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HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XXXIII
Ester, serrana bela
Elmar Carvalho
Marcos, apesar de sua postura
aparentemente cínica, no modo como terminou o namoro com Laura, ficou triste
durante alguns dias. A moça foi concluir seus estudos na capital do país, onde
se casou e teve dois filhos. Não mais retornou a Évora, e o rapaz não mais a
reviu. Contudo, por muitos anos e talvez para sempre, ficou com remorso da
maneira indelicada e abrupta como terminara o idílio.
Quando ouvia nas amplificadoras da
cidade e nas dos circos e parques de diversão, que de vez em quando chegavam a
Évora, sobretudo na época dos festejos de São Gonçalo, os versos musicais “Quanto
sinto em dizer-te / Que me podes desprezar / Logo, logo / Sei que devo
deixar-te /Já não posso mais sonhar...” na voz de Márcio Greyck, sentia uma
forte emoção, e por vezes seus olhos marejavam, ao meditar sobre o que “podia
ter sido e que não foi”, como nos versos de Manuel Bandeira, um dos poetas de
sua predileção. E sentia falta dos carinhos, dos cuidados e da inefável ternura
de Laura. Para sempre carregou a nostalgia do que não foi, mas poderia ter
sido.
No último ano do antigo curso Científico,
travou relações de amizade com Maurício Vanderley, um serrano alvarinto, como se dizia na região. Seu pai era um fazendeiro, que resolvera
morar na cidade, porque desejava que os filhos estudassem e se tornassem
doutores: advogados, médicos ou engenheiros, principalmente. Maurício admirava
a inteligência e a conversa de Marcos, suas intervenções oportunas nas aulas,
interrogando ou aparteando os professores, e o convidou para passar um final de
semana na fazenda de seu pai, que ficara sob a responsabilidade de um casal de
parentes.
Num dia de sábado, por volta de uma
hora da tarde, cada um em sua bicicleta, seguiram viagem. A fazenda Canaã
ficava a 45 quilômetros da cidade. A temperatura daquela região serrana era agradável, e chegava a ser
fria a partir das nove horas da noite. Faltando cerca de duas léguas para a
chegada, começava uma subida um tanto íngreme, apesar das curvas da estrada
carroçável, que tentavam driblar as rampas mais acentuadas.
Quando chegaram, por volta de sete da
noite, Marcos estava quase morto, como ele disse, após serem recebidos pelo
casal, que tomava de conta da propriedade. Maurício Vanderley, acostumado a
andar de bicicleta e a cavalo nas estradas e veredas da serra, estava lépido e
fagueiro, como ele fez questão de alardear. Tanto o capataz como sua mulher
eram alvos; eram primos entre si e de Maurício. Descendiam de um casal de
holandeses, que se refugiara na serra, quando os seus patrícios foram expulsos
de Pernambuco.
Na velha e imponente casa de fazenda,
mais do que centenária, que substituíra o rústico solar anterior, cujas ruínas
ainda podiam ser vistas, havia uma pintura retratando os trisavós de Maurício.
Naquela noite de plenilúnio, tudo isso foi relatado e mostrado por João
Vanderley, o capataz, que parecia ter certo orgulho de ser descendente desses
marinheiros, como as pessoas da vizinhança diziam. Foi com mal dissimulada
empáfia que disse, apontando para o quadro, “esses dois são nossos ancestrais”.
Sua esposa se chamava Ester. Tinha os
cabelos louros. Os olhos eram azuis, vivos e luminosos como duas estrelas do
significado de seu nome de origem judaica. Tinha traços da trisavó de Maurício,
sendo, porém, muito mais bela. Suas caprichadas curvas, de colo altaneiro, se
deixavam entrever, não obstante a blusa recatada e a saia que lhe descia até
abaixo do joelho; viam-se apenas, desnudas, as panturrilhas grossas e bem
torneadas. Estudou na capital, em internato para mulheres, chegando a concluir
o curso ginasial. Apareceu na sala Judite, sua irmã, mais ou menos de seu
porte, cujo rosto guardava-lhe alguma semelhança, mas sem a sua graciosidade e
beleza; era arredia e um tanto acanhada. Foram as duas preparar os dormitórios
dos visitantes.
Após a refeição, já por volta de nove
horas, João anunciou que iria a uma festa, no povoado Tranqueira, a umas duas
léguas de distância. Já com três cavalos selados, na porta do solar, convidou
os rapazes a acompanhá-lo. Ao ouvir o convite, Ester ficou como possessa e teve
um acesso imediato e incontido de fúria. Fora de si, ensandecida, gritou:
– Eu sei o que tu quer! Tu vai te
encontrar com aquela tua rapariga sem vergonha...
– Que é isso Ester? Qual o motivo dessa
zanga? Eu vou apenas levar nosso primo Maurício e o amigo dele para essa
festinha. Eles são jovens, solteiros, e precisam se divertir.
– Que levar o primo que nada, seu
descarado. Maurício nasceu e se criou aqui, e sabe muito bem ir sozinho. Tu
quer mesmo é se encontrar com aquela sirigaita, que além de tudo ainda te põe
uns chifres. Um dia eu ainda vou aprontar uma boa contigo, pra tu ver se é bom
ser enganado...
O marido nada respondeu. Mas aparentou
ficar um tanto orgulhoso do ciúme destemperado da mulher. Renovou o convite e
marchou firme para onde estavam amarrados os cavalos. Maurício ainda obtemperou
que o primo não precisava se incomodar, pois ele conhecia bem demais essas
veredas e socavões. Marcos recusou o convite, alegando que estava cansado em
demasia, e seguiu para o quarto que lhe estava destinado, onde havia, bem
arrumada, uma larga e confortável cama. Logo a casa ficou em completo silêncio
e escuridão.
Marcos, em horário que jamais saberia
precisar, acordou, um tanto assustado; alguém o tocava. Pelos cabelos longos,
percebeu que se tratava de uma mulher, que se debruçava sobre ele. Tocou-a, e
lhe acariciou os pomos, grandes, rijos e macios. Os túmidos mamilos lhe
espetaram as mãos, até que ele os recolheu na boca faminta e sequiosa. Permitiu
que a mulher o cavalgasse. E se deixou possuir, como nunca o fora nessa
intensidade.
A mulher gemia e sussurrava palavras
desconexas, ininteligíveis, contudo inefáveis e aliciantes. O jovem sentiu, ao
acariciá-la, que seus olhos estavam úmidos. Talvez chorasse. Talvez chorasse de
tristeza ou por remorso. Ou de prazer. Quedou-se aconchegada a ele, ofegante.
Depois, tudo recomeçou, em frenético frenesi. Da cinza da exaustão o cio
retomavam, e fênix renasciam. Por fim, Marcos adormeceu.
Quando acordou, estava só. Já era dia.
Abriu as janelas e não encontrou vestígio do que se passara. Estava limpo e
nenhuma mancha havia sobre a colcha do leito. As serranias, ao longe, já
estavam iluminadas, sem as névoas dos amanheceres friorentos. Ester e Judite o
cumprimentaram de maneira natural, quase impassível, sem nada que denunciasse a
menor intimidade ou cumplicidade amorosa. Colocaram o café e o leite quente
sobre a mesa, onde já estavam pedaços de carne, ovos estrelados, beijus e
bolos. O rapaz tentou lhes sondar o semblante, mas não lhes notou nenhum sinal
de estranheza, inquietação ou receio. Qual das duas teria feito a incursão
noturna?
Só mais tarde chegaram João Vanderley e
Maurício. Após tomarem o reforçado café matinal, foram dormir, pois estavam
sonolentos e cansados, como o semblante denotava, e só foram acordar à boca da
noite. Marcos foi dar um passeio pelas redondezas, até encontrar o riacho que
lhe indicaram, em que tomou demorado, delicioso e revigorante banho em suas
águas borbulhantes e tépidas. O regato corria entre uma mata densa, muito verde
e luxuriante, cujas folhagens se debruçavam sobre ele. Formavam uma espécie de
túnel ou alameda.
