Cunha
e Silva Filho
Já
me encontrava com Elza, a minha mulher, no interior de um ônibus.Num
banco pouco atrás de nós, estava meu filho Alexandre; íamos de
volta pra casa. De chofre, ao dobrar a esquina para entrar na
Marechal Câmara, pela abertura da janela do veículo, numa bela
manhã de sol temperado, chegou-me até as narinas um cheiro
gostoso de grama verde, circunvizinha daquele espaço de construção
onde ficava o chamado Calabouço, o famoso restaurante dos estudantes
no tempo da ditadura militar. Estudantes pobres ali tinham um lugar
seguro onde podiam almoçar e jantar por um preço simbólico.
Um
outro Rio era aquele dos período da ditadura militar a partir de
1964. As imagens jorram para trás no tempo provocadas pelo cheiro
repentino que exalou num instante de menos de um minuto, talvez
alguns segundos. Olhei, então, para o lado esquerdo da paisagem que
dá para os velhos prédios da Avenida Beira-Mar, com aquela calçada
que, uma vez, pisei pela primeira vez em direção ao conhecido
restaurante. As árvores, em frente dos prédios ainda ali
estão, sempre dando sombra, generosa sombra, testemunha de tantas
visões, movimentos, vozes e pensamentos diluídos pelo tempo.
Mas,
o marco certo no qual ficava o restaurante está vazio das pessoas
que naquele ano ali comiam, conversavam sobre política, sobre o
futuro. Éramos muito jovens mesmo. A vida, uma incerteza. Os sonhos
da juventude fervilhavam. Tinha poucos dias que chegara ao Rio e,
ali, no Calabouço, à sua entrada, levava um documento, uns papéis.
Não
me lembro para que eram. De repente, juntando-se a mim estavam outros
piauienses que chegaram à cidade antes de mim. Um deles,
malvadamente, tomou de mim aquele documento, que era para eu entregar
a alguém, em algum lugar. O conterrâneo malvado, que havia sido
colega meu no Liceu Piauiense, aos risos, se afastou sem me entregar
de volta o documento.
Essa
foi a pior impressão que tive de um conterrâneo de má índole. Não
mais me avistei com ele para lhe cobrar o documento. Só o tempo
cuidaria do mau-caráter. Deu péssimo exemplo de falta de
solidariedade a um jovem recém-chegado em terra estranha. Não
consigo esquecer as ações desonestas (que me perdoe Álvaro
Moreyra, poeta, cronista e jornalista nascido em 1888 e falecido em
1964)) que me fazem. De um colega que morou na mesma Casa de
Estudante que eu, a CESB, ouvi a seguinte afirmação: “Quando uma
porta se fecha, outra se abre.”
Esse
colega, o Anastácio Ferreira Morgado, leitor assíduo, na época, de
Jiddu Krishinamurti (1895-1986), filósofo, escritor e educador
indiano,da mesma forma, por coincidência estudou, no mesmo ano que
eu, num curso preparatório a vestibular de medicina, jovem
inteligente e muito estudioso, hoje, segundo me informaram, é um
pesquisador de renome. O curso preparatório chamava-se “Curso
Arquimedes, cujos professores eram jovens estudantes de medicina,”
e ficava num dos andares do velho Edifício Santos Vale ( que vi
citado numa obra de Álvaro Lins (1912-1970), Missão em
Portugal: diário de uma experiência diplomática – I, 1960) numa
conhecida rua do Centro, a Senador Dantas. Por mera falta de
motivação, larguei o “Curso Arquimedes” no meio do ano.
No
Calabouço, encontrei outros jovens, inclusive um piauiense, o
Ribamar Garcia, que se tornou advogado trabalhista, escritor de
ficção, com pelo menos, uma dezena de obras editadas. Um ano mais
jovem do que eu, Garcia também conheci no Calabouço e logo fizemos
amizade, amizade que começara pelo nosso interesse mútuo pela
língua inglesa (ele estudava na Cultura Inglesa). Passei uns tempos
sem ter notícias dele. Depois, por acaso, o reencontrei numa rua do
Centro. Já era advogado militante. Retomamos a amizade até hoje.
.No
restaurante tive o prazer de conhecer o Ary Medeiros. Ele trabalhava
na parte de assistência social do restaurante.. Ary se tornou
professor da UFRJ, na área de Assistência Social. Aposentou-se, mas
ainda tem vínculo docente com a universidade.È meu amgo até hoje.
Do
ônibus, avisto agora, apenas uma passarela que dá para o Aeroporto
Santos Dumont e, embaixo dela, abriram há tempos uma pista que segue
pelo belo Aterro do Flamengo em direção a bairros da Zona Sul, como
o Flamengo, Botafogo, Urca, Copacabana etc. O prédio do Calabouço,
além do espaço destinado ao restaurante, oferecia, nos fundos,
outros serviços, como lavanderia e diferentes lojinhas comerciais.
As
gerações mais novas não sabem nada sobre aquele tempo do
Calabouço, lugar muito associado aos rumos da política brasileira.
Lá se misturavam estudantes apolíticos, estudantes da esquerda,
militantes políticos contra a ditadura. O restaurante mereceu até
um livro de um colega meu, que foi diretor da CESB, o Dirceu, um
baiano amante da oratória e da poesia de Castro Alves, para ele o
maior poeta que o país já deu.
Dirceu
era emotivo, dinâmico, franco, solidário. Seu livro sobre o
restaurante teve por títuloO canto do Calabouço. Não
tive acesso ao livro, infelizmente. Dirceu me deu uma
demonstração de rara alegria e felicidade por saber que eu havia
sido aprovado, em 1966, para o curso de Letras da Faculdade Nacional
de Filosofia da Universidade do Brasil, depois chamada Universidade
Federal do Rio de Janeiro.Até hoje, não esqueci o abraço caloroso
deste jovem destemido e de temperamento político, combatente da
ditadura. Tempos depois, soube que tinha ingressado no curso de
Filosofia da Universidade Gama Filho.
A
ditadura continuou, acabou e não mais tive nenhuma notícia do jovem
e vibrante Dirceu, amante da cultura e da literatura, Um vez,
conseguiu publicar um pequeno jornal da CESB, no qual entrei com um
artigo, de cujo tema não me lembro mais agora, afinal já se
passaram quarenta e oito anos!. Outra vez, realizou uma noite
literária, com discurso, declamações de poemas. Nesta noite,
declamei o famoso soneto “Saudade”, do poeta piauiense Da Costa e
Silva (1885-1950). Mal sabia eu que, anos mais tarde, escreveria uma
dissertação de Mestrado enfocando aspectos da obra do mais
aclamado poeta do Piauí, Da Costa e Silva: uma
leitura da saudade, que, em 19996, seria publicada em livro
pela Academia Piauiense de Letras em convênio com a Universidade
Federal do Piauí, com prefácio da minha ex-professora de literatura
brasileira do Mestrado, Gilda Salem, já falecida.
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