quinta-feira, 8 de maio de 2014

O BONDOSO CORAÇÃO DE CHAGUINHAS


8 de maio   Diário Incontínuo

O BONDOSO CORAÇÃO DE CHAGUINHAS

Elmar Carvalho

Mais de trinta anos atrás, talvez em 1983, fiz uma viagem a União. Ainda eu estava em plena juventude. Foi um passeio festivo, alegre. Os flamboyants jorravam o seu vermelho mais encantador e outras árvores também estavam floridas. A natureza parecia me sorrir e eu seguia muito satisfeito com a exuberância da floresta, que verdejava luminosamente nas árvores frondosas. Eu pilotava minha motocicleta, dando carona a meu amigo e compadre Airton Meneses, talentoso poeta, mas que pouco se dá ao trabalho de publicar seus poemas.

Não existia a lei seca e paramos em um boteco da beira da estrada para conversarmos, já que não havia pressa, e tomarmos um ou dois copos de cerveja. Recordo que no recinto havia um vaqueiro, rigorosamente paramentado em seu terno de couro, com perneira, gibão e chapéu de couro. Ouvimos o seu aboio cantado, bem cadenciado, e mais alguns versos populares que ele recitou. Era um dia alegre, de sol forte. Íamos participar de um casamento, que é sempre festivo e sinal de uma nova vida, pois é o início de um convívio conjugal e quase sempre o prelúdio de outras vidas que virão.

Mas a viagem que fiz a União no feriado do dia 1º de maio, quinta-feira, foi muito diferente. Seguíamos em minha picape, com certa pressa, embora bem abaixo da velocidade máxima permitida. Não íamos alegres, porquanto íamos participar da missa de 7º Dia de uma amiga nossa, que falecera após longo e penoso tratamento. Visitamos a casa de sua mãe, viúva, e de suas irmãs. Depois, fomos aguardar o horário da celebração na casa da Elza, colega e amiga de minha mulher. Na conversa que entretivemos, contei alguns fatos da vida do grande poeta Benedito Martins Napoleão do Rego, ilustre filho de União.




A nossa saudosa e querida amiga se chamava Francisca Ferreira da Cruz, porém era mais conhecida pelo carinhoso nome de Chaguinhas. Nasceu em União, em 18/05/1954, e faleceu em 25/04/2014, em Teresina, onde fazia o tratamento, quando já adotava providências para comemorar os seus 60 anos de vida. Além da rigorosa quimioterapia, sobreveio-lhe uma pneumonia dupla, que foi, ao que parece, a causa mais direta de seu óbito.

Conheci Chaguinhas a partir de 15 de setembro de 1975, quando ingressei na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, em Teresina. Éramos bem jovens, assim como a maioria de nossos colegas. Como dizia o poeta, nutríamos grandes esperanças, certamente cevadas em nossos sonhos juvenis. Alguns de nossos colegas já partiram para a eternidade, alguns se aposentaram e outros continuam em atividade.

Chaguinhas, como se costuma dizer, tinha um coração de ouro. Quando suas parentas ou amigas adoeciam e precisavam ser internadas, ela se prontificava para lhes fazer companhia no hospital, muitas vezes com grande sacrifício de seu conforto e comodidade. Mas o fazia com alegria e presteza, e sem jamais “alegar” ou se jactar do benefício prestado. Mesmo com prejuízo em seus proventos, antecipou sua aposentadoria para ir cuidar de seu pai em União. Quando se formou, instalou um consultório de psicologia em sua cidade natal. Acredito que muitas consultas ela as realizou gratuitamente, para ajudar pessoas amigas ou necessitadas.




Na missa celebrada pelo padre João Paulo, capelão do Hospital Getúlio Vargas, ocorrida no Patronato Maria Narciso, uma senhora, já um tanto idosa, prestou comovente depoimento em que essas e outras qualidades de Chaguinhas foram reveladas. Segundo esse relato, Chaguinhas suportou os efeitos colaterais de sua quimioterapia e também a pneumonia com resignação, sem lamúrias e sem queixas.

E até o último momento acreditou que superaria a tenaz doença, sempre esperançosa de que iria comemorar o seu aniversário, que já se avizinhava. A “missa de Sétimo dia do encontro de Francisca da Cruz com o Pai”, como está consignado no folheto da celebração, foi bela e comovente, com músicas bem escolhidas, com o templo completamente lotado, numa vívida demonstração da amizade e consideração que seus amigos e conterrâneos lhe tinham.

O poeta Shelley tinha um excelente coração, repleto de bondade, e sempre conduzia consigo moedas reservadas para praticar a caridade. Conta-se que a fogueira funerária, que transformou em cinzas o corpo dele, vítima de uma tempestade em que veio a se afogar, não lhe consumiu o coração, que ficou incólume como um símbolo de sua bondade. Na magnífica biografia Ariel ou a Vida de Shelley, de André Maurois, está relatado: “Ao cabo de três horas, o coração, que era de um tamanho extraordinário, não estava ainda consumido. Trelawny enfiou a mão na fornalha e retirou de lá essa relíquia.”


Outro poeta, o seu conterrâneo Martins Napoleão, escreveu os seguintes versos, que fazem parte de O Poema da Forma Eterna: “Expressar cada um / o seu minuto culminante de beleza / o seu instante de bondade extrema”. O seu minuto culminante de beleza foi a sua bondade extrema, em que ela se doava aos seus amigos e parentes, muitas vezes em prejuízo de si própria. E o coração de Chaguinhas, bondoso como o de Shelley, haverá de ficar na mão de Deus como uma relíquia preciosa e perene.     

Um comentário:

  1. Prezado Elmar,
    Linda crônica, daquelas que exalam sentimentos profundos, elevando-os também até o mais puro humanismo de que o ser humano é capaz.
    Abraços
    chico miguel

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