RETALHOS DESBOTADOS, DAS RUAS
Jacob Fortes
Quem, por demoradas imersões, se der ao trabalho de mergulhar
nas profundezas da mendicidade e examiná-la com toda minudência, concluirá que
o ofício esmoleiro é protagonizado por duas confrarias: uma é real, outra
inverídica ou, a bem dizer, uma verdadeira outra falsa. Dificílimo distinguir
uma da outra, pois, numa indistinção, apresentam a mesma cara, o mesmo
indumento, enfim todos os traços caracterizadores da face dolorosa e pungente
da miséria humana, que confeita as ruas. O propósito de ambas é o mesmo:
mendigar. A verdadeira, em decorrência das fatalidades ou destino insidioso,
pede por justa precisão, pela imprestabilidade laboral: invalidez, cegueira,
aleijão, hemiplegia, decrepitude arrimada em cajado, enfim, os que sucumbiram.
A falsa, porém, pede por comodidade, por desfastio, por malandrice, por aversão
ao trabalho, por desvergonha abominável; que não choca mais a ninguém. Os
personagens da falsa mendicidade, — hábeis na extorsão pelo rogo, em nome de
Deus — buscam na representação, na fantasia, no simulacro, os recursos para
delinear um cenário de enfermidades, dores e aniquilamento, impossível de ser
recusado por qualquer pessoa: crédula, incrédula, cauta, incauta. Se do sexo
feminino, de pronto se dizem viúvas, desamparadas. Costumam, envoltas em chalés
pretos, pedinchar durante a noite ocasião em que puxam, eventualmente, um ou
dois petizes, tão sonolentos quanto andrajosos, mais das vezes alugados da
vizinha; acumpliciada. Nesse cenário de engambelar e iludir, maior serventia
terão os petizes de caras borradas ou confeitadas de bexigas. Pedinchar à noite
atesta maior lugubridade; passa a todos, até aos sovinas, dolorosa impressão de
confrangimento. Há dentre as farsantes as que têm vocação lamurienta, as
chamadas carpideiras que, por terem facilidade de verter, eventualmente são até
contratadas para prantear mortos durante os funerais; haja lenço, o pranto é
verdadeiro.
Pedinchando na via púbica, nas calçadas, na sacristia, no vão
das portas, a malandrice, dotada de grande vocação dramática, vai-se
aprovisionando à custa das pessoas de boa-fé.
Mas os pedintes embusteiros sabem que a esmola é óbolo incerto, depende
da generosidade e estado psicológicos das pessoas, das circunstâncias. Daí a
necessidade do emprego de recursos de grande poder de convencimento e comoção
dentre os quais os patéticos “atestados”, (apócrifos evidentemente), que dizem
o tamanho e a natureza da desgraça que lhes vão por casa: o acometimento de
graves enfermidades; a prole faminta e numerosa; o cadáver à espera de caixão, invencionices
correlativas e acessórias conforme a ocasião e o espectador. Há casos,
insólitos, em que até se rojam para esmolar, é recurso extremado para fazer
emergir a caridade hesitante. Mas nisto fiquem atentos os avarentos, que tanto
prezam o dinheiro, pois óbolos reles podem desgostar os malandros,
circunstância que, via de regra, enseja praguejamento em chuva.
Se, no bairro em que exploram a caridade pública aparece
algum neófito os decanos vitalícios martirizam-no como nas escolas aos
estudantes calouros. Pontos de pedinchar de alta cotação, os mais rentáveis,
são, por vezes, vendidos como se fossem cadeiras de engraxate.
Se a mendicidade verdadeira é instada a pedir, e o faz
incomodamente, a malandrice esmola foliando, com enorme alacridade de espírito.
Ela vê na mendicância não somente um meio de vida, mas uma pândega, uma faina
das menos fatigantes, sem responsabilidade.
E enquanto não se pode distinguir o inverídico do real segue,
à sombra da miséria verdadeira, o cortejo das práticas enganosas. A confraria
sanguessuguense vai, à folia, amealhando provisões junto à toleima incauta dos
que dão esmola. Enquanto existir mosaicos de povos e de consciências há de
haver condutas picarescas: não há meios capazes (ainda mais quando se tem a
descura do poder público) de dissuadir essa confraria da viciosa profissão: nem
oferta de um bom trabalho, nem umas cócegas no dorso com corda de sedenho, nem
um longo tour por essas enxovias bolorentas, mesmo porque muitos desses
hipócritas são velhos frequentadores dos calabouços.
....a esmola é o que mantém a pessoa na condição de Rua, vicia e se acomoda com o pouco que recebe.
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