Poesia e ruptura em Luiz Filho de Oliveira*
Cunha e Silva Filho
1. INTRODUÇÃO.
Duas
diferenças de construção poética saltam à vista após a leitura das duas obras
do jovem poeta piauiense Luiz Filho de Oliveira; a primeira, suscitada pelo
livro BardoAmar [1] me conduz como leitor diretamente ao aspecto visual; a
segunda, provocada pela leitura de Ondehumano [ 2] me leva sem esforço ao
universo do léxico, i. e., da palavra, tomada aqui no sentido mais despojado de
poiésis, do vocábulo elevado ao estatuto mais nobre do eixo da seletividade
(paradigmático) sobre o eixo da combinação (sintagmático), segundo o pensamento
teórico de Jakobson sobre o que pensava da função poética. Dessa junção lúcida
e lógica advêm as chamadas estranhezas do discurso poético moderno. Essa ideia
do fazer poético corresponde, a meu ver, àquele conceito de “imprevisibilidade”
de outra linha de pensamento crítico-teórico. Não quer isso significar que, no
primeiro livro, o poeta abdique de suas preocupações com o verso enquanto
discurso lírico. Longe disso, as duas diferenças são somente componentes básicos
nas duas obras mencionadas.
Neste estudo,
vou-me concentrar no que os dois livros de poesia de Luiz Filho de Oliveira
possam propiciar de novo ou de velho à lírica brasileira. Em carta do autor a
mim endereçada, o poeta fornece alguns dados paratextuais sobre os motivos de
sua experiência não só quanto ao início de seu interesse pelo gênero poético
mas também como chegou a publicar seus poemas e mais outras razões que o
fizeram trilhar a solitária aventura do que já se chamou a mais pura das formas
literária.
Já anteriormente havia lido alguns textos em prosa do autor,
os quais me provocaram uma sensação de estar diante de um escritor avesso ao
conservadorismo ou à gratuidade. Sua prosa (tanto quanto com maior intensidade
na poesia)), diria mais precisamente crônica ou ensaio, é vazada de
estranhamentos, sobretudo no modo de colocação dos pronomes oblíquos e de
outras excentricidades de usos gráficos e léxicos no corpo de discurso. Não sei
se, no futuro, vai se afastar desses expedientes - o que para mim seria melhor
quando se tratasse daqueles gêneros literários.
Creio que o
caminho melhor seria aquele trilhado tão bem por Ferreira de Gullar na crônica
ou no ensaio (ele, que já foi tão subversivo e experimentalista na poesia). Por
outro lado, no âmbito do poema, em decorrência da própria natureza intrínseca
da linguagem poética, aí sim, todo esforço criativo e contra-ideológico seria
válido nos estreitos limites da literariedade e com uma vantagem a mais:
respeito, ousadia e dignidade intelectual.
. O resultado da
leitura dos dois livros, no geral, é promissor. Além disso, acrescentaria um
pormenor curioso. Segundo o autor, Ondehumano enfeixa poemas anteriores à
experiência experimentalista de BardoAmar que, de certa maneira, inverte o
processo de continuidade da segunda obra.
Ou seja,
enquanto vivência poética, o segundo livro, Ondehumano, cronologicamente
deveria ser virtualmente o primeiro, visto que, segundo aduz o poeta, “é um
livro experimental mais sóbrio” se comparado ao primeiro. Para simplificar, do
meu ângulo de leitor, Ondehumano, a despeito de incluir grande parte de poemas
anteriores ao primeiro livro, é, todavia, o que, a meu juízo, servirá como
coerente avanço no percurso poético de Luiz Filho ainda que seja um pouco cedo
demais para um julgamento mais conclusivo das possibilidades futuras de seu
estro, sem cair numa espécie de fatalidade que tem acometido poetas piauienses,
os quais, depois de publicarem um número pequeno de obras, ainda dispondo de
muitos anos pela frente, silenciam praticamente ante o futuro de seu projeto
poético no início tão promissor. Não resta dúvida, entretanto, de que
Ondehumano é, até agora, a constatação mais consistente de um talento com
indicativos seguros, vias nítidas e potencial criativo aberto e pronto a
desenvolver novos temas e formas elaboração no domínio do verso.
Permito-me
delimitar , porém, o alcance lírico de BardoAmar e procurar, então, sondar-lhe
as especificidades de um autor que deu seus primeiros frutos no difícil e
competitivo.mundo das letras.Oh! como estava longe da verdade contemporânea o
historiador literário inglês John Burguess Wilson, ao vaticinar, erroneamente,
como, aliás, outros, o futuro da poesia: “Não existe um poeta vivo que consiga
viver de poesia. Mau sinal que talvez acene para a inexistência de um futuro
para a poesia.” [ 3] campo da poesia na faixa dos vinte anos.
