16 de maio Diário Incontínuo
O VELHO CHALÉ DE JOSÉ DE FREITAS (PARTE 2)
Elmar Carvalho
Algumas vezes íamos até o cimo do morro, onde ficava o
Cristo Redentor, hoje infestado de antenas, que lhe empanam a beleza;
outras vezes, nos dirigíamos até a madona, ou N. S. do Livramento,
a segurar o menino Jesus, bela obra do escultor Murilo Couto, que
projetou a belíssima Praça Landri Sales, em Teresina, e esculpiu
outras estátuas. Não sabia que o morro tinha nome. Parece que hoje
o denominam de Morro do Fidié. Prefiro chamá-lo de Morro do
Livramento, numa evocação ao nome antigo da cidade e em memória
das lutas libertárias dos piauienses.
Nas proximidades do chalé, ficava a casa do falecido
senhor Firmo. Não sei o fundo de verdade na história que se
contava, mas ouvira falar que esse homem cometera uma façanha um
tanto homérica, e portanto digna de ser narrada. Segundo essa versão
tradicional, ele assumira um compromisso com a Casa Almendra de lhe
entregar, certo dia, algumas sacas de produtos agrícolas. Morava
esse homem numa localidade distante, não me recordo se em Nova
Olinda. Acordou cedo, ainda noite escura, e foi à procura dos jegues
para cumprir o trato. Por algum capricho desses caprichosos animais,
Firmo não os encontrou no pasto, onde eles costumavam pernoitar.
Tendo esse rurícola muito orgulho em cumprir suas
promessas, e sendo um homem novo e robusto na época, não teve
dúvida: pegava uma das sacas e levava até um ponto distante, depois
retornava para pegar as outras; desse ponto, as pegava, uma por uma,
e as conduzia até outro local mais adiante, até, enfim, deixá-las
na porta da Casa Almendra, ainda cedo da manhã. Diz a lenda que o
coronel José de Freitas, ao ver o caboclo, o cumprimentou, e,
observador, perguntou pelos animais que haviam conduzido os produtos.
Firmo contou-lhe o feito epopeico, que causou assombro
ao rico comerciante. A partir de então, José de Freitas passou a
ajudar Firmo, que veio a se tornar um homem considerado próspero, ou
mesmo rico pelos parâmetros da época. Não sei, repito, até onde
vai a verdade, e onde começa a lenda. Sei que é a história de um
homem rico que respeitou um caboclo de fibra e de honra; de honra
porque honrava a palavra empenhada, e por conseguinte honrava-se a si
mesmo.
Aos 14 anos de idade, em José de Freitas, por gostar de
literatura, cultura e história, eu imaginava que o chalé deveria
ser transformado em museu. Tempos mais tarde, em poema datado de
26.08.1991, louvei a magia e o encantamento desses meus felizes anos
josé-de-freitenses. Eu era fiscal da extinta SUNAB e nela, nessa
data, trabalhavam, como funcionários cedidos ou à disposição da
autarquia, os primos, ambos nascidos na velha Livramento, Francisco
Costa e Francisco da Costa e Silva Sobrinho, o primeiro como fiscal,
vez que ele era fiscal do estado, e o segundo, como titular da
Delegacia da SUNAB no Piauí. Anunciei-lhes o poema, e entusiasmado,
ainda jovem, li de forma retumbante essa ode à bela terra, onde fui
tão feliz. Francisco Costa, radialista e um dos maiores conhecedores
e cultores da Jovem Guarda, me havia dito, nesses tempos sunabianos,
e confirmou-me isso recentemente, que se recorda de mim a jogar bola,
como goleiro, em sua cidade, e a defender, com fervor, os meus pontos
de vista.
Quando recebi o título de Cidadão de José de Freitas,
por proposição do vereador José de Araújo Chaves Neto, o
Bacharel, mandei confeccionar um banner com esse poema e o doei,
devidamente emoldurado, à Câmara de Vereadores. Encaminhei um outro
banner ao prefeito da época, mas não sei se foi afixado em algum
lugar. Sei que o meu amigo Lirton Nogueira Santos, magistrado e
historiador, ornou o átrio do fórum com um quadro desse texto
poético, que também se encontra na Fazenda Ininga, recentemente
adquirida pelo professor e teatrólogo Paulo Libório, localizada nas
cercanias da cidade, e que aos poucos está sendo transformada em
espaço cultural e museu. Nessa vetusta fazenda nasceram o
empreendedor e engenheiro Antônio José Sampaio, fundador da
legendária fábrica de laticínios de Campos, hoje Campinas do
Piauí, e o padre Sampaio, que teria sido confessor da princesa
Isabel. O imponente prédio da indústria ainda existe, embora quase
em ruínas.
Em belo texto publicado no Portal do Sertão, o cantor e
humorista João Cláudio Moreno elogiou a restauração do velho
chalé, que me causava admiração, fascínio e um quase medo em
minha já distante meninice. Soube que será uma escola. Em meu gosto
pessoal, preferiria que fosse transformado em museu e espaço
cultural, que bem poderiam servir para atividades extracurriculares,
além de atração de turistas e promoção de eventos culturais, e
mesmo podendo conter biblioteca e videoteca. De qualquer modo, fica
lançada essa ideia e essa possibilidade. Sem dúvida, foi uma grande
obra a restauração da Vila do Tejo, o velho chalé, que me
despertava a imaginação em minha meninice.
LIVRAMENTO:
PEDRA E ABSTRAÇÃO
(roteiro
sentimental de José de Freitas)
Elmar Carvalho
Que
é Livramento?
Livramento
é
uma revoada de santos,
anjos
e meninos sobre um morro
que
também voa.
Onde,
agora, o morro?
O
morro continua lá
e
em minha memória incessante,
escalado
por
meninos que são anjos
do
além do bem e do mal.
No
morro as quedas
ficaram
suspensas
entre
o cair e o voo
por
milagre ou magia,
ou
simples brincadeira
de
algum anjo travesso.
O
visgo que visgava
os
vim-vins de minha infância
ainda
me visgam àquele
sítio
de sonho
mais
que sonho:
sonho acordado.
Os
santos ainda estão lá,
em
pleno vôo de pedra e abstração
e
de prodígio que não assombra
em
seu enigma desvendado.
Em
mim permanece
mais
forte que nunca
o
gosto mais que gostoso
das
frutas que furtei
dos
quintais franqueados
em
pródiga dádiva.
Sinto
ainda sempre e agora
uma
ampulheta derramar sobre mim
o
frescor macio da areia e a sombra
verdoenga
da mangueira,
e
me trazer intacta e completa
a
minha mais feliz meninice.
Recordo
o açude
em
que fui tão menino
como
não mais pude
ser,
desde então.
E
do açude
os
criolis ainda me chegam
em
seu sabor acredocetravoso
de
infância e recordação ...
As
partidas de futebol
ainda
se repetem em minha memória:
video-tape
que não se cansa
de
se repercutir
em
seu interminável repeteco.
No
chalé, medrosos,
os
fantasmas ainda se abrigam
e
se escondem dos vivos.
Antigos,
baratas passeiam
e
ratos rondam por entre
os
móveis do nunca mais.
A
cidade continua a mesma,
eu
continuo o mesmo
e
no entanto ambos mudamos
e
continuamos os mesmos
no
eterno retorno de nós mesmos.
Que boas lembranças esse texto traz. Parabéns!
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