16
de maio Diário Incontínuo
FRANCINÓPOLIS
EM LEMBRANÇAS
Elmar Carvalho
Com
a morte de minha mãe, voltei a me lembrar de coisas que ela me
contava, do tempo em que moramos no povoado Papagaio, que pouco
depois se tornaria cidade, com o nome de Francinópolis. Muitas
dessas lembranças assimilei como se fossem memórias minhas, mas na
verdade são falsas recordações, pois eu tinha apenas dois anos de
vida, quando nela moramos, por um pouco mais de um ano. Meu irmão
João José nasceu nessa boa terra.
Foi
no Papagaio que meu pai assumiu seu cargo no antigo Departamento de
Correios e Telégrafos. Consta como sendo um de seus primeiros
moradores, e por isso considerado seu fundador, o retirante cearense
Manoel Papagaio, que fugia de uma grande seca, que castigava sua
terra natal, e ali resolveu fixar residência com ânimo definitivo,
à margem do riacho Olho D'água de Baixo. Depois, ele promoveu a
vinda de vários outros parentes, que contribuíram para o povoamento
do lugar.
Quando
meus pais lá chegaram, para fixar residência, o senhor Joel
Ferreira dos Santos, seu colega do DCT, em gesto de muita nobreza e
generosidade, havia enchido os potes da casa e tinha providenciado um
enorme feixe de lenha, para o forno ou fogão. Posteriormente, meus
pais tiveram a honra de ser padrinhos de seu filho Joel, falecido há
dois ou três anos, aproximadamente. Portanto, tornaram-se compadres
de Joel e de dona Capitulina, pelos quais tinham muita amizade e
afeição. Por longos anos não mais se encontraram, mas nutriam boas
recordações desse digno casal.
Meus
pais falavam que havia no povoado uma pequena igreja, sob a invocação
de São Francisco, no alto de um morro. Imagino meus pais, ainda
jovens e bonitos, casados há pouco tempo, católicos praticantes,
indo participar de alguma novena, terço ou eventual missa, celebrada
por algum padre em desobriga. Anualmente realizava-se o festejo do
padroeiro, certamente com os indefectíveis leilões e quermesses.
Meus
pais formavam um belo casal, e foram unidos até a morte recente de
minha mãe, aos 79 anos de idade, tendo meu pai 87 janeiros, nascido
que foi no dia 5 desse mês, no ano de 1926. Talvez induzido pelas
lembranças de meus pais, tive, algumas vezes, um sonho repetitivo,
em que eu chegava a uma pequena cidade, que tinha no cume de um
outeiro uma ermida. Era um tanto semelhante à cidade de
Francinópolis, que vim a conhecer recentemente, quando a visitei em
companhia de meus pais e de meu irmão César.
Meu
pai guardava lembrança de antigos moradores do lugar. Foram vizinhos
de dona Felícia, falecida faz pouco tempo, esposa do comerciante
Otávio. Ela era tia de Xavier Neto, que foi deputado estadual e
conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, conforme este me
informou em conversa, alguns anos atrás. Morava perto da casa de
meus pais a senhora Maria Lameu, dona de um pequeno comércio. Meu
pai ainda se recorda dos comerciantes Pedro Lopes, Antônio Coimbra,
Adauto Soares, do fazendeiro João Leite, do farmacêutico Egídio e
do alfaiate José Nogueira.
Tornaram-se
amigos de meus pais os irmãos Edgar, Odete, Graça, Celecinda,
Glória e Edmar Soares, que foi um dos primeiros prefeitos de
Francinópolis, filhos de Zeca Soares e Francisca (Vidinha). Muitas
moças da vizinhança, conhecidas ou amigas de minha mãe, me tomaram
no colo, quando eu era ainda bebê. Muitos desses moradores, alguns
tendo sido lideranças políticas, são referidos no livro De
Papagaio a Francinópolis, da historiadora Eliane Rodrigues de
Morais.
Meu
pai tinha enorme consideração pelo senhor Joel, e desejava
reencontrá-lo. Colhi notícia dele por um colega do curso de
Direito, seu conterrâneo, de nome Joelson, mas terminei não o
localizando. Mas o destino tem os seus caprichos, e promove encontros
e desencontros, de forma inesperada. Quando eu trabalhava na Sunab,
que funcionava num dos andares do edifício do Ministério da
Fazenda, fui à biblioteca, para ter uma rápida conversa com o
professor Astrogildo Soares, seu bibliotecário-chefe, professor de
Português e versado em literatura.