Sua produção
editada é diminuta se confrontada com os anos de sua convívio com a musas..
Isso, porém, não vem ao caso quando o que pesa para a literatura é a qualidade
do que se escreve e, nesse particular, Luiz Filho com apenas dois livros já me
permite um julgamento favorável, segundo anteriormente assinalei.
Na introdução à
poesia de Luiz Filho de Oliveira, a princípio prometera, num só estudo, abordar
as duas obras do poeta. No entanto, à medida em que ia desenvolvendo as ideias
sobre o livro de estreia, BardoAmor, ia verificando que a análise estava
crescendo além do objetivos previamente traçados. Por isso, me decidi a me ater
neste trabalho somente ao primeiro livro. Vou reservar o segundo livro,
Ondehumano para um outro ensaio que pretendo escrever posteriormente.
Pela faixa
etária, Luiz Filho se colocaria na geração de poetas do final dos anos oitenta
aos inícios dos anos noventa. Quer dizer, geração de poetas bem atravessados
pelos tempos da pós-modernidade, da experiência cibernética, de uma indústria
cultural cada vez mais tentacular em razão dos avanços vertiginosos na área
tecnológico-eletrônica, em tempo de economia globalizada, em tempo também de
ameaça cíclica de instabilidade econômica e de hegemonia midiática,
principalmente via Internet.
O poeta viveu
também na carne, posto que, pela idade, ainda imatura para a compreensão de
tantas mudanças estruturais e políticas no país, os últimos anos da ditadura
militar, as primeiras manifestações da redemocratização política nacional,
assim como testemunhou o período pós- Guerra-Fria, a Queda do Muro de Berlim, o
esfacelamento do Comunismo russo, a Guerra do Golfo Pérsico, as ditaduras na
América Latina, entre outros fatos e mudanças no país e no mundo. É que n o
século 20 das últimas décadas o poeta se situa como indivíduo e como jovem
intelectual ansioso por expressar seu sentimento poético histórica e
culturalmente contextualizado. Sua poesia não pode fugir a esses
condicionamentos de uma época.
BardoAmar, de resto,
é livro premiado em 2000 num concurso realizado pela FUNDEC e se classificou em
segundo lugar. Antes, fora selecionado num “Concurso de Poesia Antero de
Quental,” no II Festival de Inverno de Educação de Itajubá, Minas Gerais. O
concurso lhe valeu participação em antologia.
Um dos fascínios
pelos quais o texto em poesia me seduz vem a ser a imensa possibilidade de
releituras de um mesmo livro graças, é claro, ao poder de síntese inerente ao
gênero. Daí ser a leitura poética para o critico uma atividade muito mais
concentrada, mais visceral, a que vai corresponder um mergulho mais denso e
totalizante do objeto poético. Na prosa, fica mais difícil essa prospecção
vantajosa à hermenêutica. Por esse motivo, no trabalho de análise de um volume
de poemas, devido em geral à exiguidade do número de páginas, o instrumental
crítico torna-se muito mais fácil de operacionalizar, o que nada tem a ver com
as dificuldades intrínsecas também à prosa.
Não seria gratuito
ou ingênuo afirmar-se ao jovem escritor de hoje, seja na prosa, seja na poesia,
que o esforço despendido na composição de uma obra literária demanda muito
maior suor intelectual do que no passado, aqui entendido como um vasto e
variado período abrangendo, com se sabe, vários séculos de tradição literária e
especialmente quando se leva em conta as vanguardas europeias que
reconfiguraram drasticamente os estilos literários a elas anteriores.
Em outras palavras,
o poeta, o ficcionista, o teatrólogo de hoje, quer desejem ou não, não podem
evadir-se da contingência de ser uma simples partícula dessa considerável
cadeia de estilos e linguagens literárias inserida, formando o circuito da
tradição ou cânone, e, ademais, agravada por vezes pela ideia da chamada
“angústia da influência” formulada por Harold Bloom, que não deixa de ser uma
espécie de “pedra no meio do caminho” de novos autores na seara da poesia.
Desta forma, Luiz
Filho, por seu turno, não pode assim ser uma exceção a essa conjuntura da
história da literatura universal. No movimento paradigmático das letras
brasileiras, indissociável daquele circuito de tradição ocidental e divisor de
águas entre o conservadorismo e a ruptura convocada pelos defensores do
Modernismo de 1922 com a sua histórica e exaustivamente citada e pesquisada
Semana de Arte Moderna de 22 no Teatro Municipal de São Paulo, o passado foi,
na primeira fase do movimento, vigorosamente rechaçado e a literatura brasileira
genuína (?) passaria a ter seu marco zero a partir daquele ano-símbolo.
Essa atitude dos
prógonos do Modernismo, sempre me pareceu algo exagerada, porquanto não é
possível zerar a dimensão permanente da tradição literária. Não há presente sem
a dimensão durável do passado, i.e., não se pode descartar esse legado não
social, histórico, quanto sobretudo de substrato cuja moldura é sólida e não
pode ser abolida por um “presente” de uma certa contemporaneidade que são as
rupturas das formas estéticas, das chamadas vanguardas, por sua vez, também
efêmeras.
Contudo, a história
literária do país sofreu, em linhas gerais, a partir de 1945, principalmente na
poesia, uma forma de retrocesso em relação aos princípios fundamentais da nova
estética impiedosamente transgressora que caracterizou os primeiros anos dos
modernistas históricos, tendo à frente um Mário de Andrade, um Oswald de
Andrade, entre outros.
Já na segunda fase
do Modernismo, na década de 30 do século passado, a virulência iconoclasta arrefeceu
e aparou os seus iniciais ímpetos corrosivos face ao passado e iniciou uma nova
postura estético-temática, procurando um equilíbrio onde nem se voltaria mais
às fontes parnasianas anacrônicas nem tampouco se permaneceria irredutível nos
limites estreitos dos experimentalismos e pirotecnias inócuas.
Procurou-se, antes,
uma via ou vias renovadoras que exprimissem literariamente um Brasil
sintonizado com a sua cultura, suas tradições, com a sua língua e com os seus
modos de tentar aproximar o mais possível do povo a realidade da nação, com
seus problemas peculiares, muitas dificuldades e incertezas políticas e
econômicas num país que, para dar um só exemplo significativo, viveria os
embates da Revolução de 30 liderada por Getúlio Vargas e, na mesma década,
sofreria um retrocesso político com o Estado Novo (1937-1945)sob novamente a
tutela de Vargas com todas as sequelas de males inerentes a uma Estado
ditatorial e, contraditoriamente, de conquistas no plano social, sobretudo na
área dos direitos dos trabalhadores.
Por outro lado, a
questão da inserção do povo na ficção e nos principais gêneros literários
brasileiros precisa de ser um tanto relativizada, visto que os movimentos
literários têm caráter hierarquizante e mesmo elitista quando os entendemos
como mudanças estéticas de cima para baixo, de uma elite intelectual para a
qual o povo pode ser matéria de temas e de linguagens mas delas não
co-participam do tripé autor+obra+ leitor, este último sendo quase sempre
sujeito passivo ou externo pelas próprias condições de penúria cultural e
escolaridade que o impossibilita à fruição dos bens culturais das elites
intelectuais. Esse é o grande dilema entre a vida intelectual e o povo, o homem
comum, o operário.
Os escritores que,
em 1945, não se afinaram com algumas conquistas estéticas de 22 e de 30, procuraram,
ainda que de forma não uniforme nos seus preceitos estéticos, reagir contra as
formas variadas tomadas pelo Modernismo e suas diferentes manifestações
estéticas inovadoras, numa atitude estética que os levavam a uma espécie de
Neo-parnasianismo, ressuscitando o uso do soneto, da métrica, da rima e das
imagens plásticas, corpóreas, concretas e objetivas no que concerne aos temas e
a uma linguagem refinada, aristocratizante. Entretanto, cumpre ressaltar que as
“geração de 45” não desejou, entre os inúmeros adeptos de sua estética, uma
mera cópia do velho Parnasianismo.
Nem tampouco isso
seria possível em termos absolutos, pois a poesia brasileira, após o vendaval
modernista, jamais seria a mesma e é nesse ponto que surge um poeta que, embora
se inclua na “geração de 45,” logo seguiu um caminho independente. Falo de João
Cabral de Melo Neto, cuja práxis poética não confirmou a tendência geral
daquela geração, preferindo, consoante pondera bem Sílvio Castro[4] deixar sua
poesia permear-se de algumas influências da geração poética de 30, muito fértil
também na ficção, sobretudo com os romances nordestinos de 30.
Sendo assim, Cabral
pagou tributo à poesia de Carlos Drummond de Andrade pela vertente política, à
poesia de Augusto Frederico Schmidt no que concerne a uma “aparente falta de
consciência formal”[5] e ainda até à poética de Murilo Mendes quanto ao
aproveitamento da “informalidade compositiva dos poemas imagísticos,” não sem
antes serem por João Cabral “criticados e negados”[6] Quer dizer, João Cabral,
tanto quanto outros poetas da “geração de 45,” após negarem conquistas
expressivas do Modernismo de 22, não deixam, entretanto, de reaproveitarem
“dialeticamente” valores que provêm desse mesmo marco histórico decisivo aos
futuros avanços estético-formais da poesia brasileira.
2. DA GEOMETRIA DA CAPA ÀS DESARTICULAÇÕES
SILÁBICO-SEMÂNTICAS.
No início deste
estudo da poesia de Luiz Filho tinha chamado a atenção do leitor para um
aspecto dominante de BardoAmar: o campo pictórico. Só para alertar, lembro a
circunstância de que neste livro o elemento visual se enlaça umbilicalmente em
toda a extensão do volume, o que é facilitado por ser o autor quem preparou as
ilustrações do livro. Ou seja, é intencional a fusão aqui da palavra poética
com a arte visual, remetendo logo ao velho preceito horaciano do ut pictura
poesis. Exteriormente, torna-se palpável o largo uso de natureza icônica entre
as linhas do desenho e a palavra conotada.
Veja-se o anverso da
capa do volume onde se harmonizam intimamente o título do livro e os elementos
pictórico-geométricos, já entremostrando, então, rupturas sintagmáticas,
recurso amplamente empregado pelo autor.Em BardoAmar, o verbo em forma nominal
reduzida do infinitivo se aglutina a uma anacrônica e solene designação da
palavra “poeta”, além de que essa mesma aglutinação cria certa ambiguidade –
recurso igualmente encontradiço neste poeta - despertando associações, por
exemplo, com variadas estruturas possivelmente desdobráveis: “amar um bardo,”
“o amor de um bardo” ou até mesmo uma associação virtualmente possível e de
valor morfológico, atribuindo a “bardo,” por derivação imprópria, um valor
adjetivo.
A par disso, anda
no espaço do mencionado anverso da capa, há um significativo desenho de uma
caravela que, por sinal, se repete três vezes mais no corpo do livro. Cabe,
neste sentido, uma observação. Na chamada advertência, ou prólogo do livro,
Luiz Filho, à semelhança de antigos poetas românticos, à frente Gonçalves de
Magalhães, nosso introdutor do Romantismo brasileiro, com os seus Suspiros
poéticos e saudades (1836 ), reporta-se a uma viagem, ideia reiterada pelo
habilidoso pastiche dessacralizante e oswaldiano do terceiro verso do Canto I,
Proposição do clássico épico Os lusíadas: “.. bares & mares muito gigantes
navegados.”
Aliás, , este
tipo de procedimento técnico do autor, ao longo do livro, se vai novamente
insinuar junto a leitor. Quero antecipar que as alusões, tão poderosas hoje na
poesia contemporânea e que há tempos já fora prenunciada pelo critico inglês I.
A Richards,[7] em BardoAmar se fazem igualmente presentes, em que o antigo,
i.e., o passado, em termos de estilos literários, esteticamente deliberado aqui
e ali, se mostra fértil, provavelmente naquela mesma linha de pensamento da poesia
de Manuel Bandeira (O itinerário de Pasárgada) segundo a qual o poeta apenas
desejou prestar homenagem ao legado de ancestralidade lírica.
O texto
“Advertência” (p.10), finalmente, embute as pressuposições estéticas e escolhas
do autor que, em lentes ampliadas, indiciam uma proposta de poema na qual podem
conviver estilos e tempos diferentes (traços de pós-modernidade da lírica
contemporânea) de linguagens em diálogo sincrônico ou contemporâneo com as
matrizes da nossa formação estético-literária, num amálgama tenso ou
irônico-humorístico em construções ousadas que, ao longo do texto, se
desconstelam pelas possibilidades fônicas, rítmicas, léxicas e sintáticas, as
quais me lembram um dado linguístico de capital importância – a funcionalidade
do fonema na formação da palavra, onde a troca de um fonema por outro
(paronomásia) resulta noutro vocábulo ou num todo sem sentido na
horizontalidade ou transversalidade do ato da leitura. O resultado, além disso,
muitas vezes possibilita um inteligente, criativo e lúcido jogo semântico .
Esta é uma das chaves de leitura que o texto poético de Luiz Filho parece
propor ao leitor de poesia atento.
A distribuição dos
poemas no espaço do livro merece ainda um comentário. BardoAmor se divide em
três partes, sendo que o primeiro vocábulo “parte” sofre desarticulação gráfica
de duas maneiras: a) o poeta primeiro o grafa “PART...TE” e, em seguida, o
escreve “PAR-TE”. Ora, tanto numa forma anti-convencional da grafia normativa
portuguesa quanto noutra, as duas novas formas remetem, enquanto significantes,
para novos sentidos.
