O
BONDOSO CORAÇÃO DE CHAGUINHAS
Elmar Carvalho
Mais
de trinta anos atrás, talvez em 1983, fiz uma viagem a União. Ainda
eu estava em plena juventude. Foi um passeio festivo, alegre. Os
flamboyants jorravam o seu vermelho mais encantador e outras árvores
também estavam floridas. A natureza parecia me sorrir e eu seguia
muito satisfeito com a exuberância da floresta, que verdejava
luminosamente nas árvores frondosas. Eu pilotava minha motocicleta,
dando carona a meu amigo e compadre Airton Meneses, talentoso poeta,
mas que pouco se dá ao trabalho de publicar seus poemas.
Não
existia a lei seca e paramos em um boteco da beira da estrada para
conversarmos, já que não havia pressa, e tomarmos um ou dois copos
de cerveja. Recordo que no recinto havia um vaqueiro, rigorosamente
paramentado em seu terno de couro, com perneira, gibão e chapéu de
couro. Ouvimos o seu aboio cantado, bem cadenciado, e mais alguns
versos populares que ele recitou. Era um dia alegre, de sol forte.
Íamos participar de um casamento, que é sempre festivo e sinal de
uma nova vida, pois é o início de um convívio conjugal e quase
sempre o prelúdio de outras vidas que virão.
Mas
a viagem que fiz a União no feriado do dia 1º de maio,
quinta-feira, foi muito diferente. Seguíamos em minha picape, com
certa pressa, embora bem abaixo da velocidade máxima permitida. Não
íamos alegres, porquanto íamos participar da missa de 7º Dia de
uma amiga nossa, que falecera após longo e penoso tratamento.
Visitamos a casa de sua mãe, viúva, e de suas irmãs. Depois, fomos
aguardar o horário da celebração na casa da Elza, colega e amiga
de minha mulher. Na conversa que entretivemos, contei alguns fatos
da vida do grande poeta Benedito Martins Napoleão do Rego, ilustre
filho de União.
A
nossa saudosa e querida amiga se chamava Francisca Ferreira da Cruz,
porém era mais conhecida pelo carinhoso nome de Chaguinhas. Nasceu
em União, em 18/05/1954, e faleceu em 25/04/2014, em Teresina, onde
fazia o tratamento, quando já adotava providências para comemorar
os seus 60 anos de vida. Além da rigorosa quimioterapia,
sobreveio-lhe uma pneumonia dupla, que foi, ao que parece, a causa
mais direta de seu óbito.
Conheci
Chaguinhas a partir de 15 de setembro de 1975, quando ingressei na
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, em Teresina. Éramos
bem jovens, assim como a maioria de nossos colegas. Como dizia o
poeta, nutríamos grandes esperanças, certamente cevadas em nossos
sonhos juvenis. Alguns de nossos colegas já partiram para a
eternidade, alguns se aposentaram e outros continuam em atividade.
Chaguinhas,
como se costuma dizer, tinha um coração de ouro. Quando suas
parentas ou amigas adoeciam e precisavam ser internadas, ela se
prontificava para lhes fazer companhia no hospital, muitas vezes com
grande sacrifício de seu conforto e comodidade. Mas o fazia com
alegria e presteza, e sem jamais “alegar” ou se jactar do
benefício prestado. Mesmo com prejuízo em seus proventos, antecipou
sua aposentadoria para ir cuidar de seu pai em União. Quando se
formou, instalou um consultório de psicologia em sua cidade natal.
Acredito que muitas consultas ela as realizou gratuitamente, para
ajudar pessoas amigas ou necessitadas.
Na
missa celebrada pelo padre João Paulo, capelão do Hospital Getúlio
Vargas, ocorrida no Patronato Maria Narciso, uma senhora, já um
tanto idosa, prestou comovente depoimento em que essas e outras
qualidades de Chaguinhas foram reveladas. Segundo esse relato,
Chaguinhas suportou os efeitos colaterais de sua quimioterapia e
também a pneumonia com resignação, sem lamúrias e sem queixas.
E
até o último momento acreditou que superaria a tenaz doença,
sempre esperançosa de que iria comemorar o seu aniversário, que já
se avizinhava. A “missa de Sétimo dia do encontro de Francisca da
Cruz com o Pai”, como está consignado no folheto da celebração,
foi bela e comovente, com músicas bem escolhidas, com o templo
completamente lotado, numa vívida demonstração da amizade e
consideração que seus amigos e conterrâneos lhe tinham.
O
poeta Shelley tinha um excelente coração, repleto de bondade, e
sempre conduzia consigo moedas reservadas para praticar a caridade.
Conta-se que a fogueira funerária, que transformou em cinzas o corpo
dele, vítima de uma tempestade em que veio a se afogar, não lhe
consumiu o coração, que ficou incólume como um símbolo de sua
bondade. Na magnífica biografia Ariel ou a Vida de Shelley, de André
Maurois, está relatado: “Ao cabo de três horas, o coração, que
era de um tamanho extraordinário, não estava ainda consumido.
Trelawny enfiou a mão na fornalha e retirou de lá essa relíquia.”
Outro
poeta, o seu conterrâneo Martins Napoleão, escreveu os seguintes
versos, que fazem parte de O Poema da Forma Eterna: “Expressar cada
um / o seu minuto culminante de beleza / o seu instante de bondade
extrema”. O seu minuto culminante de beleza foi a sua bondade
extrema, em que ela se doava aos seus amigos e parentes, muitas vezes
em prejuízo de si própria. E o coração de Chaguinhas, bondoso
como o de Shelley, haverá de ficar na mão de Deus como uma
relíquia preciosa e perene.
Prezado Elmar,
ResponderExcluirLinda crônica, daquelas que exalam sentimentos profundos, elevando-os também até o mais puro humanismo de que o ser humano é capaz.
Abraços
chico miguel