José
Maria Vasconcelos
Cronista,
josemaria001@hotmail.com
Recebi
de renomado magistrado um texto de causar revolta, garantindo não
lhe citar o nome e endereço profissional. Ele denuncia a
prostituição de garotas adolescentes, em troca de benefícios
oriundos dos recursos federais de combate a seca. O autor descreve,
com perfeição fotográfica, a miséria, resultado da seca que
assola o sertão brabo, e a esperteza de autoridades em apropriar-se
de recursos públicos.
"A
seca chega ao período mais agudo, quando, famintos, andrajosos e
doentes, chegam aqui... Já o Governo tomou providências enérgicas,
a fim de melhorar a situação do povo, mandando víveres para serem
distribuídos entre os indigentes. As comissões encarregadas da
distribuição, entretanto, exploram a situação, tirando lucros
imprevistos da miséria dos retirantes. A farinha, o milho, o arroz
são levados para despensa dos abastados, enquanto os famintos
insignificante ração diária, muita vez insuficiente para a
alimentação da família crescida... Muitos comissários obedecem
aos impulsos de simpatia, ou antipatia, exercendo torpes vinganças,
impondo-se, dominando pela fome a revolta de algum espírito que ouse
fazer censuras às injustiças de todos os momentos. Campeia a
prostituição, e são as próprias mães quem, muitas vezes,
entregam as filhas, comprando, por esse ato, favores que lhes seriam
negados de outra forma. Houve quem enriquecesse comprando joias aos
retirantes por um terço do valor real, pagando-as, ainda, por esse
ato, em alimentos estragados. Mais. Extorquem aos pedintes válidos o
dia de trabalho, quase de sol a sol, por uma minguada quantia em
dinheiro. Manhã cedo, aparecem, nas calçadas, criancinhas envoltas
em sujos farrapos..."
Paro
por aqui, angustiado, só de sentir o desespero e a falta de
vergonha. Não consigo entender atitudes de batizados cristãos
avançarem nas verbas e recursos públicos destinados a crianças,
velhinhos e cidadãos desassistidos. Não entendo, mesmo, abutres
enfiando as garras no alheio, sem lhes bater uma nesga de
consciência. Quando denunciados, utilizam-se de torpes recursos de
defesa jurídica. Arrocham a lei seca ao motorista com mínima
talagada de bebida, impõem-lhe alta multa, prendem-no,
sequestram-lhe a carteira de habilitação e o carro, mas fazem vista
grossa a bandidos engravatados e traficantes, que patrocinam
campanhas eleitorais em troca de tolerância. Ainda saem pelos
sertões fogueteando loas e boas, promessas e ilusões.
Este
país padece da falta de dignidade nacional, educação cívica e
moral. A desgraça vem de longa data. Agora, revelo a fonte da
denúncia: o texto foi extraído do segundo capítulo do romance UM
MANICACA, escrito em 1901, de Abdias Neves, magistrado, jornalista,
professor, político, membro da Academia Piauiense de Letras. Troquei
os verbos, no pretérito, pelo presente, porque a indústria da seca
vem do pretérito e continua no presente. Abdias Neves, nasceu em
1876, teresinense, retrata os primórdios da capital piauiense,
durante a seca de 1877. A cidade não ultrapassava as Igrejas São
Benedito e Das Dores, e Mercado Central. Rapazes e adultos exibiam
bengala, terno, chapéu e ginete. A vida social circulava,
praticamente, nos arredores da Praça da República(Deodoro ou da
Bandeira), sem calçamento e água canalizada, sem energia elétrica,
só lampiões pendurados em postes. Chegavam miseráveis retirantes
da seca, famintos e extorquidos por espertalhões. No Nordeste,
morreram mais de 500 mil cidadãos. Pior que a seca, o deserto moral
de autoridades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário