quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


23 de fevereiro

AS PERIPÉCIAS DA AUTORIDADE

Elmar Carvalho

No domingo, após o lançamento do livro do Fonseca Neto sobre o padre Vicente de Paula, conversei com o médico Humberto Guimarães. Além de psiquiatra respeitado, é um notável escritor e um agradável contador de histórias, em suas conversas, sempre interessantes. Seu livro Abyssus é uma obra de muito valor, em que ele coligiu pequenos ensaios de natureza biográfica sobre notáveis figuras da cultura universal. São textos densos, recheados de informações curiosas sobre essas personalidades, desfiadas em agradável narrativa, que prendem a atenção do leitor. Esses ensaios lhe revelam a admirável erudição, seu preparo intelectual, e sem dúvida seu enorme trabalho de pesquisa, na busca de coletar essa vasta gama de conhecimento.

Contou-me ele que certa autoridade dos cerrados piauienses tinha o hábito de dançar, para passar o tempo e driblar o tédio de seu insulamento em longínquo rincão. Indo esse homem a uma festa interiorana, tirou certa moça para dançar. Nesses tempos distantes, as mulheres, ao menos as das plagas mais distantes, não tinham elástico em suas calcinhas, que, comparadas às de hoje, seriam “calçonas”. Essas peças íntimas tinham as peças traseiras e frontais ligadas por laços e/ou botões. A nossa brava autoridade tinha uma dança espalhafatosa, em que ele levantava muito um dos braços, fazendo rápidos giros sobre o eixo do próprio corpo, além de se deslocar por todo o salão em vertiginosa velocidade. Com tantos giros e rodopios, com tantas marchas e contramarchas, com tantos requebros, saracoteados e quebra de asas, além do apressado deslocamento, com passos longos e sacudidos, a sua parceira terminou forçando o amarradio da calcinha, vindo esta a lhe cair pelas pernas. A descida da veste íntima funcionou como uma espécie de peia de prender animais, dificultando-lhe os passos e fazendo-a despencar. No seu cinematográfico estabaque, terminou arrastando a intrépida autoridade, que lhe caiu por cima, em pleno salão de dança, o que deve ter sido motivo de risos e chacotas, pois a situação inusitada deve ter sido realmente hilária.

Na localidade, havia uma jovem, muito bela e muito pálida, o que me fez lembrar as monjas maceradas dos poetas simbolistas. Na escola, na qual a autoridade exercia o magistério, invariavelmente o mestre exaltava a beleza da moça, mas sempre ressaltando a sua palidez, com certa ênfase e impertinência. Chegou ao ponto de lhe receitar umas pílulas, então em voga. Pelo visto, o homem, além de pé de valsa e de forró, professor e autoridade, era também uma espécie de facultativo, como se dizia outrora. Como a palidez da bela jovem continuasse, o nosso heroi, em virtude de ela morar em pequena casa, na companhia de um irmão, comentou que ela provavelmente estava sendo “possuída” pelo rapaz, e que sua cor pálida se devia a isso. Ora, naqueles idos, em que as moças se mantinham virgens até o casamento, mormente nos insulados rincões da hinterlândia piauiense, essa suspeita era uma ofensa de extrema gravidade, ainda mais grave por causa do ingrediente da acusação de incesto.

A família da jovem ficou “injuriada”, como se falava no local e na época, e prometeu dar cabo da autoridade. Esta, que morava na dependência de um prédio público, um tanto isolado à noite, ouviu barulhos estranhos, certa madrugada, como se alguém estivesse tentando arrombar a porta. Sem perda de um segundo, fugiu pelos fundos, e saltou o muro do edifício. Em virtude de seu cargo, conseguiu adquirir um revólver na capital, já que se disse ameaçado de morte. Retornando a sua jurisdição, notou certa feita um movimento estranho, perto de um arbusto, ao atravessar a escura praça da cidade, porquanto não havia luz elétrica e nem era noite de plenilúnio. A autoridade não vacilou, e sem delongas atirou contra o vulto. E o viu cair imediatamente. No dia seguinte, na praça central da cidadezinha, foi encontrado morto um inocente e inofensivo jegue, que costumava aparar os capins da pracinha, podendo ser considerado o seu vigia e jardineiro. Se não fosse uma ofensa aos asnos, muitos poderiam perguntar sobre quem era mais jumento, se o próprio, ou se a autoridade que o abateu.

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