A ILHA DO SONHO E DO ENCANTO
Elmar Carvalho
De súbito o velho e
empoeirado ônibus deixou a esburacada estrada carroçável e entrou por uma
vereda de chão desnudo.
Quando dei por mim o veículo
mergulhava num abismo. Só que em vez de despencar adejava suavemente. A
paisagem, algo surreal, era de uma beleza jamais vista.
As árvores, de variados
tamanhos, eram muito vivas, bem verdes e brilhantes, de diferentes formas e
folhagens, luxuosas, luxuriosas, luxuriantes, e se embalavam e acenavam e
bracejavam, movidas por vontade própria, interagindo com a gente.
Embora sentado numa
desconfortável poltrona eu tudo via, com impressionante facilidade. Só agora me
causa espanto como é que de uma estreita janela de um anacrônico veículo eu
pudesse ter aquela visão panorâmica.
Vi uma caprichosa escultura,
criada aparentemente pela natureza, através do cinzel da chuva, do vento e do
tempo, feita de areia suspensa no ar, formando arcos de uma gruta e desenhando
góticas estalactites. Surpreendentemente a matéria arenosa parecia macios e
diáfanos flocos de nuvens, até mesmo pelo fato de que pairava sobre a orla do
lago, sem necessidade de escoras e esteios, com os seus arabescos e rococós.
Na verdade essa gruta era o
pórtico de entrada, por onde o ônibus passou, que dava para um lago de estranha
água levemente azulada e fosforescente, e efervescente como se nela houvera
mergulhado um imenso Sonrisal, na qual nadavam uns graciosos peixes,
multicoloridos e fosfóreos, sobre a qual passávamos, em verdadeira levitação.
Nas rochas que emergiam do líquido elemento pousavam cândidas sereias, algumas
metade peixes e outras metade pássaros, todas de voz maviosa e alucinante.
Tinham esplêndida forma e exuberantes seios divinais, esculpidos com perfeição
natural, e não bombados a silicone.
Sem se saber como, surgiram
grandes e magníficas esculturas, que pareciam de terra, mas que eram ao mesmo
tempo de cobre e ouro, de perfeição nunca vista. Eram grandes e estranhas
formas, sem pedestais, completamente soltas no ar. Lembravam estilizadas
catedrais, suntuosas mesquitas, altíssimas torres e minaretes, encarapuçados
nas nuvens.
As casas e castelos não
pareciam obra de arquitetura, mas bizarras e belas criações de um escultor
genial e maluco. Genialmente maluco.
As próprias montanhas e
colinas pareciam pertencer a uma outra dimensão ou a um estranho planeta, em
suas formas inimagináveis e brumosas.
Num dado momento tive medo
de que o ônibus despencasse e fizesse um fatal mergulho na fosforescência
mágica daquela água. Com o meu pânico o ônibus começou a cair, mas
imediatamente recuperei minha fé e ele passou a flutuar sobre a efervescência
da água, mais suavemente que um veleiro. Depois, alçou vôo novamente.
Quando menos esperei
começaram a passar grandes e desengonçados pássaros, semelhantes aos da
pré-história, contudo de suave e elegante vôo, em que planavam fazendo as mais
esquisitas e belas coreografias que meus olhos já viram, na verdade um
alucinante balé, sob a regência de um pássaro-rei, o uirapuru talvez daquelas
criaturas, que entoava um canto, sublime e inaudito e inefável, que acaso se
rivalizava com o coro dos anjos e arcanjos, por nós (in)imaginados.
Não sei bem como - o tempo e o espaço não faziam nenhum sentido
- me encontrei caminhando por estreitas e tortuosas ruas daquela ilha. A
luminosidade era frágil, frígida, fosca, furtiva, como se não fosse nem dia nem
noite. Uma lua de cristal, próxima e grande, emitia sua pálida e prateada luz.
Estrelas brilhavam, estranhamente próximas, com muita intensidade e rápido
piscar. Tinham variadas formas e cores, e se movimentavam em labiríntico bailado.
Cometas circulavam, movimentando a cauda, como descomunais cabeças-de-prego,
mais rebolantes que uma top-model, deslumbradas e deslumbrantes sobre a
passarela. O céu era furta-cor. Na verdade, tudo aquilo mais parecia um
gigantesco e mágico caleidoscópio.
A suavidade permanente do
vento era talvez um sopro de Deus. Refrescante. Revigorante. Extasiante. Nele
se pressentia uns leves laivos de cor e substância. Quase se podia retê-lo
entre os dedos. Deixava uma sensação de paz e beatitude.
Como se estivessem saindo de
um templo e fizessem parte de uma invisível quermesse, vi várias pessoas, de
ares estranhos. Solenes e severas. Passei por elas e as contemplei muito bem.
Contudo, elas pareciam não me ver e eu não as conseguia tocar. Para minha
perplexidade, algumas eram pessoas amigas, já mortas, mas que ali estavam bem
vivas, metidas em elegantes fatiotas. Não me percebiam e nem me ouviam, por
mais que eu me esforçasse para ser notado.
Novamente, sem que eu me
desse conta, estava novamente a voar, dentro do velho ônibus, como se
estivéssemos retornando. Passamos por esculturas de grandes animais - elegantes
elefantes, belos búfalos, girafas, alvijubados leões, encouraçados
rinocerontes, imemoriais dinossauros, unicórnios lendários - sem asas, mas de
voo glorioso. Depois, percebi que elas ganharam vida e se esgarçavam no ar,
como fiapos de nuvens e gazas.
A paisagem mudou. De
repente. Agora eram vastos tabuleiros, de terra revolvida, como se tivesse sido
arada, mas cujos sulcos formavam estranhas pinturas geométricas e ao mesmo
tempo abstratas. Uma dessas telas era um gigantesco tabuleiro de xadrez, em que
cupins erigiram, de modo pertinente, perfeitas peças em forma de torres,
cavalos, reis e rainhas, que se moviam por vontade própria, como se formassem
dois exércitos em acirrado combate.
De súbito, acordei
assustado. O ônibus havia estourado um pneu e levantava um forte e vermelha
nuvem de poeira. Estávamos, ao alvorecer, em plena e plana paisagem dos
cerrados piauienses.
Estávamos a caminho da
longínqua e bucólica Ribeiro Gonçalves, recortada pela sinuosidade do “Velho
Monge” e pelas colinas que a emolduram e engalanam.
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