3. BARDOAMAR: TEMAS, LINGUAGEM/NS E FORMA/S
A profusão
grafemática que se espraia por toda a extensão da 1ª parte, incluindo poemas de
diferentes extensão, que vão de 15 versos até poema de um só verso, reforça e
reafirma as intenções do autor para a importância atribuída à visualização, à
maneira do Concretismo de 56, com seus correspondentes recursos
verbovocovisuais e bem assim a outros recurso trazidos pelas vanguardas
brasileiras (Poema-Processo, Poesia Práxis, Neoconcretismo).
Só que em Luiz
Filho há um passo dado a mais,: o recurso de desenhos de figuras e de objetos,
ou partes do corpo humano não-figurativos, como no enigmático poema “cama suma”
(p.21) introduzido por traços geométricos (um retângulo encimado por linhas
geométricas figurando uma cabeça humana usando óculos e exibindo uma forma de
boca. Sobre a cabeça (masculina? feminina?), os cabelos (?) semelham raios
elétricos O retângulo inclui formas de ângulos, num dos quais existe um par da
letra “y” (?) simetricamente colocados um do lado do outro. O poema a que
corresponde àquele geometrismo vale mais pelo seu ângulo semiológico do que
pela sua apreensão lógico-analítica, onde a palavra poética fala mais de si do
que pela captação da mensagem decodificada. Seria antes um mero jogo
abstracionista pela sua irredutibilidade cognitiva.
Na 1ª parte, ao
todo composta de 28 poemas, há que se notar, inicialmente, a forma gráfica da
escrita manual impressa. Nesta antessala do conjunto de poemas se estabelece o
mood em que formas de linguagens vão delimitar a fronteira dos dois temas
dominantes desses versos: a viagem e o amor que simultaneamente lhes vão
insuflar vida como criação poética.
Entretanto, -
convém acentuar bem - aqueles temas não são convocados arbitrariamente. Cumpre
desentranhar-lhe - e aqui estou me reportando ao poema de abertura, “BardoAmar”
( p. 18) que dá título ao livro -, o alcance: a viagem e o amor de que se
cogita falar aqui não é a real, a empreendida em confortável embarcação. De
resto, o índice icônico – a ilustração de uma caravela – bem reforça os meus
objetivos de entendimento do poema, consoante, mais adiante, comentarei. Antes
é uma viagem pelas palavras, ou seja, pela poesia, com todas as suas reverberações.
A viagem seria,
para completar, a do encontro do amor, liame indissociável entre Arte e
Sentimento. Sob um pano de fundo histórico, remetendo às conquistas portuguesas
ultramarinas, na melhor hipótese à tona vem a epopeia lusíada. O poema é
constelado de lexemas alusivos àquela viagem: “cenas líquidas”, “caminho”,
“tormentas”, “amarras”, em fusão com “velozes”, “velas”, “a mar”, expressão
esta última que também remete ao verbo “amar,” caso houvesse a aglutinação dos
vocábulos, expediente gráfico muito comum em Luiz Filho.
Deste primeiro
poema para os seguintes, a inflexão se dirige mais fortemente para o terreno do
sentimento amoroso, a começar do sugestivo poema “faróis” (p. 18). O
“eu-lírico” desse poemito de três versos neste ponto divisa um lugar procurado
e seguro. Já a esta altura, se constata um tipo especial de construção
sintático-poética que, no mínimo, me dá a sensação de emprego latinizante,
aquela construção na qual a ordem dos termos oracionais se faz entendida pela
subordinação às flexões das declinações.
Em outras palavras,
a combinação dos termos oracionais rompe drasticamente a estrutura plausível de
um verso tradicional, dir-se-ia de dicção romântica, parnasiana, simbolista ou
mesmo moderna. E isso não é de modo algum motivado por figuras de construção –
tropos - violentamente transgressoras da ordem direta do discurso referencial,
como hipérbatos, anástrofes e sínquíses, empregadas, sobretudo, na poesia
clássica e no Barroco. O estranhamento da construção em alguns poemas de Luiz
Filho se situa mais no terreno do mimetismo rítmico-melódico da sintaxe
poética. Talvez seu propósito seja mesmo o de propiciar o choque, o
estranhamento, a desautomatização, a desestabilização nos hábitos usuais do
leitor de poesia de corte conservador para adequar-se ao mood do poema à
maneira de José Albano, Manuel Bandeira ou Da Costa e Silva, por exemplo, com
seus conhecidos poemas trecentistas (Bandeira), os Vilancetes e Palimpsestos
(Da Costa a e Silva) e os sonetos de sabor camonianos (José Albano).
