O FIEL DE JUNQUEIRO
Jacob Fortes
Em linguagem ornada de eruditismo
robusto, portanto de difícil assimilação por quem se houve em leituras
fortuitas, o escritor Guerra Junqueiro (1850 – 1923) narra, por meio do soneto
intitulado “O FIEL”, a comovente história de um cão que vivia nas ruas e delas
retirava o seu sustento. Aliás, as ruas, no dizer do escritor “João do Rio”,
são “a mais niveladora das obras humanas”. É que as ruas tudo admitem: o bem e
o mal, o evangelho e o crime. As ruas são igualitárias, socialistas,
agasalhadoras, ignoram a erudição, transformam o significado dos termos, criam
o chulo e o baixo calão, impõem aos dicionários as palavras que inventam. Mas
voltemos ao cão, do Abílio Manuel Guerra Junqueiro; a dissertação das ruas fica
para 2016.
Era um reles cão, sem coleira, acostumado
ao vento e ao frio. Para alimentar-se
garimpava sobejos nas lixeiras e monturos. Durante as chuvas fortes ou frios
rigorosos, abrigava-se nos portais, nos vestíbulos, mas ao menor ralho
levantava-se e saía — envergonhado — pedindo desculpas, com os olhos, por haver
ocupado um lugar que não lhe pertencia. Inofensivo, jamais mordera uma criança
indefesa, sequer ladrara com quem quer que fosse mesmo com os molambentos de
sujidade sem par. Porém, não faltava quem o fizesse correr à pedrada.
Certa feita um mísero pintor,
boêmio, deparou-se com o solitário cão. Ao vê-lo, de olhar plácido e acolhedor,
disse-lhe o pintor: — "O teu destino é quase igual ao meu, eu sou como tu
és, um proletário roto, sem família, sem mãe, sem abrigo, e quem sabe se em ti,
ó velho cão de esgoto, eu não irei achar o meu primeiro amigo? Tu és o meu
amigo e eu sou o teu irmão; partamos, pois, juntos. O sofrimento a dois minora
a dor”.
Depois de anos ombreados,
dividindo, por igual, privações e dores, o pintor, por obra desses acasos
agenciadores de bons e maus sucessos, fora contemplado com a glória, que o
libertou da miséria. Ambos, libertos de
tantas vexações, passaram a desfrutar de vida lauta. O cão dormia em
confortável tapete à borda do leito do pintor. Ao despertar, de manhã cedo,
cuidava de acariciar festivamente o seu amo. Mas o pintor, inebriado de
abastança, desandou pelos caminhos da luxúria, das paixões e da esbórnia,
circunstância que o afastava cada vez mais do seu leal rafeiro, de quem, aliás,
já não tolerava as carícias, aborrecíveis. A indiferença do pintor imprimia ao
cão um sentimento de desgosto, cujos olhos, lânguidos e doces, se tornavam
melancólicos ao feitio da melancolia da imensidão oceânica. Velho, preterido e
negligenciado, muitas vezes se via castigado, até batido pelos criados que lhe
davam pontapés quando se punha a ganir chorando o seu destino. Por se haver
nojento e pelos em queda, o dono impunha-lhe a detenção para que não o
acompanhasse às ruas.
Certo dia, pressentindo a morte
disse a si: "Não morrerei sem antes despedir-me do meu amo; quiçá seja em
seus pés o meu último gemido”. Ao meter-se no quarto do pintor, este bradou
colérico contra o cão.
— Que fazes aqui, ó sórdido
animal? Hei de pôr fim à tua impertinência!
Mas, simulando amizade, consertou.
—Ó meu pobre fiel, tão velho e
tão doente, acompanha-me, ainda que te custe.
E partiram os dois, no breu da
noite, em direção ao cais, que ficava perto.
Aquele proceder, àquela hora, inspirou no cão um pressentimento nefasto.
Enquanto o cão, pensativo, lançava o olhar sobre as trevas mudas recebia à
face, com a imperturbável amargura do Nazareno, ósculos de Judas. E, resoluto,
disse a si: “se este é o meu fadário pouco importa, foi ele que me abriu um dia
a sua porta; morrerei se lhe dou com isso algum prazer.". Subitamente o
pintor arremessou o cão nas águas profundas e geladas, mas junto, se foi o
gorro de memoráveis recordações. De regresso a casa o pintor exclamava irado:
“Por causa do cão perdi o meu estimado adereço, antes o tivesse envenenado;
daria riquezas a quem pudesse reaver o meu gorro”. Deitou-se, mas, inquieto, manteve-se insone
durante o resto da noite pensando no gorro. E quando o clarão da manhã já era
vívido ouviu bater à porta. Ergueu-se e foi abrir. Cheio de espanto recuou: era
o fiel cão que voltara: arquejante, exânime, encharcado, a tremer, trazendo à
boca o gorro do pintor. E tendo, com esse gesto, erguido para si o altar do
sacrifício apenas tombou desfalecido! No plano terreal imolara as suas ilusões,
mas restava o amparo da Celestial luz Santíssima.
Essa história de Junqueiro, real
ou fabulosa, levará o leitor, inexoravelmente, a muitas ilações acerca da
natureza dessas duas espécies que Deus engendrou e fixou sobre a terra: o homem
e o cão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário