Fonseca
Neto
Ainda
começando e já um agosto rico em lançamento de livros em Teresina.
Já não mais só em junho, no Salipi, essas traquinagens literárias.
“Em cada
conta um lamento - incelências, benditos e rezas”, de autoria da
professora Marluce Lima de Morais, foi lançado em sessão autógrafa
muito concorrida, dia seis. Livro destinado a muita repercussão,
tocando o tema comum da morte, no caso específico, o “morrer” no
Piauí. Melhor dizendo: o “morrer” enquanto evento que mexe com
todas as pessoas e que sempre impacta as relações do viver
comunitário. Fato que retempera mitos e místicas.
Marluce é
recém-egressa da Ufpi, onde fez graduação e mestrado em História,
e o livro é justamente o texto de sua Dissertação sobre os ritos –
ou liturgias populares – da morte, estudo que realizou em rica
confluência interdisciplinar, especialmente lidando com chaves
conceituais e interpretativas também frequentes entre antropólogos,
etnólogos... E tudo muito bem costurado com estes, pois, instalada
nas oficinas de Clio e de suas escrituras, aventurou-se no mundo da
memória e na memória do mundo de seus sujeitos de pesquisa.
Tal a
Malu, autora, somos quase todos nascidos nestes sertões de muitos
saberes e fazeres no que diz respeito à religiosidade
cristã-católica dita “popular”, forjada nas linhagens medievas
transpostas para este lado do Atlântico por obra do intruso europeu.
Com efeito, as experiências sensíveis que ela submete ao foco de
sua investigação ao modo de ciência, encontram-se entranhadas no
seu universo vivencial, familiar, de vizinhança, de localidade,
enfim, de tradições. No caso, o município de Alto Longá, de onde
seus pais, e os avoengos, são naturais e socialmente fabricantes dos
modos de viver herdados por via das citadas linhagens, em que pese as
solicitações de uma modernidade tardia e de baixo impacto por ali.
Intitulou
certo autor um livro – que virou referência – afirmando que “a
morte é uma festa” (João José Reis). Estuda os ritos fúnebres
do Brasil antigo, especialmente da Bahia soteropolitana. Pois Malu
buscou esses rituais conforme são feitos nos costumes da velha
região do antigo curato de Nossa Senhora dos Humildes do Alto Longá
– a titular das “contas” – lugar de moradores dedicados à
pequena criação e lavoura. Hoje um lucrativo ramo de negócios, os
velórios, caixões, féretros e tumbas, mas nas zonas rurais ainda
há os orantes da “boa morte” em sentinelas diante de corpos
arquejando; há benditos, benzeções, a vela à mão na hora do
suspiro final. E também as incelências, cantos lacrimosos para
carpir em dor profunda. Para espíritos desprevenidos, assustadoras
incelências cortando o silêncio das madrugadas em lâminas agudas.
Sabe-se de carpideiras de contrato em meio às carpideiras parentais
dos defuntos.
Pesquisou
ela nos costumeiros arquivos e literaturas, mas suas fontes são
preferencialmente a fala dos sujeitos e a observação participante.
Lembrou a própria Malu, ao narrar, no lançamento, sobre o recorte
temporal e a trajetória da pesquisa, os ritos funerais de sua
própria avó, incrivelmente se fazendo fonte e laboratório de seu
objeto, o qual tratou com pertinentes referenciações teóricas e
metodológicas. E, claro, a partir de situações fáticas amplamente
conhecidas, além de documentadas.
“Em cada
conta...” exprime o que essa nova historiadora amealhou ao
chacoalhar as estruturas mentais piauienses quando atingidas pelo
evento morte; os sentimentos em explosão eletrizando as células do
corpo e cotidiano coletivos. Dir-se-á, um acontecimento cabal no
destino humano, a finitude, afetando a micro história de cada um, em
particular.
Malu foi
orientada na elaboração desse trabalho de mestrado pela doutora
Áurea da Paz Pinheiro, líder do nosso Grupo de Pesquisa “Memória,
Ensino e Patrimônio Cultural” (CNPq), na Ufpi. É também Áurea
que prefacia a edição, que sai pela Vox Mvsei – Arte e
Patrimônio, dizendo que ela pode ser “apreciada por doutos e
leigos”. Aliás, doutos e leigos de Portugal já se anteciparam na
apreciação, uma vez que o livro foi lançado em Lisboa ainda em
julho.
A autora é
jovem docente do Ifpi, em Uruçuí, e que a partir deste mês servirá
em Oeiras, a póvoa dagobertiana do Mocha.
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