17 de janeiro Diário Incontínuo
BUCHADA DE BODE NA FAZENDA DO ROCIO
Elmar Carvalho
No dia do lançamento de meu livro Bernardo de Carvalho
– O Fundador de Bitorocara, encontrei-me com o amigo João Luís
Queiroz. É ele médico veterinário e dono de uma loja de produtos
destinados à agricultura e à pecuária. Fundou, juntamente com
Elton Andrade e outros companheiros, a Associação dos Criadores de
Caprinos e Ovinos de Campo Maior – Ascamcco, que funciona na antiga
sede da Fazenda Rocio, no Bairro São João, no local onde outrora
eram realizadas as exposições agropecuárias.
Em presença do professor Zé Francisco Marques,
disse-lhe que minha mãe havia descoberto uma senhora que era uma
exímia preparadora de buchada de bode, e que eu iria encomendar essa
iguaria por ocasião de minha próxima visita a meus pais. O João
Luís ficou interessado e me perguntou a data de minha vinda. Em
seguida, disse que ele mesmo iria mandar preparar uma buchada, a ser
feita com bode de seu próprio rebanho. Marcamos a data e o local do
repasto.
No domingo agendado, nos encontramos na casa grande da
extinta Fazenda do Rocio. Ficamos no alpendre que possibilitava a
visão de umas árvores frondosas e de uma nesga do tabuleiro
campomaiorense, apesar de o imóvel ficar atualmente encravado em
área urbana. Fizeram parte do ágape, além do anfitrião, o Zé
Francisco, o professor Neto Chuíba, senhor feudal do sítio Carajás,
o universitário Guilherme Queiroz, filho do João Luís, e este
cronista.
Além do multicitado quitute, vieram outras iguarias,
entre as quais um delicioso sarapatel. Tudo foi preparado pela
moradora da sede da Acampi, que se esmerou no preparo do repasto, que além de farto foi supimpa. Todos fomos unânimes em
reconhecer a qualidade gastronômica dos pratos ofertados, que
deglutimos com muito brio e entusiasmo, em meio a alegre e
descontraída libação. Sendo João Luís Queiroz um grande
apreciador da cultura nordestina, sobretudo das cantorias, dos
desafios de repentistas, dos poemas de cordel e do autêntico forró
nordestino, nos brindou com belíssima camisa em homenagem a Luiz
Gonzaga, o insuperável e eterno Rei do Baião, que passamos a
envergar imediatamente. Parecíamos estar em sua fazenda do Exu. Ao
final, fomos enquadrados pelo meu irmão Antônio José, que como um
legítimo cangaceiro virtual nos colocou sob a mira de uma câmera
fotográfica.
Como é de minha praxe, propus que fizéssemos uma
rodada do que chamo de discursos-relâmpagos, referentes ao evento.
Para dar o exemplo e estimular os demais amigos, iniciei a peroração.
Enalteci as qualidades e virtudes de cada um dos presentes. Recordei
que quase oito anos atrás, a saudosa mãe do João Luís, a pedido
de meu pai, orou por minha saúde, e me enviou um escapulário, que
me acompanhou durante muitos anos, em sinal de Fé e de agradecimento
pela minha cura. Seus pais, Francisco e Nazaré, foram amigos dos
meus. A seguir fiz a louvação da bela paisagem do entorno, ainda um
tanto bucólica, o que mais se acentuou com a presença de algumas
reses bovinas, que coroaram a festa, dando-lhe um aspecto também
pastoril. Alinhavei considerações sobre o histórico da velha
fazenda do Rocio, mormente a respeito dos familiares de seus antigos
proprietários.
Disse que ela pertencera à família do grande
teatrólogo Francisco Pereira da Silva, um dos maiores do Brasil,
filho ilustre de Campo Maior, que teve a peça Chapéu de Sebo
encenada, durante vários anos, em Berlim, na Alemanha. Falei de
minha amizade com os filhos dos saudosos João Capucho do Vale e dona
Consolação. Recordei que no início da década de 70, quando eu
tinha 16 ou 17 anos de idade, o poeta Odylo Costa, filho, e sua
mulher, a pintora campomaiorense Maria de Nazareth (irmã de Chico
Pereira), visitaram Campo Maior. Cheguei a ver o casal na casa do
senhor João Capucho, situada perto do Centro Operário.
A minha timidez da época e de sempre não me deixou
cumprimentar Odylo, e lhe dizer que eu também fazia versos, ainda
que tortos ou capengas. De qualquer sorte, pedi emprestado, através
do Otaviano Furtado do Vale, o seu livro Cantiga Incompleta, que ele
autografara para os seus parentes João Capucho e dona Consolação,
pais do meu amigo. O poeta era sabidamente um mestre na arte da
convivência, e soube construir e conservar belas amizades, entre as
quais as dos bardos Carlos Drummond de Andrade, Ribeiro Couto e
Manuel Bandeira, que foram seus padrinhos de casamento. Por sinal,
esses vates são de minha admiração, e de todos eles tenho livros
em minhas estantes.
A minha retração me impediu de ganhar – quem sabe? –
um exemplar de Cantiga Incompleta, autografado pelo autor, mas hoje
tenho a sua Poesia Completa, edição organizada por Virgílio Costa,
seu filho, em lugar de honra em minha biblioteca, que fui forçado a
“enxugar” bastante no ano passado, por falta de espaço físico.
Para minha maior satisfação, na oportunidade em que consegui essa
obra, adquiri também os três volumes de Teatro Completo de
Francisco Pereira da Silva, publicados pela Funarte em 2009,
igualmente organizados pelo Virgílio Costa, que é escritor,
historiador e pintor.
Na apresentação da obra, que enfeixa 32 peças, o
Ministro da Cultura, Juca Ferreira, diz que o grande dramaturgo “fez
da pobreza e da secura do Nordeste sua temática principal e formou,
com Ariano Suassuna e Osman Lins, uma tríade de expoentes da
dramaturgia regionalista”, mas reconhece a universalidade de FPS
quando diz que a sua obra “extrapola os temas regionais e, em
muitos casos, se volta para a realidade cultural do país”. Grandes
diretores e atores, entre os quais Gianni Ratto, Fernanda Montenegro,
Ítalo Rossi, Francisco Cuoco, Zilka Salaberry, Maria Gladys, José
Wilker e Sérgio Britto, encenaram obras de sua autoria. Uma de suas
peças foi transformada em filme. Não obstante tudo isso, Sérgio
Mamberti, em nota introdutória, reconhece que Chico Pereira foi um
artista extremamente modesto. Sua timidez já me fora relatada pelo
ator Tarciso Prado, que foi seu amigo e lhe tinha profunda admiração.
Ele era tio de Olavo Pereira da Silva Filho, arquiteto,
um dos mais destacados lutadores da preservação arquitetônica do
Piauí, autor de importantes obras sobre os velhos solares do Piauí
e do Maranhão, e que arrebatou um dos maiores prêmios nacionais
dessa área cultural. Era primo de Abdias Silva, campomaiorense, com
quem tive a honra de me corresponder, que foi um dos maiores
jornalista do país, e do memorialista Francisco Cardoso da Silva.
A alta qualidade de sua obra, o seu estilo apurado, a
sua técnica esmerada, no momento em que o teatro nacional enveredou
pelo experimentalismo e em busca de pretensas ou verdadeiras
vanguardas, fez com que a sua fatura teatral, embora bem recebida
pela crítica, fosse “bastante ignorada pelo público”, segundo
foi observado na cronologia, na qual consta que sua dramaturgia fora
escrita numa hora errada, ipso facto, além de haver encontrado
“certa hostilidade da elite sulista à cultura e ao desnudamento da
pobreza nordestina”, de onde o dramaturgo teria extraído sua
principal temática.
Ao contemplar a velha sede da Fazenda do Rocio, não
pude deixar de me lembrar dos versos em que o poeta H. Dobal disse
ali haver tomado banho de leite. E não pude deixar de lamentar que o
notável teatrólogo campomaiorense pouco seja lembrado e festejado
em sua terra natal, apesar de há muitos anos uma lei estadual ter
determinado a criação do Memorial Francisco Pereira da Silva. Até
hoje essa lei nunca foi executada. Não sei o que impede a criação
desse Memorial, uma vez que o autor já é falecido e é um dos
maiores teatrólogos brasileiros.
