segunda-feira, 4 de abril de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


A VELA DE ESTEARINA

Elmar Carvalho

Lúcia saiu de sua pequena casa de palha. Deu uma volta ao seu redor, como se procurasse alguma coisa ou alguém na noite fechada, em que quase nada se via. As estrelas brilhavam intensamente no céu sem nuvens. Era quase meia-noite. A mulher entrou na casa novamente e logo saiu com uma vela de estearina acesa. Sem vacilar, jogou-a em cima do teto de palha. Rapidamente o fogo se alastrou por toda casa. Lúcia não ouviu os gritos das duas crianças, uma de cinco meses, outra de ano e meio, aproximadamente, porque saiu em desabalada carreira, pelo caminho estreito.

Só foi parar na casa mais próxima, que ficava a trezentos metros. Gritou com quanta força tinha:
– Raimundo, Josefa, acudam, acudam, pelo amor de Deus! Minha casa pegou fogo...
Com o alarido, o casal e seus filhos logo acordaram e foram ver o que acontecera, no intuito de prestarem ajuda. Nada mais havia a fazer. O casebre fora consumido pelo fogo, exceto alguns esteios e mourões; as duas criança estavam mortas, com o corpo carbonizado. Lúcia estendeu-se no chão, no terreiro do que fora sua casa, com as duas mãos a cobrir o rosto, a se perguntar sobre o que iria fazer. Depois de muita insistência, seguia com os vizinhos para pernoitar na casa deles.

Ao amanhecer, Raimundo, de bicicleta, foi à cidadezinha de Ingazeira, onde comunicou o fato ao Delegado de Polícia. Este disse que ia investigar o caso, para saber se o incêndio fora de origem criminosa, ou se fora apenas uma triste fatalidade. Dinâmico e cumpridor de seus deveres, tratou logo de tomar o depoimento de Raimundo. Ficou sabendo da situação sócio-econômica de Lúcia, que era de miséria quase absoluta. Tomou conhecimento de que o marido lhe deixara há um ano, ficando ela com um filho pequeno e outro na barriga. Deixou pouca coisa no paiol, produto de sua roça de subsistência; alguns sacos de arroz (ainda na casca, que a mulher tinha que descascar no pilão de madeira), feijão, milho, jerimum, mandioca. De modo que, após alguns meses, ela teve que ser ajudada pelos vizinhos, parentes e irmãos, que moravam no entorno, num raio de até dois quilômetros de distância, sobretudo durante a época do parto e do resguardo.

No início, Zé Doca, o marido de Lúcia, ainda lhe mandava alguma pequena quantia, de São Paulo, onde fora a pretexto de trabalhar, através de vale postal. Depois, as remessas foram escasseando, até cessarem de todo. Tiveram a notícia, por intermédio de um amigo de Zé Doca, que viera de férias, de que ele se amigara com uma mulher divorciada, e que sustentava os três filhos dela. Tudo isso Raimundo contou ao delegado, acrescentando que Lúcia tivera notícia da amigação do marido, e ficara muito triste com esse fato. A autoridade policial ouviu as pessoas referidas pelo depoente e outras do relacionamento de Lúcia. Visitou a tapera queimada. Tirou fotografias; recolheu objetos; fez medições e providenciou os autos e as perícias de praxe. Viu uma candeia, estragada pelo fogo, a meio metro de onde fora a parede da camarinha, onde dormiam as crianças e a mãe. Estranhou a pequena vela caída no meio de uma dependência, que servia de sala, onde eram guardados os poucos e pobres móveis e utensílios da casa.

Na sua linha investigativa, imaginou que a mulher, em desespero, pela miséria e pelo abandono do marido, deprimida certamente, jogara a vela, supondo que ela seria consumida totalmente pelo fogo, e não deixaria vestígio. Contudo, logo que a palha do teto começou a pegar fogo, a vela caiu no meio da saleta, tendo a chama sido extinta pela queda, e não sendo alcançada nem pelas labaredas das paredes e nem pelas do teto, ficando no meio da sala como um forte indício do ato de desespero de uma mulher enlouquecida pelo sofrimento. Quando interrogada, Lúcia negou com veemência haver feito isso, e disse não usar velas, que eram caras; que preferia usar a candeia a azeite de babaçu, que ela mesma produzia. Acrescentou que o incêndio poderia ter sido ateado por algum inimigo desconhecido seu ou de seu marido. Falou com firmeza, com convicção, como se realmente acreditasse no que dizia. O delegado, embora não tenha encontrado nenhuma outra vela no local do incêndio, não se convenceu da justificativa, mas não teve elementos para pedir sua prisão preventiva.

Poucos dias depois, foi procurado novamente por Raimundo. O caboclo lhe viera trazer a notícia de que Lúcia se enforcara num dos galhos do pau-d'arco, que existia no terreiro da tapera queimada. A autoridade foi constatar o fato. Lá, viu o cadáver pendente de uma corda de tucum. O ipê amarelo, no glorioso apogeu de sua floração, despira-se de todas as suas folhas, para ostentar apenas as suas belas flores, que pendiam como soberbos lustres. O delegado, ao ver a árvore, embalada ao açoite do vento, derramar as suas flores de ouro sobre o corpo da enforcada, teve a plena certeza de que fora ela que ateara o incêndio.

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