Jacob Fortes
Certa feita, quando menino, fui com o meu pai à cidade;
cada qual no seu jumentinho. Chegamos cedo; a cidade despertava numa
pachorra de lesma, mas o Mercado Central era madrugador. Enquanto meu
pai comprava o essencial nas quitandas do Mercado, eu o aguardava
debaixo de uma figueira folhuda. Próximo a essa árvore existia um
quiosque no qual funcionava um bicicletário. O propósito do
bicicletário consistia em alugar bicicletas; era o meio de vida do
proprietário, Senhor Xudu.
Naqueles áureos anos em que esse transporte foi
lançado, possuir uma bicicleta era privilégio de poucos;
endinheirados. A única forma de a grande maioria, de pobres, andar
de bicicleta seria por meio da alugação.
Debaixo da árvore eu reparava o movimento. Assim que o
quiosque abriu as suas portas começaram a chegar os alugatários; em
pouco tempo a frota de bicicletas já havia arribado. Lembrei-me das
abelhas do meu sertão, em revoada matinal para encontrar o néctar
das flores silvestres. Os clientes, depois que grudavam as mãos no
chifre do biciclo, saíam com ar de felicidade. Não era pra menos.
Pedalar, oferecendo a face para os beijos da brisa, é sempre
prazeroso, mesmo quando o percurso impõe farta sudação. Vim
conhecer essa sensação agradável próximo à idade adulta quando,
morando na cidade, pude ter os meus ganhos parcos, mas suficientes
para alugar uma bicicleta.
Daí a pouco, chega mais um freguês:
— Senhor Tadeu Xudu, eu quero alugar uma bicicleta.
— As bicicletas foram todas alugadas. — Aguarde, se
puder; em breve uma delas estará de volta.
Pois bem, os livros deveriam ser tão andejos e ter a
mesma mobilidade das bicicletas de aluguel, ou das abelhas:
continuamente saindo e retornando às bibliotecas. Em vez disso, os
livros dormitam nas bibliotecas, por vezes amontoados, ostentando as
marcas visíveis do desuso, inclusive grossas camadas de poeira; em
completo desserviço. Pior que essa constatação (quando visitei
algumas), foi ouvir diretores se gabarem das suas bibliotecas estarem
entupidas de livros; todo o acervo aquartelado, circunstância que
reforça as estatísticas: o Brasil continental ainda lê pouco se
comparado a pequenos países da Europa. Bibliotecas públicas não
deveriam expressar a caixa mortuária dos livros, mas apenas os seus
locais de baldeação: marcados por um movimento de vai e vem, aos
moldes das bicicletas ou das abelhas.
Se os livros dormitam, maquilados de pó nos seus
ataúdes, é porque o povo não lê quanto devia. O povo pode até se
encontrar de bucho saciado, mas a mente, insaciável, espera, merece
e precisa de continuada leitura. A leitura — maneira barata, e até
chique, de entretenimento — ensina a escrever, afugenta a
ignorância, prepara, qualifica, fornece
experiência, amansa a incivilidade e a grosseria, aperfeiçoa a
dimensão interpessoal, possibilita conhecer o mundo, a arte, a
tecnologia, amplia a capacidade de percepção,
permite avaliar o melhor caminho que a vida oferece, facilita a
compreensão dos direitos de si e dos outros. Divorciadas da leitura,
as pessoas tornam-se vulneráveis aos ardis; tornam-se suscetíveis
às desditas.
Porém, a inexistência do hábito da leitura não é
culpa dos diretores das bibliotecas, mas do modelo; do poder público
que não estabelece políticas de motivação à leitura. Mas isso
não é insolúvel. Se houver interesse, se as escamas dos olhos
forem retiradas, basta colocar o tema em discussão para as ideias
acudirem. Exemplificativamente: que tal se ao alunado brasileiro, em
todos os níveis, fosse concedido pontos, valendo nota, pela leitura
de livros? Evidentemente a leitura seria aferida por meio de uma
banca sabatineira. Que tal, ainda, se os pais vinculassem as mesadas
dos filhos à leitura de livros? Que tal, também, se os pais
infundissem nos filhos o hábito da leitura, principalmente naqueles
que se permitem encabrestar pela internet e programas de televisão,
por vezes repletos de vacuidade? Essas leituras, é claro, seriam
também sabatinadas. Que tal, igualmente, se um livro retirado de uma
biblioteca no estado de São Paulo pudesse ser devolvido por
intermédio de uma biblioteca da cidade de Campo Maior-PI, Sobral-CE,
Goiânia-GO e vice-versa?
A ideia é fazer o livro se deslocar em múltiplas
direções, disseminando o saber em todos os ramos do conhecimento,
procedimento similar ao das abelhas que, ao alçarem voo em busca do
néctar, prestam valioso serviço à natureza e ao homem. Durante o
seu trajeto, as abelhas vão espalhando, naturalmente, por sobre os
ovários das flores, os grãos de pólen que carregam nos seus
cubículos, realizando, desse modo, a polinização responsável pela
fecundação de frutos e, consequentemente, das árvores.
A leitura pede passagem! Quando isso vai ocorrer? Ontem
não foi possível por causa da escravidão rombuda, mas hoje? Quais
as alegações deste momento democrático, científico e tecnológico?
É preciso desmistificar; leitura não pode ser entendida como artigo
de luxo, de primeira classe, mas artigo de pessoas: ricas ou pobres.
Por que seria espantoso flagrar-se um boia-fria lendo uma revista ou
um Machado de Assis?
Com um esforço bem direcionado do poder público, da
estrutura educacional e da sociedade, é possível socializar a
leitura e imprimir aos livros um papel parecente ao das bicicletas de
aluguel ou das abelhas.
Excelente texto, parabéns Mestre Jacob Fortes de Carvalho, e que sirva de incentivo.
ResponderExcluirCláudio Rogério
Belíssimo texto, um ótimo antídoto para quem sofre do mau hábito da leitura. Parabéns!!! Sempre quando arrumo um tempo visito o seu blog para realizar uma lavagem mental. Ora seus textos são magníficos.
ResponderExcluirNa minha concepção de educadora, noto que as nossas escolas estão precisando urgentemente adotar técnicas rotineiras de leitura para dispertar em nossos alunos o interesse pela mesma.
Professora Luciana Costa