Vê-se que se tem
diante de nossos olhos um artista do verso sintaticamente hermético, criando
opacidades em todos os sentidos e estratos da linguagem. Este experimentalismo
arrojado, a meu ver, só possui uma única vantagem: transformar a dicção poética
por meio dos sentidos, pelas sensações rítmicas, melódicas, pictóricas,
causadas no leitor, lembrando de perto por vezes alguns preceitos dos
simbolistas buscados em Verlaine: “De la musique avant toute chose.”
O segundo poema,
“Poesia na morada do aluno” (p.19), pela desarticulação de sílabas e pela
rearticulação e ressignificação daquelas resulta numa curiosa e original
paródia do conhecido e antológico poema de Oswald de Andrade: “Amor/humor”,
isto é, aquele poema no qual, abaixo do título (“Amor”) se segue um único
verso-poema. Não é gratuito o título do poema de Luiz Filho, que parece
inspirado no título da obra de Oswald de Andrade Primeiro caderno de poesia do
aluno Oswald de Andrade (1927), do qual consta o poema “Amor”
Na reinvenção de
Luiz Filho, o humor já presente em Oswald de Andrade, ainda se radicaliza mais
e cria novos sentidos e possibilidades conceituais via humor, além de ser
acrescido dos próprios reforços metalinguísticos (sobretudo os utilizados na
publicidade como fazem sugerir as letras em maiúsculas) e poéticos. As
alterações morfológicas, as justaposições, os sinais de pontuação (
reticências, ponto de exclamação, bem como ainda o início de cada linha poética
em letra minúscula que, pela primeira vez, encontrei no excelente poeta
português Vasco Graça Moura (1942-2014) a disposição espacial deslocada dos
vocábulos “amor” e “humor” não simétrica e com o primeiro verso oswaldiano
partido, demonstram a perícia da apropriação para outras mudanças compositivas
a partir de um poema-fonte.
A dupla leitura que
o poema parodizado, no contexto fonológico, poderia assumir caso se pensasse da
perspectiva co-particpante e lúdica do leitor ao trocar o fonema vibrante
alveolar em maiúscula (“R”) pela lateral alveolar, redundaria num vocábulo que,
subtextualmente,, nos salta à vista: “amolação,” numa permuta de fonema bem
afim com o sentido geral humorístico-parodístico do 3 º verso do poema. Veja-se
o poema na sua inteireza:
a-MOR
HUMmm...
a MOR ação!
Em outras palavras,
o terceiro verso adquire o duplo sentido pela injeção de novo semantema e de
nova desarticulação silábica entre o primeiro e o terceiro versos. Finalmente,
o próprio título pode ainda ser lido no seu duplo sentido se porventura o leitor
co-participante deseje justapor os elementos morfológicos do sintagma “na
morada”: “namorada’, criando, destarte, mais um terceiro novo sentido: “
poesia, a namorada do aluno, que dá pano para muitas mangas interpretativas
cujo epicentro é a arte poética em si.
O que se segue a
estes dois poemas é uma continuidade transgressora da estrutura sintática de
versos, aliada a outras invenções de desarticulação silábicas, de inserções de
desenhos esquemáticos, habilmente ilustrados pelo autor. Tudo isso reitera um
elemento diferenciador da poesia do autor e que serve de sustentação aos
procedimentos compositivos de seu verso: a capacidade de produzir novos
sentidos e de revesti-los de uma sintaxe que lembra a construção latina,
segundo já mencionei.
O fato mais inusitado
do aspecto de estranhamento do verso de Luiz Filho é cantar o amor carnal tendo
o cuidado de não chocar nunca o leitor nos seus melindres moralistas, contudo
produzir erotismo em meio a rupturas de malabarismos de imagens que mais
prevalentemente se pressentem do que gratuitamente se apresentam ao leitor. De
resto, o poema de Luiz Filho, antes de tudo, e já o frisei, solicita a
participação do leitor, constituindo, muitas vezes, um esforço de co-autoria
diante das direções apontadas no corpo do poema, segundo se pode ver igualmente
no seu segundo livro, Ondehumano.
Um bom exemplo é o
poema “conjogal”(p.27), no qual o poema visualmente representa a forma de um
jogo da velha.É bem inventivo e constitui um do que maior exige a habilidade
participativa do leitor. Naturalmente, esse tipo de poema visual, assim como
outros na extensão do livro, amealha o que de bom se legou das vanguardas
europeias e das suas derivações no Brasil: os grafemas, a espacialidade
horizontal, diagonal e vertical, a circularidade, o lado ideogramático que
remonta à Antiguidade e, no Simbolismo brasileiro, encontrou diversos cultures,
inclusive Da Costa e Silva e Elmar Carvalho, entre outros autores piauienses.
O mesmo poder-se-ia
afirmar do poema “misteros” (p.25).. Nele também o grafismo que, no caso, é uma
imagem preta, ou melhor, um desenho, nos conduz visualmente para aquele
conhecida figura da “Wife or mother-in-law” que W.E. Hill insere no American
Journal of Psychology e que está reproduzida por Antônio Gomes Penna[8] na obra
Percepção e aprendizagem. Se olho para esta figura de um ângulo dado, percebo,
no desenho que introduz o poema, uma figura de um objeto em forma fálica e meio
em curva, com uma extremidade lembrando uma cobra. Se, por outro lado, observo de
outro prisma o desenho escuro, vejo um perfil humano em branco e com sua sombra
escura ampliada.
O título, vocábulo
criado artificialmente por aglutinação, provavelmente formado de “mistério” +
“eros.” aponta para o tema da iniciação sexual. A ambivalência, um das
constantes da poesia de Luiz Filho, é a espinha dorsal de inúmeras formas
lexicais ou fônico–estilísticas. Os quatro versos que constituem o poema se
revestem, na sua disposição sintática, de um caráter de descoberta (da poesia?)
ou do dionisíaco prazer do sexo.
Não poderia deixar de
comentar o último poema desta 1ª Parte, o da páginas 30-32, sob o título
“Amarração.” Formado de 12 estrofes trissilábicas, me parece o mais belo poema
desta parte. Leio-o em voz alta, como o faria com um poema de Poe ( conselho
que me dera um professor americano de literatura do meu tempo de graduação ), e
percebo seu ritmo, sua melodia, sua musicalidade e, por acima disso, um
misterioso halo notálgico-amoroso. Poema feito de muitas camadas superpostas.
Poema-síntese servindo a muitas chaves de leituras.
No campo semântico,
no atrevimento de formas verbais irradiando células semânticas, no tema do amor
liricamente bem urdido, nas camadas fônicas (aliterações), nas alusões
intertextuais exógenas e endógenas, tendo como ponto referencial o poema épico
camoniano, a mitologia desconstruída pelos novos tempos pós-modernos, a
referência direta ao título do segundo livro do autor (dado intratextual),
conforme se vê no 3ªº verso da 9ª estrofe Poema pleno de alusões diretas,
indiretas e desconstruídas nos sentidos, e nas formas lexicais, operando
ressignificações originais e inesperadas. “Amarração” reúne três temas: o amor,
a linguagem e a poesia. Sua leitura é pluridimensional e, como todo poema bem
realizado, não se exaure aos caprichos do leitor ou do critico.
A poesia de Luiz
Filho - já se pode até aqui tentar extrair uma conclusão provisória em suas
linhas gerais -, é a de um artista do verso ao qual o leitor deve estar
continuamente alerta, particularmente do ponto de vista intelectual, dado que
sua dicção encerra pelo menos dois traços constantes: a surpresa e a
duplicidade ou multiplicidade semântica, compreendidas nas ousadias sintáticas
do discurso lírico, gerando sentimentos díspares e forte humor e/ou ironia no
seu universo poético, num vigoroso e original ludismo fonético, fonológico,
visual, espacial e, acima de tudo, numa predisposição infensa às decifrações
explícitas e lineares ao se tornarem objeto de exegeses do seu espaço interno
de expressão significativa (mensagem, conteúdo, ideologia e cosmovisão) e sua
exterioridade significante esteticamente formalizada (retórica e todos os
elementos constitutivos do verso, do poema ( estrofe, aliteração, cadência,
ambiguidades, mood, ritmo, métrica (se houver), gênero poético, tropos,
estrutura, entre outros artifícios da arte versificatória, considerado esta na
sua acepção temporal mais ampla possível). A poesia de Luiz Filho tende, no
geral, a oferecer resistências e obscuridades inquietantes.
A 2ª parte, se o
leitor bem notar, a maneira de subtítulo, retoma invertidamente os três últimos
vocábulos do verso final da “I PARTE”: “em mar fragil mar”. Nesta parte, o tipo
de escritor muda para um outro tipo impresso, não o manual impresso da primeira
parte.
Os poemas da
segunda parte reunidos em número de 27, aceleram ainda mais as estratégias de
desconstrução e, desta maneira, se vão impondo aos olhos do leitor com toda a
riqueza provinda do lirismo amoroso, ainda que continuadamente de natureza
carnal, transfundido em inovadoras formas de elaboração poemática, em ousadias
metalingüísticas, metapoéticas, aliando beleza de sentimentos a beleza de
linguagem
O caráter de
rupturas poéticas em Luiz Filho é traço diferencial entre ele e outros poetas
de sua geração. Todas essas subversões no verso operacionalizadas pelo seu
estro são na realidade modos de cultivar poemas medularmente modernos mas não
radicalmente destituídos daquilo que a grande herança da poesia antiga lhe
ensinaram e foi antropofagicamente por ele assimiladas, sendo para mim este o
grande caminho que poetas que se querem modernos deveriam buscar. Não ler e
aprender com o passado me parece uma atitude leviana e contraditória a um só
tempo.
