Cunha
e Silva Filho
Conheci
Neuza Machado quando, de 1999 a 2006, fui lecionar no curso de Letras
da Universidade Castelo Branco, em Realengo, Rio de Janeiro. Não me
lembro bem como foi o meu primeiro contato com ela. Só sei que, de
repente, já éramos bons colegas no ambiente universitário. Ela
lecionava teoria literária; eu, literatura brasileira e, depois,
língua inglesa, cheguei mesmo a lecionar também, e por um semestre,
literatura americana.
Me
lembro bem de que, uma noite, após uma reunião geral com o reitor,
saí do auditório e fui para a cantina, lugar de encontro de
professores e alunos e lá Neusa me perguntou se eu tinha alguma
facilidade de conseguir um editor para um livro dela pronto a ser
publicado. Por um ou outro motivo, ela pensava que eu tivesse assim
bons contatos, o que não era o meu caso. Ficamos amigos e dessa
amizade que cresceu mais com as muitas vezes que, no Centro do Rio,
por mera coincidia, nos encontramos tomando o
mesmo ônibus para Realengo.
Foi
nessas vezes que comecei a conhecê-la melhor. Nessas idas de ônibus,
cujo percurso durava uma hora ou mais, dependendo do trânsito, e em
ônibus lotado, aproveitávamos para falar principalmente de
literatura, de escritores, dos tempos de graduação na Faculdade de
Letras da UFRJ, dos bons professores e das dificuldades inerentes aos
tempos de estudante. Assim, ia formando minha opinião
sobre esta colega que não chegou a ser amiga íntima, mas cujo
convívio profissional no mesmo ambiente de trabalho foi suficiente
para que sentisse admiração pela sua formação intelectual e seus
anseios de estudiosa e pesquisadora sobretudo na sua área de maior
interesse, a teoria literária.
Neuza
era mineira e tinha muito do que se fala de bem dos mineiros. Por
outro lado, a sua personalidade simpática e brincalhona por vezes
escondia algo de um temperamento muito crítico e rigoroso com o que
fazia na sua vida profissional. Sua visão do fenômeno literário
era penetrante, muito seletiva, numa abordagem metodológica que se
orientava pela análise semiológica, por ela declaradamente haurida
da experiência que teve nas aulas de Anazildo Vasconcelos da Silva,
professor da Faculdade de Letras da UFRJ. Na sua dissertação de
Mestrado, O
narrador toma a vez (Rio
de Janeiro: N.
Machado, 2006,
120 p.) em
que discute o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de
Guimarães Rosa, depois editada por conta própria, em 2006, Neuza
deixa bem nítida essa inclinação às aproximações semiológicas
(Greimas, Barthes, Anazildo Vasconcelos da Silva e outros) e
sociológicas (Goldaman, Luckács, Weber e outros) do fenômeno
literário. Percebe-se que neste estudo ela mobilizava um
instrumental teórico diversificado, pluralista, no qual não havia
nenhuma prevenção dogmática e radical na interpretação da obra
literária.
Não
li sua tese de doutoramento, a qual da mesma forma, deu continuidade
e aprofundamento à obra de Guimarães Rosa, porém, nesse estudo me
recordo bem de que se serviu largamente do pensamento de Bachelard
que me parece deve ter sido a sua viga-mestra na condução do
desenvolvimento da sua tese. Penso que quem a orientou foi o
professor Rogel Samuel, um escritor de cuja obra Neuza iria se ocupar
com dedicação e competência, tornado-se provavelmente a sua maior
intérprete e divulgadora.
Neuza
foi ficcionista, além de crítica e ensaísta. Na sua
coluna Letras, no Entretextos,
deixou páginas que demonstram sobejamente sua capacidade de análise
e sua maneira original de absorver o que a sua formação lhe
propiciou em anos de estudos, leituras e de experiência
docente. Não podemos negar a sua vocação para o debate teórico no
sentido mais elevado do termo.
Neuza
era uma mulher batalhadora, sobretudo no que pretendia fazer no
domínio intelectual, Percebendo claramente quão é espinhoso se
publicar no país através das grandes editoras, ela não perdeu
tempo, criou a sua própria “editora”, NMachado, cuidou de
todos os trâmites burocráticos e saiu vitoriosa: editou sua
dissertação de mestrado e possivelmente alguns outros trabalhos.
Ela cuidava praticamente de tudo para que seus livros viessem a
público. Era, pois, uma determinada.
Respeitada
por seus pares na Universidade. Castelo Branco, mulher corajosa ao
defender seus pontos de vista, sobretudo no campo teórico, Neuza
Machado antes de ter lecionado naquela universidade, também ensinou
na Universidade Estácio de Sá, na Universidade Sousa Marques e, por
um ano, saindo do Rio de Janeiro, lecionou na Universidade Federal do
Pará ou Amazonas, não sei bem. Anos antes, participou de um
congresso em Paris ao lado de Rogel Samuel, de quem sempre foi uma
admiradora e amiga. Me recordo de que, na Castelo Branco, adotava
livros de Rogel Samuel, que, de resto, foi seu professor na Faculdade
de Letras da UFRJ, no tempo em que funcionou na Avenida Chile antes
de se transferir definitivamente para o campus do Fundão.
Uma
outra lembrança que me ocorre de Neuza, durante nossas conversas
regadas a boas gargalhadas que às vezes surpreendiam os outros
passageiros do ônibus que nos levava para a Universidade Castelo
Branco, era a sua disposição de sugerir boas dicas naquela época
em que eu estava escrevendo minha tese de doutorado. Eram sugestões
inteligentes que me apontavam dimensões novas ao meu estudo do conto
de João Antônio ( 1937-1996).
Tenho,
sim, saudades de nossas conversas, nas quais Neuza me superava nos
inúmeros relatos de fatos passados de sua vida de universitária,de
professora, alguns pitorescos, alguns divertidos, outros de natureza
amorosa, sobre situações que presenciou e vivenciou no mundo
acadêmico que se tornariam mais segredos, casos particulares do
mundo dos vivos e do tumultuado relacionamento entre as pessoas,
confidências não publicáveis do ponto de vista de
guardar segredo. Era uma ótima causeuse
a
querida Neuza Machado.
Ela
sabia de sua importância, de seu valor, de sua capacidade como
profissional aberta e disponível ao universo do saber e da
inteligência. A notícia de seu falecimento prematuro me deixa menos
feliz apesar do meu afastamento há sete anos da Universidade Castelo
Branco e sem ter tido praticamente mais contato com ela. A
distância, nas grandes cidades, muitas vezes nos separam uns dos
outros. Seus alunos sem dúvida hão de sentir muito a sua falta, a
sua palavra alegre, muitas vezes brincalhona e educadamente irônica.
À sua família e amigos envio daqui os meus sentimentos de muito
pesar.
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