Ele
conversava com uma moça, de nome Do Ó. Resolvi perguntar se ela
seria filha do senhor Joel. Respondeu-me positivamente, e me disse
que ele trabalhava na Procuradoria da República, que funcionava num
dos andares do prédio. Procurei-o, e numa das vezes que meu pai foi
a Teresina, fiz com que os dois velhos amigos se encontrassem em
minha casa. Os dois ficaram emocionados, e conversaram a valer.
Depois, Joel visitou meus pais em Campo Maior, onde desfiaram longo
rosário de recordações.
Meus
pais contavam com muita graça duas anedotas do período em que
moraram em Papagaio. O resguardo das mulheres na época era muito
rígido. A comida se restringia a galinha caipira. Quase tudo lhes
fazia mal. Até um vento mais frio poderia fazer com que uma mulher
pudesse “quebrar o resguardo”. Guardavam repouso absoluto por
vários dias, acho que por um mês.
Um
pano lhes envolvia a cabeça, para evitar friagens. Banho, somente na
camarinha, e com água bem morna, quase quente. Quase todos os tipos
de comida eram “carregados”, pois faziam mal à saúde. Uma
criada caiu na tolice, por ingenuidade, de contar para a sua patroa
que mexera a sua galinha com a mesma colher de pau com que havia
mexido umas nambus. Imediatamente a parida disse que era por isso que
estava sentido fortes dores de cabeça, quando até então de nada se
queixara.
Logo
que chegamos ao povoado, em gesto de muita delicadeza, como sinal de
boas vindas e acolhimento, uma das irmãs Doca, Xexéu ou Madalena
prometeu que iria mandar para meus pais um capão a molho pardo, de
dar água na boca, e que a pessoa o comeria até pecar. Acrescentaram
que a iguaria sequer iria sujar os pratos.
Por
motivos que desconheço, mas certamente pelos afazeres e atribulações
da vida, esse fino manjar terminou nunca nos sendo enviado, e, se o
foi, o portador deve tê-lo deglutido no caminho. Em razão disso,
mamãe dizia, com muita graça e, claro, sem nenhuma mágoa, que
nunca vira uma promessa tão fielmente cumprida. O capão
efetivamente não sujou os pratos de meus pais.
Por coincidência, o papai me contou esta mesma história semana passada quando eu estava lá com ele em Campo Maior. E a mamãe também sempre contava, inclusive tem até uma história sobre a Do Ó, né?. Eu tô com muita saudade da mamãe, as vezes nem acredito que ela não tá mais aqui com a gente!
ResponderExcluirPrezado elmar Carvalho;
ResponderExcluirsua crônica-memória, recordando fatos caros á sua memória de adulto e homem experiente, dá a medida da natureza que vem norteando seus textos de um "diário incontínuo", expressãi com que cunhou (sem trocadilho com o meu nome!) essa série de textos revovlendo as memórias do escritor e, por sua vez, trazend ao leitor fatos, acontecimentos, histórias de um passado que não poderia ficar na memória interiior do próprio autor. Essas histórias narradas coçm doses de equilibrado humor, e com seu lado por vezes divertido, constituirão um repositório de particular interesse para quem, no futuro, se debruçar a uma refexão sobre eles, grçaas às anotações saborosas, reais ou meio imagináarias, de um retato vívido de uma época ou de épocas superpostas que se vão acumulando num todo inextricável constuindo-se nas chamadas sociabilidade do cotidiano de cidades do interior ou mesmo das capitais menores do país, com seus lugares diferentes e pitorescos, pessoas diversaas cultural e socialmente, enfim, um mundo à parte cheio de sentimentos e lembrnças queridas de valores histórico e sentmentais inestsimáveis tecidos pela memória da crônica piauiense na diversidade de suas realidades físicas, humanas e individuais. São memórias que não se devem perder de vista sob pena de sonegar o espólio de uma passado que faz a história do país e a História da humanidade.
Um abraço do
Cunha e Silva Filho
Caro amigo Cunha,
ResponderExcluirVocê, com relação a meus textos, sejam em prosa ou em versos, é mais certeiro do que um atirador circense de facas ou um atleta olímpico de tiro ao alvo. O amigo acerta sempre, no contorno e no âmago, em suas abordagens.
Abraço,
Elmar Carvalho