sexta-feira, 19 de abril de 2013

Estão desviando recursos da seca



José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

Recebi de renomado magistrado um texto de causar revolta, garantindo não lhe citar o nome e endereço profissional. Ele denuncia a prostituição de garotas adolescentes, em troca de benefícios oriundos dos recursos federais de combate a seca. O autor descreve, com perfeição fotográfica, a miséria, resultado da seca que assola o sertão brabo, e a esperteza de autoridades em apropriar-se de recursos públicos.

"A seca chega ao período mais agudo, quando, famintos, andrajosos e doentes, chegam aqui... Já o Governo tomou providências enérgicas, a fim de melhorar a situação do povo, mandando víveres para serem distribuídos entre os indigentes. As comissões encarregadas da distribuição, entretanto, exploram a situação, tirando lucros imprevistos da miséria dos retirantes. A farinha, o milho, o arroz são levados para despensa dos abastados, enquanto os famintos insignificante ração diária, muita vez insuficiente para a alimentação da família crescida... Muitos comissários obedecem aos impulsos de simpatia, ou antipatia, exercendo torpes vinganças, impondo-se, dominando pela fome a revolta de algum espírito que ouse fazer censuras às injustiças de todos os momentos. Campeia a prostituição, e são as próprias mães quem, muitas vezes, entregam as filhas, comprando, por esse ato, favores que lhes seriam negados de outra forma. Houve quem enriquecesse comprando joias aos retirantes por um terço do valor real, pagando-as, ainda, por esse ato, em alimentos estragados. Mais. Extorquem aos pedintes válidos o dia de trabalho, quase de sol a sol, por uma minguada quantia em dinheiro. Manhã cedo, aparecem, nas calçadas, criancinhas envoltas em sujos farrapos..."

Paro por aqui, angustiado, só de sentir o desespero e a falta de vergonha. Não consigo entender atitudes de batizados cristãos avançarem nas verbas e recursos públicos destinados a crianças, velhinhos e cidadãos desassistidos. Não entendo, mesmo, abutres enfiando as garras no alheio, sem lhes bater uma nesga de consciência. Quando denunciados, utilizam-se de torpes recursos de defesa jurídica. Arrocham a lei seca ao motorista com mínima talagada de bebida, impõem-lhe alta multa, prendem-no, sequestram-lhe a carteira de habilitação e o carro, mas fazem vista grossa a bandidos engravatados e traficantes, que patrocinam campanhas eleitorais em troca de tolerância. Ainda saem pelos sertões fogueteando loas e boas, promessas e ilusões.

Este país padece da falta de dignidade nacional, educação cívica e moral. A desgraça vem de longa data. Agora, revelo a fonte da denúncia: o texto foi extraído do segundo capítulo do romance UM MANICACA, escrito em 1901, de Abdias Neves, magistrado, jornalista, professor, político, membro da Academia Piauiense de Letras. Troquei os verbos, no pretérito, pelo presente, porque a indústria da seca vem do pretérito e continua no presente. Abdias Neves, nasceu em 1876, teresinense, retrata os primórdios da capital piauiense, durante a seca de 1877. A cidade não ultrapassava as Igrejas São Benedito e Das Dores, e Mercado Central. Rapazes e adultos exibiam bengala, terno, chapéu e ginete. A vida social circulava, praticamente, nos arredores da Praça da República(Deodoro ou da Bandeira), sem calçamento e água canalizada, sem energia elétrica, só lampiões pendurados em postes. Chegavam miseráveis retirantes da seca, famintos e extorquidos por espertalhões. No Nordeste, morreram mais de 500 mil cidadãos. Pior que a seca, o deserto moral de autoridades.

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