No verso de Luiz
Filho pressente-se o quanto sua natureza poética aqui e ali, dialoga com a
tradição, seja com a Antiguidade, grega ou latina, seja com a poesia provençal,
com o quinhentismo camoniano, com o Arcadismo, com Oswald de Andrade – presença
nele forte -, com Carlos Drummond de Andrade, entre outras vozes da lírica
brasileira e universal. O Poeta ubíquo,
nas fontes do dialogismo atemporal nem por isso deixa de ser uma artista do
verso bebido nos tempestuosos e voláteis tempos pós-modernos, antenando-se
ciberneticamente e pondo no seu verso a experiência e o contato dos meios
eletrônicos cada vez mais sofisticados e em constante mutações plurifuncionais
Inserido de corpo e alma na pós-modernidade, a poesia de Luiz
Filho planta-se no tempo presente, numa atitude que poderia repetir a natureza
orgânica do poeta Drummond como o mais representativo artista do verso que
tomou para si o presente, na poesia e na prosa, como matéria primacial de sua
poética. Instalando-se no tempo presente, o poeta Luiz Filho se deixa impregnar
do “aqui e agora,” primado do instante, no afã de se afirmar e firmar o seu
objeto poético feito da matéria humana e dos produtos e conquistas do nosso
tempo desagregador
Na 2ª Parte,tudo se
torna possível em termos de experimentalismos, nos quais as palavras como que
assumem o controle de si mesmas, espécie de silêncio do verbum, onde as
palavras são capazes de criar e recriar sentidos insuspeitos em códigos
cifrados. Instaura-se, agora, o reino dos hermetismos e dos malabarismos
obscuros à Mallarmé, combinando, segundo já ressaltei, características
simbolistas com ludismo, ironia, humor e subtextos indevassáveis a olho nu.
Nesta instauração de avanços ousadíssimos do discurso
poético, Luiz Filho se torna um virtuoso. Entretanto, a persistir nestas
estratégias de virar pelo avesso a função poético-comunicativa, ele se arrisca
a perder-se no puro hermetismo indesejável ( e aqui estou com José Guilherme
Merquior ao falar da poesia humilde de Bandeira) a um poeta que aspira ao
entendimento sem abrir mão da qualidade e originalidade dos versos.
Não lhe posso
sonegar a invejável tendência à inventividade, à disponibilidade para novas
formas de diálogo com o leitor, com a poesia e consigo mesmo. Não é possível
não se comover com os versos do poema “amamos” (p. 40):
Amamos
quando não se-sentem
passado & presente
o verbo nos-arremessa ao mágico
neutralizando nosso espaço de sujeitos
ao acaso & próximo... só
o advérbio mente ao tempo
Ou não se divertir com o poema “Caro Prato” (p.43):
Caro Prato
Sem nenhuma etti ..........................Queta
O amor fugiu do card......................Ápio
E quem pagou o p.............................Ato?
Ou essoutro com ressonâncias oswaldianas (p. 35):
Voz nua à lua nativa
contrassopram em mim
lembrançass de ti
a selvar-me salvagem
como tupis amórfagos
ritos em vocação nova:
Catiti!
* O ensaio acima é uma reprodução, revisada, corrigida e
melhorada das quatro séries que já foram postadas neste Blog. Dei-lhe, agora,
uma feição mais acadêmica.
NOTAS:
[1] OLIVEIRA, Luiz Filho de. BardoAmar. Teresina: Edição do
Autor, 2003.
[2]Idem.. Ondehumano. Teresina: Nova Aliança, 2009.
[3] BURGUESS WILSON, John. English literature: a survey for
students. 9th impression. London: Longman, 1970., p. 11.
[4] CASTRO, Sílvio. História da literatura brasileira. Vol.
3. Lisboa: publicações Alfa, 1999, p. 256.
[5] Idem , ibidem.
[6] CASTRO, Sílvio. Op. cit., p.256-257.
[7] RICHARDS, I. A. Princípios de crítica literária. Trad.
Rosana Eichenberg, Flávio Oliveira e Paulo Roberto do Carmo. Porto Alegre:
Globo/Universidade de São Paulo, 1967, p. 181-185.
[8] Apud GOMES PENNA, Antônio. Percepção e aprendizagem. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1968, p.14.
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