosme se chamava Isaura. Era uma morena curvilínea, possuidora de muito dengo e requebro, de voz melosa, derretida, pura volúpia e feitiço. Damião se casou com Josefina, mulher esbelta, alva, alourada, de pouco sorriso, quase austera, sempre a trabalhar. Decidiram não ter filhos nos primeiros três anos de casamento. Os gêmeos quase não tinham amigos, porquanto eram unidos e como que se completavam e se bastavam entre si. Por brincadeira e talvez por desenfastio da mesmice e do tédio, um dia Cosme propôs um se passar pelo outro, quando chegassem em casa. Iriam para o quarto, mas após uns vinte minutos desmanchariam a brincadeira. Ficou combinado que não haveria beijo, e nem sexo, claro. Na casa de um amigo, trocaram a roupa, e ninguém notou nenhuma alteração, de forma que um se passou pelo outro, sem nenhuma dificuldade. Eram dez e pouco da noite, quando os dois chegaram em casa.

O Cosme foi para o quarto de Damião e vice-versa. A Isaura já estava em seu quarto, enquanto Josefina fazia um bordado, porquanto detestava ficar sem fazer alguma coisa. Mas, com a chegada do marido, resolveu encerrar o trabalho e foi para a alcova, onde deitou-se ao lado do suposto marido, com o qual conversou um pouco, sem desconfiar de nada. No outro quarto, Isaura aconchegou-se a Damião, pensando ser o seu marido. O homem a abraçou. Ela foi se aconchegando mais e mais, e já o acariciava no pescoço e no tórax. Damião já há algum tempo reparava nas curvas da Isaura e na sua faceirice, tão diferentes da secura de corpo e de espírito de Josefina. Não conseguiu seguir o Evangelho ao pé da letra, e chegou a desejar a cunhada, mas reprimiu a sua volúpia com determinação e com orações, tanto que a farsa que ele e seu irmão estavam fazendo não fora proposta sua. Mas agora, sentindo o calor daquele corpo desejado, sentindo aquela mão suave e carinhosa a lhe afagar a pele, visualizando as curvas, os seios empinados e as nádegas firmes e fartas, ficou transtornado e perdeu a noção do que fazia, e encostou-se fortemente em Isaura. Esta, notando a sua tesão, desceu a mão sábia pelo seu corpo, para lhe apalpar as partes mais íntimas. Nesse momento, o Cosme resolveu desfazer a brincadeira e gritou pelo seu nome, mandando que ele deixasse o seu quarto, uma vez que desejava repousar. Damião e Isaura demoraram um pouco a se recompor, sobretudo o homem, que teve certo trabalho em desengatilhar e ensarilhar a arma, que já estava em ponto de bala. A partir desse dia, os dois passaram a se olhar languidamente, com concupiscência mesmo, quando se encontravam a sós, nos breves momentos em que os cônjuges se ausentavam para fazer alguma coisa.

Certo dia em que Josefina foi lavar roupa no córrego e Cosme teve que ir atrás de uma rês que desejava vender, ficaram somente Damião e Isaura. Os dois ardiam na febre do desejo. A mulher foi para a cozinha. O homem aguardou um pouco. Quando chegou até onde a morena estava, viu-a debruçada sobre a pia, a mostrar as belas coxas roliças e a carnação dura e rotunda da bunda. Damião a abarcou por trás, e com as mãos foi imediatamente lhe apertando e acariciando os seios. Ali mesmo, na cozinha, o homem deitou a mulher sobre a mesa e a possuiu com força e sofreguidão, com desespero, como se o mundo fosse acabar, em meio à tortura do remorso. Isaura se retorcia e se contorcia; por vezes estremecia, como se estivesse com febre terçã. Esses entreveros foram acontecendo com mais perigosa assiduidade, e o peso de consciência dos culpados foi se tornando quase insuportável, porquanto conviviam com os cônjuges traídos. Certa manhã, os dois não foram encontrados. Cosme procurava Isaura, e Josefina procurava Damião. Logo, esta descobriu no meio de suas agulhas e meadas uma carta assinada pelos fujões. Pediam perdão, mas diziam que o amor que os unia fora irresistível. A missiva dizia que Damião levava os documentos de Cosme, para que este não passasse pela vergonha dos comentários maldosos e das piadas debochativas que tanto atormentam os maridos enganados; deixara os seus, para que Cosme se fizesse passar por ele. Com o tempo, e não demorou tanto tempo assim, Cosme começou a reparar que Josefina também tinha seus atrativos, tinha sua suave e delicada beleza, sem a ostensividade das curvas arrogantes de Isaura. E era uma mulher meiga, econômica e incansável no trabalho. Esta o achava bonito, até porque era ele a cópia exata de seu marido, sendo porém mais sério e mais dedicado ao trabalho. Não demorou muito, passaram a ser efetivamente marido e mulher, na cama e em qualquer outro lugar.

Desse modo, sem tiros, sem punhaladas e sem tragédia, a história ficou bem resolvida, e nunca se soube de nenhuma traição. E os dois casais ainda economizaram o que gastariam com divórcio e novo casamento. Apenas as pessoas nunca entenderam porque Cosme fora embora com Isaura, e ficavam especulando sobre que desentendimento teria havido entre os gêmeos, que eram tão parecidos e tão amigos.

2 comentários:

  1. Há certas brincadeiras que não se deve tirar, caro poeta. Cosme ingenuamente propôs um "negócio" no qual teve perdas sem direito a reclamar indenização. Perdeu a identidade e a fogosa mulher! Então, prezado bardo, isso não seria uma tragédia, embora sem sangue derramado?

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  2. Não, professor Nelson, não foi bem assim. Lembre-se que o Cosme "herdou" a Josefina, que tinha lá os seus encantos e atrativos, além de ser prendada, trabalhadora e de bom caráter. Ademais, ele já estava um tanto "enfastiado" da curvilínea Isaura.Foi, talvez, uma tragicomédia.

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