O COICE (*)
Antônio de
Pádua Ribeiro dos Santos
Poeta e contista
Massaud Moisés, no seu livro A
Literatura Portuguesa Através dos Textos, conta curiosa passagem da vida de
Sócrates, o modesto grego considerado o mais sábio de todos os do seu tempo,
com estas palavras: “Caminhando Sócrates, um atrevido se descomediu com ele, e
lhe deu um coice. Estranhando alguns a paciência do filósofo, disse:
- Pois eu que
lhe hei de fazer depois de dado?
Responderam:
- Demandá-lo em
juízo pela injúria.
Replicou:
Se ele em dar
coices confessa ser jumento, quereis que leve um jumento a juízo?”
Devemos agir de igual modo. Os coices –
pancadas que certos quadrúpedes nos aplicam com os cascos traseiros - merecem o
nosso perdão. Merecem porque eles, como dissera o renomado filósofo quando
falava sobre si mesmo, devem saber que nada sabem.
No sertão
nordestino, onde existem animais sempre prontos a coicear, é comum a existência
de casas residenciais com portas cortadas ao meio, no horizontal, ficando uma
parte sobre a outra, de modo que se possa abrir cada uma por sua vez, para que
assim, estando aberta apenas a de cima, a ventilação entre por ela, enquanto
que a de baixo permanece fechada, evitando a entrada de bichos, coiceiros ou
não.
Raimundo
Alvino, mantendo em sua casa portas do tipo acima descrito, recebeu certa tarde
a visita de um compadre seu, homem de olhar ligeiro e sagaz. Conversaram
bastante, sobre assuntos diversos, e na hora da despedida já a tarde
encontrava-se bastante avançada.
- Compadre, acho que o amigo deve
dormir e sair somente amanhã. A casa é de pobre, mas sempre tem lugar para mais
um...
Ante esta esperada sugestão do dono
da casa, o visitante tentou esboçar uma falsa alegação de que não deveria
aceitar, mas logo cedeu ao convite. Sua intenção era mesmo de ali pernoitar,
por força do adiantado da hora e também porque já havia sutilmente observado a
beleza da filha do anfitrião, a quem culpava de haver-lhe olhado com olhos
pidões. Quimera que ao invadir sua cabeça desvairada ali gerava pensamentos
medonhos.
Tratava-se de uma moçoila ainda em
formação, porém de formas bem feitas, com ancas e peitos capazes de mostrar,
através do apertado do vestido de pano fino e florido, empinadosmondrongos
benignos que facilmente enchiam os olhos do vaidoso e audacioso que ali
pernoitaria.
O curioso visitador, enquanto
palestrava ficou sabendo que o compadre Alvino dormia com a esposa em um quarto
dos fundos, a moça em um quarto do meio, e que ele, como visita e por falta de
outro aposento, deveria dormir na sala da frente.
Aconteceu que o oportunista não se
entregou ao sono. Mais ou menos meia-noite, quando os outros dormiam, saiu
sorrateiramente da sua rede e rumou ao quarto da moça. Caminhando agachado,
quase rastejando, transpôs uma das ditas portas de duas bandas, da qual abriu
somente a parte de baixo, deixando a de cima fechada para evitar uma possível
entrada de vento ou qualquer claridade no corredor que logo atravessou para
chegar à porta do cômodo da inocente presa.
Penetrando na alcova, aproveitando-se
da escuridão do recinto, começou deslizando a mão no pano da rede da jovem para
em seguida prosseguir pela parte de trás de suas coxas, haja vista que esta
dormia de bruços. Neste instante aconteceu o previsível: a adolescente acordou
assombrada e tratou de gritar desesperadamente, dizendo em voz alta:
- Chega papai, que aqui tem um bicho
mexendo comigo!...
O agressor, ciente da besteira que
havia feito, tratou de sair desenfreadamente no rumo de sua rede armada na sala
e, para tanto, teve que passar correndo - e desta feita se esquecendo de se
agachar ou de rastejar, até porque o momento não permitia - pela mesma porta
que havia deixado aberta somente na parte de baixo.
O dono da casa, ao ouvir os
aterrorizantes gritos, partiu apressado, foi até o quarto da filha e esta,
bastante assustada:
- Papai, foi um bicho que esteve aqui! Buliu
nas minhas pernas e saiu correndo no rumo da sala!...
O pai afobado, seguindo no mesmo
percurso do tal bicho, encontrou a referida porta totalmente aberta, inclusive
com a tramela da parte de cima arrancada do prego e atirada ao chão. Ao chegar
à sala e ao ver o seu compadre embolado no fundo da rede, com uma mão no rosto
que sangrava, indagou:
- Compadre, você viu algum bicho
passando por aqui?
A resposta do frustrado conquistador
barato foi imediata e precisa:
- Vi, compadre! Era um bicho brabo e
ligeiro. Passou aqui correndo feito o cão e ainda deu um coice no meio da minha
testa...
(*) Conto premiado no XVI Concurso Nacional de Contos Jorge
Andrade – Barretos – São Paulo.
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