13
de março Diário Incontínuo
MISTÉRIOS
DA ALMA HUMANA
Elmar Carvalho
Sempre
digo que cada ser humano tem a sua dose de mistérios e segredos, e
nunca se revela completamente. Às vezes uma pessoa, tida como
pacata, símbolo da própria mansuetude, nos surpreende ao cometer um
ato violento, desproporcional à ofensa que ela julga haver recebido.
Outras vezes, a surpresa nos vem através de uma confissão, feita
pelo próprio indivíduo que julgávamos incapaz de certas atitudes
ou sentimentos.
Um
amigo meu foi diretor de uma repartição pública durante algum
tempo. Nesse período notou que uma moça (vamos chamá-la de
Francinete) era muita expedita, muito esperta e proativa. O que tinha
de fazer, fazia imediatamente. Observando-lhe essas atitudes
louváveis, sobretudo em uma servidora pública, o meu amigo
designava-lhe certas diligências, que fugiam à rotina burocrática,
e que por isso mesmo requeriam certa perspicácia e rapidez.
Passou
a lhe dar essas missões com certa frequência, e ela as cumpria com
exemplar celeridade. Contudo, um dia a moça lhe perguntou porque ele
não determinava outros servidores para fazer esses serviços não
habituais. O meu amigo respondeu, com rasgados elogios, que não o
fazia porque ela era muito competente, rápida e desprovida de
preguiça, para ouvir de pronto, de forma incisiva e surpreendente
esta resposta:
– O
senhor está enganado. Eu sou muito é preguiçosa. O que eu tenho de
fazer faço logo, mas é por pura preguiça, pois desejo me ver logo
livre do trabalho.
Evidentemente,
o meu amigo jamais esperava por essa insólita resposta. Ficou de
queixo caído, como dizem, e passou a distribuir os serviços extras
a outras pessoas, embora menos aptas e mais morosas. E notou
efetivamente que Francinete gostava do ócio e da inércia.
Numa
das Comarcas por onde passei conheci o cabo Ângelo. Era ele um tipo
bonachão, sempre cordato e prestativo, risonho e de voz mansa, quase
pachorrenta. Nunca se agastava e nunca alterava o tom de voz. Sempre
que eu chegava ao fórum, ele se levantava, prestava continência, e
cumprimentava-me com um sorriso:
– Bom
dia, dr. Elmar!
Eu
respondia-lhe à continência e ao bom dia, como manda a praxe e a
boa-educação.
Entretanto,
num dia em que estávamos sozinhos, o cabo confidenciou-me algo que
me deixou perplexo. Disse-me que tinha seu lado oculto, que não se
conhecia completamente e que tinha medo de si mesmo; que temia surtar
e fazer uma loucura; que tinha pavor de, em algum momento, perder o
controle de si mesmo e chegar ao ponto de matar uma pessoa.
Fiquei
assustado que uma pessoa, aparentemente tão boa, tão pacata, tão
educada em suas mesuras e salamaleques pudesse ter medo de si
própria, ao ponto de temer tornar-se tão violenta que pudesse matar
uma pessoa. Lembrei-me do Honório. Era este um homem tão educado
que, quando um amigo lhe pisou num dos sapatos, pediu desculpa.
– Mas
desculpa de que, Honório? Fui eu quem pisou no seu sapato.
–
Desculpa, sim, porque você poderia ter caído...
Será
se o Honório, tão fino, tão delicado, que parecia a encarnação
da própria beatitude, também tinha ganas de assassino?
Desse
modo, fico assombrado com o que pode ocultar a alma de um ser humano.
Fico imaginando que mistérios poderiam estar ocultos no espírito de
um homem tão educado, tão mesureiro, que chegava quase a ser
subserviente, e de nome tão angelical como o cabo Ângelo. São
mesmo insondáveis os enigmas e segredos incrustados no íntimo de
cada pessoa. Ainda que houvesse um escafandro para perquirir o abismo
da alma humana, acho que muitos mistérios ficariam indevassáveis.
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