Fonseca
Neto
Pousou
em Teresina por estes dias a bissauguineense Artemisa Odila Candé
Monteiro. Veio participar de evento na Ufpi e lançar um livro:
“África e Brasil, diálogos possíveis”.
Quem
é Odila? Uma universitária da África ocidental que morou em
Teresina mais de quatro anos, estudando na Ufpi, num programa de
cooperação internacional entre o governo de seu país –
Guiné-Bissau – e o do Brasil. Graduou-se em Ciências Sociais,
prosseguindo com estudos pós-graduados na Bahia, cidade de Salvador,
onde conclui o doutorado. O livro que lançou é sua Dissertação de
Mestrado, na Ufba, examinando com chaves etnográficas e de campos
afins, as tessituras dialogais possíveis enformadas na “estetização
e mitificação de África nas estratégias identitárias e inserção
política do movimento negro”.
Quando
aqui chegou, nas primeiras leituras do cenário descortinado, logo
percebeu ela a movimentação de grupos de negros com algum sentido
de organização. Estranhou o modo como evocavam a mamma África, em
particular o jeito de se vestir, enfeitar, dançar, trançar cabelos,
isto é, ritualizar a ancestralidade africana. Odila, nativa e cidadã
de lá, não reconheceu, de pronto, aqueles modos, tal o que seria o
sentido genuíno do ser afro. E não deu outra: fez disso uma questão
de pesquisa e, com as ferramentas do método, imergiu na experiência
do Grupo Afrocultural Coisa de Nêgo, para destripá-lo, decifrar sua
mítica iluminando as raízes piauienses e brasileiras da
africanidade e entender as marcas gravadas na condição vivente da
fração da humanidade que a diáspora do escravismo mercantil legou
ao tempo presente.
O
livro labora-narra a referida estetização do corpo, ou
“africanização das aparências”, manifestada na ação do
referido grupo e, além dele, verificável também na Bahia e muitos
outros lugares. Manifestação que se inscreve como herança de
tradições africanas trazidas à época do tráfico transoceânico e
que sugerem a existência de uma só África projetada culturalmente
para este lado do Atlântico. Odila desvenda a processualidade dessa
transposição de culturas e seu caldeamento local em séculos de
afro e lusas amerindizações, em geral doídas, explodindo em
linguagens de resistência, tanto no cativeiro de ontem, quanto nas
abjetas segregações de hoje. E o faz, entre os citados
instrumentos/ferramentas, utilizando pertinentes fontes
historiográficas e dos mananciais das Ciências Socias.
Entre
outras referências, invoca Eric Hobsbawn (p. 131) e sua formulação
sobre a “invenção das tradições”, para situar a recepção
dos sentidos da ancestralidade no contexto presente: “as novas
tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas: outras
podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos
bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais”.
Disso, observa a autora, decorre que essa África evocada no
movimento examinado, “não surgiu do vazio, mas sim de uma
experiência resultante do movimento escravocrata, que foi enxertada
nos fragmentos culturais africanos e incorporada por outros valores e
sentidos de outras influências diaspóricas”. Ela não conheceu
apenas o Coisa de Nêgo.
Odila
viveu e realizou seus estudos no Piauí na época da ascensão do PT
ao governo estadual e não perdeu tempo em examinar a articulação
da nova realidade com o movimento negro, em especial os significados
da nomeação de mulheres negras para relevantes funções estatais,
muito realçada a figura e o protagonismo de Sônia Terra à frente
do órgão máximo das políticas públicas para a Cultura. Capta e
discute a violência das manifestações racistas contra Terra.
O
livro é dedicado à sua Avó-Mamma Djenabú Baldé, Fula, e vem
prefaciado por Dione Morais, da Ufpi, e apresentado por Rosário
Gonçalves, da Ufba. Lembra Valcirana Maia. Publicado pela Editora
Appris, Curitiba, Coleção Africanidades.
(Quero
parabenizar Artemisa Odila – nome mui belo –, a qual conheci e
acompanhei, como diretor do CCHL, a trajetória na Ufpi, integrada a
mais de uma dezena de estudantes vindos da África, em vários cursos
de graduação. Aliás, deles se fez uma espécie de líder,
inclusive nas horas de exasperação da cruel interface racista com
brasileiros em Teresina e na própria Ufpi. Marcante sua presença no
Núcleo de Pesquisas Ifaradá. Não é pouco uma guineense ter vindo
estudar e aqui checar as rebrotações do mundo feitas das Áfricas
aspergidas. Vitória dela e nossa).
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