O rapaz se quedou a ouvir a algazarra esfuziante
dos bem-te-vis. Recordou que em sua infância sua mãe lhe recomendava nunca
aprisionar ou matar pássaros, nem lhes tirar os ovos dos ninhos. Ainda tinha
arrependimento por causa de um único bem-te-vi que matara com um tiro de
espingarda, no final de sua infância. Vira a ave cair, mas sequer tivera
coragem de vê-la morta, no chão. O canto rascante e nostálgico das cigarras tomou
conta de tudo. Envolvido por essa música contínua, ubíqua, absoluta e
onipresente voltou a pensar no que lhe sucedera à noite. Mas, ante a
impassibilidade das duas irmãs, até mesmo discreta frieza, procurou não pensar
mais no caso.
Para se tranquilizar e se livrar de
eventual remorso, por haver, talvez, tomado a mulher do próximo, embora, bem
apurados os fatos, ele é que fora tomado, julgou que tudo não passara de um
sonho, até porque não vira o menor sinal de sexo, em seu corpo ou na cama. Todavia,
tudo lhe parecera tão vívido, tão verdadeiro, tão material. Parecia ainda
sentir nas mãos a carne palpitante e palpável da mulher. Talvez algum espírito
feminino, de alguém que tenha habitado aquela velha casa solarenga, tenha se
materializado e lhe proporcionado aquela noite tão cheia de encanto e enlevo.
Contudo, após o almoço, quando estava
sozinho no quarto, arrumando sua mochila, por causa do retorno a Évora no dia
seguinte, Ester entrou subitamente no dormitório. Abraçou-o com força e o
beijou de modo arrebatado, enquanto lhe sussurrava “espero que você, embora
seja ainda um rapazinho, guarde o nosso segredo para sempre, e nunca se esqueça
do que entre nós se passou”. E o que se passou à noite foi repetido à luz do
dia. O rapaz pôde apreciar, então, todo o esplendor escultural da linda
serrana.
Marcos guardou, muito bem guardado,
aquele segredo, que parecia ser o marco simbólico do final de sua adolescência.
E, quando lia ou recitava os camonianos versos – “Sete anos de pastor Jacob
servia Labão, pai de Raquel, serrana bela” – a saudade de Ester, fulgurante
estrela e serrana bela, lhe pungia a alma. E por mais que vivesse jamais a
esqueceria.
A maestria e o completo domínio do autor sobre a história em construção, não permite que ele transforme o seu protagonista em personagem pornográfico. Antes, pode-se afirmar que ele tem sido usado pelas mulheres com muita frequência, o que o torna uma vítima e não um aproveitador. Daí a simpatia com que ele é cumulado pelos leitores da bela história. Senão vejamos: Madalena, a bela e respeitável esposa de um representante de Hipócrates,lançou sobre ele todo o seu charme de mulher casada para resolver um problema de esterilidade do marido, e em comum acordo com este;Gracinha, prostituta, do tipo teúda e manteúda, o queria apenas como namorado para dar vazão aos seus sonhos de moça pudica; e agora Ester, sangue batavo jorrando solene e fervente em terras mafrense,utiliza-se dele apenas(?)para dar vazão a uma simples vingança. Desse modo o Marcão, no que pese transitar solerte e lampeiro nesse campo minado, não pode ser rotulado de amoral ou traíra. É apenas um gratuito distribuidor de felicidade entre as mulheres eborense.
ResponderExcluirCaríssimo JP,
ResponderExcluirnão podemos olvidar que o nosso Marcão até que gostava de ser "usado" por essas mulheres.
Ou seja, acho que ele gostava de ser, digamos, um objeto sexual nunca abjeto.
Por outra parte, desconfio que a descendente de batavo só precisava de um bom pretexto para tranquilizar a consciência e assim saltar a cerca, embora em circunstâncias especiais, e que, creio, ela não tenha mais repetido.
Mas eu apenas quis contar uma estória, de modo que deixo essas análises para psicólogos, psicanalistas e outros especialistas.