13 de junho Diário Incontínuo
A CIDADE DA MEMÓRIA
Elmar Carvalho
No livro As Cidades Invisíveis o viajante veneziano
descreve ao imperador dos tártaros, Kublai Khan, as cidades que ele
supostamente teria visitado. Relata as singularidades de cada uma, e
o comportamento peculiar ou bizarro de seus habitantes. De algumas
cidades, como Diomira, alguém guardará a beleza que terá visto em
outras cidades.
A exemplo de Isidora, muitas cidades têm o seu “murinho
dos velhos que veem a juventude passar”. Os velhos naquele recanto
conversam acerca de seus desejos, que são apenas diáfanas
recordações. Sempre cada pessoa verá a sua cidade de uma maneira
diferente de outra pessoa. E a mesma pessoa poderá ter visões
diferentes de sua cidade, conforme o tempo e a emoção em que a
situe. É que da mesma maneira que Zaíra, uma cidade pode ser feita
das relações entre suas medidas e os acontecimentos do passado.
As cidades da memória são enganosas, e podem ter um
poder maligno ou benigno como Anastácia, uma das cidades relatadas
ao Grande Khan por Marco Polo. Na verdade, as cidades sempre se
apresentam de forma diferente para cada visitante, conforme o ângulo
em que foi vista pela primeira vez, de acordo com o acontecimento,
triste ou alegre, que ele vivenciou. E como Zirma, pode ser
redundante, a repetir-se, a repetir-se sempre para deixar alguma
imagem tatuada no pergaminho da alma.
Em certo ponto da narrativa, o Grande Khan e Marco Polo
parecem convergir no entendimento de que o viajante e narrador,
quando falava das várias cidades, estava na verdade a falar de uma
única e mesma cidade: Veneza. Veneza com suas gôndolas, românticas
e algo antiquadas, seus canais, suas águas, seus palácios
suntuosos, suas praças e seus mistérios. Quase todo homem parece
ter uma cidade eleita, quase sempre a da sua infância e
adolescência; após atingir meio século de vida, a ela sempre
almeja retornar, ainda que somente através da lembrança e da
emoção, na busca inglória do tempo proustianamente perdido.
Através da memória e da saudade, jamais ele se
decepcionará. Sempre a sua cidade será a cidade que ele guardou em
seu coração, em suas recordações. Revê-la poderá ser uma
traição, uma cilada, uma armadilha, porque jamais ele retornará à
cidade que imaginou em sua saudade. Algo terá mudado. Muitas pessoas
terão mudado de hábito, ou até mesmo se mudado para outra urbe. O
cenário mudou e a ambiência mudou. Jamais ele encontrará os
formosos seios de Duília, que lhe encantaram na adolescência. A
dona dos apetitosos seios terá perdido o encanto de sua juventude, e
os seios, como dois pomos amargos, estarão murchos e disformes.
No magnífico conto Viagem aos Seios de Duília, de
Aníbal Machado, José Maria, após mais de quarenta décadas de
ausência e 36 anos de serviço público, como funcionário detentor
de “competência e austeridade exemplar”, no dizer de Adélia, a
moça que o saudou, enjoado do tédio da aposentadoria, empreendeu
penosa viagem ao pequeno burgo de sua infância e adolescência,
perdido nos socavões e cafundós das Minas Gerais, no sonho de
encontrar os dois pomos encantadores de Duília, que ele entreviu
apenas por alguns segundos.
O alumbramento durara apenas uns segundos, quando a
jovem, talvez por piedade, lhe abrira o decote da blusa, mas estava
durando uma eternidade. Ao final da desgastante viagem ao rincão de
sua juventude, reviu a mulher. Estava velha e alquebrada. A beleza
dos seios se perdera, sem deixar vestígios. No breve e amargo
diálogo, o homem disse que fora à procura de seu passado. A mulher
retrucou:
- Viajar tão longe para encontrar com uma sombra! Veja
a que fiquei reduzida.
E ainda o advertiu de que ele não deveria ter voltado
ao lugar de suas primeiras ilusões. Eram apenas duas sombras, que
não conseguiram se encontrar. José Maria não reviu a mulher, cujos
seios altivos e exuberantes lhe encantaram por fugidios segundos, em
sua adolescência. Viu apenas a ruína do que ela fora. E ele próprio
era o escombro de si mesmo. Da mesma forma, seguindo a admoestação
de Duília, talvez não seja recomendável retornar à “cidade
invisível” de nossa saudade, que talvez, à semelhança da cidade
mítica de Maurília, remanesça somente em nossa memória ou em
antigos e encardidos cartões-postais.
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