Em visita recentemente a Campo Maior, a minha irmã Socorro preparou este prato de buchada de bode muito saboroso, comida forte que faz o "cabra" suar depois de comer, aliado a temperatura local nos seus 39 graus e que automaticamente pede uma rede
ResponderExcluirpara uma breve digestão. Sem falarmos da mão de vaca, panelada muita apreciada pelos frequentadores ali no mercado central.
horácio lima/sp
Ao tempo que o nobre e imortal poeta e escritor discorre sobre uma manhã de almoço na Fazenda Rocio, regada por uma deliciosa “buchada de bode” feita no capricho e aos moldes da nossa cultura, acompanhado por figuras das mais expressivas raízes da nossa terra, como o Veterinário João Luís Queiroz, Prof. José Francisco Marques, Prof. Neto Chuíba e outros, o imortal tira do fundo do baú retalhos do passado, revelando-nos as origens da secular fazenda, tendo a mesma nascida e preservada até os dias de hoje no seio da família do teatrólogo campomaiorense Francisco Pereira da Silva, um dos maiores nomes da cultura da arte de escrever peças famosas, conhecido no mundo inteiro, menos em Campo Maior, sua amada terra berço. E não para por aí, o magistrado vai muito além quando desliza sobre outros nomes como Odylo Costa, filho, e Abdias Silva, figuras de raízes ligadas à nossa terra e de renome do jornalismo internacional.
ResponderExcluirAinda bem que essas três personalidades, digamos assim, dos tempos contemporâneos, com muita honra elevam o nome da Academia Campomaiorense de Artes e Letras, ACALE, como eminentes e também imortais representantes patronais da mesma.
Parabéns!
Prof. José Omar Brasil Campo Maior-Pi
(poeta, escritor, membro da Acale e Altec.)
Prof. José Omar Brasil talvez não lembre de mim, sua mãe foi minha professora de francês ali no Colégio Estadual, e nas minhas idas e voltas a Campo Maior fiz caminhada na orla do açude grande com seu irmão Corinto Brasil e tive o prazer de conhecer a Acale.
ResponderExcluirhorácio lima, filho da terra radicado em SP há mais de três décadas, um vigilante leitor.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCaríssimo Elmar,
ResponderExcluirLi mais uma página de um talentoso campomaiorense que trata "nossos costumes" com toda propriedade que lhe é peculiar. Descrição simples e bonita, verdadeira, autêntica. Como é bom e importante a gente ler e reler esta preciosa página.
Humildemente concordo com sua opinião que lamenta a falta de reconhecimento pelo povo de Campo Maior ao seu ilustre filho Francisco Pereira da Silva.
Com esta querida família tive o privilégio de conviver principalmente com a Profª Socorro Pereira da Silva Pinheiro ( de saudosa memória) e Dra. Maria de Fátima Pereira da Silva. Testemunho o amor que toda família tem por Campo Maior, o zelo por sua memória. Trata-se de pessoas de bem, intelectuais, devotadas às causas sócio educacionais, pessoas generosas, sempre amigas e solidárias. Constata-se no presente, a valiosa contribuição do Dr. Olavo, no sentido de valorizar o patrimônio campomaiorense.
Sílvia Melo
Grande Elmar,
ResponderExcluirGosto de ler suas crônicas, como essa da buchada de bode. A maneira como você conta a história nos transporta pela a velha e bela Campo Maior de outrora.
Deu até vontade de comer a iguaria. Do sarapatel, então, nem se fala.
Grande abraço
Antonio de Souza
Cuiabá-MT
Caro amigo Antônio Francisco Souza,
ResponderExcluirgostaria que você me enviasse seu endereço postal para que eu lhe enviasse o meu Bernardo de Carvalho - o Fundador de Bitorocara, que conta episódios importantes do início da povoação de nossa terra natal.
Obrigado por suas palavras de incentivo.