HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este
romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente),
à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXXVI
E assim se passaram os anos
Elmar Carvalho
Quando Marcos concluiu o curso ginasial,
encontrou uma turma de ginasianos que se comprometeu a dar continuidade ao
jornal mural O Arauto. Conseguiu ainda publicar o jornal mimeografado O Liberal
até o final de seu curso de Direito. Já então Mário Cunha fora morar no Rio de
Janeiro, onde seu talento artístico foi reconhecido, passando a trabalhar como
capista e ilustrador de grande editora nacional, que publicava revistas e
livros didáticos e literários. Fabrício, que já vinha auxiliando seu pai na
administração de sua loja de eletrodomésticos, fora cursar Administração de
Empresas na capital.
Em virtude de O Liberal ter uma linha
editorial independente e criticar com contundência as três esferas de governo,
terminou perdendo vários anunciantes, o que foi inviabilizando a publicação
regular do jornal, que foi espaçando cada vez mais a sua periodicidade, até o
seu extemporâneo último número, cujo editorial teve o título poético de O canto
do cisne, em que anunciava melancolicamente a sua própria extinção. Nesse
número, a exemplo do que fazia nos demais, denunciou várias mazelas e
corrupções da política estadual, nacional e municipal, além da derrubada e
descaracterização de vários prédios e logradouros do patrimônio arquitetônico e
artístico municipal.
Com a decadência do extrativismo e da
construção de estradas asfaltadas, interligando as cidades circunvizinhas, a
navegação do Paraguaçu foi definhando, até quase extinguir-se de todo. Já não
se viam as grandes chalanas, barcaças e alvarengas ancoradas no cais do Porto
do Charque, cujo nome era devido às charqueadas que ali existiram num passado
já distante. As duas maiores indústrias de óleo de babaçu e de cera de carnaúba
– a Vegecera e a Teles Bacelar – entraram em processo falimentar.
Quando James Cavalcante Taylor,
proprietário da primeira, parou suas máquinas e caldeiras, seu grupo
empresarial já estava em grandes dificuldades financeiras; disso resultou ficar
em atividade apenas a matriz da Casa Britânica, fixada em Évora, que ainda
resistiu por alguns anos. Carlos Teles Bacelar, por sua vez, emborcou o facho
de suas fábricas de cera e de óleo babaçu; passou a fabricar outros produtos e
diversificou suas atividades.
Com a instalação de grandes lojas de
departamento em Évora, com preços mais atraentes e sistema de crediário de
prazo mais alongado, muitas lojas concorrentes locais, de nomes imponentes como
Império dos Móveis, Ditador da Moda, Palácio de Variedades, fecharam as portas.
Os chamados profetas do apocalipse anunciaram que a cidade entraria em total
decadência, e passaram a chamá-la de “a cidade do já teve”, de “bela
adormecida”, de “finada Princesa do Paraguaçu”, etc.
Contudo, o rebate das trombetas foi
falso, e os profetas apocalípticos fracassaram em seus presságios. Tal como
aconteceu com outras cidades de mesmo porte, Évora voltou a se desenvolver em
outros setores, sobretudo no turismo, prestação de serviço e comércio. Assim, surgiram
novos hotéis e pousadas; instalaram-se vários estabelecimentos de ensino,
mormente de nível superior, inclusive com faculdades de medicina, odontologia,
enfermagem, agronomia; fundaram-se mais clínicas e hospitais; grandes empresas
atacadistas e de supermercados surgiram na cidade, atraindo consumidores e
varejistas de todos os municípios da região. Eclodiram muitas empresas não
pertencentes às famílias tradicionais da cidade. Évora se expandiu em novos e
afastados bairros, inclusive com a construção de luxuosos condomínios fechados.
Foi nesse embalo que, já formado, Fabrício conseguiu transformar a loja de seu
pai numa grande rede estadual de lojas de departamento, o que demonstrou a sua
inteligência, liderança e capacidade empresarial.
Em meados da década de 1980, Marcos
associou-se a alguns amigos intelectuais e fundou a Academia Eborense de
Letras. Na qualidade de seu idealizador, foi aclamado pelos seus confrades como
seu primeiro presidente. Na solenidade de sua instalação, realizada no
auditório da Câmara Municipal, no prédio onde funcionara o desativado Évora
Clube, onde dançara tantas vezes, proferiu notável discurso, no qual denunciou
que alguns prédios antigos e históricos da cidade já haviam sido derrubados ou descaracterizados,
sobretudo por comerciantes gananciosos, ávidos apenas por lucro e mais lucro.
Alertou que as velhas casas (os “planetas”) da Zona Planetária estavam com seu
estado de conservação bastante comprometido, podendo ruir num “inverno” mais rigoroso.
Acrescentou que o poder público
municipal deveria promover concurso no ramo da historiografia, para que algum pesquisador
ou historiador ficasse estimulado a escrever a história de Évora. Falou da
degradação ambiental da cidade, sugerindo que um parque florestal fosse criado,
sobretudo para preservação das matas ciliares do Paraguaçu. Também apresentou a
sugestão para que um parque de preservação ambiental fosse criado na região da
Serra do Cachimbo, com a criação e instalação de piscinas, bicas, trilhas,
teleférico e outros equipamentos, que, sem dúvida, fomentaria o turismo no
município.
Por fim, defendeu a ideia de que o
Cemitério da Igualdade, de nome tão justo quanto apropriado, já inativo há mais
de duas décadas, fosse transformado num museu e memorial a céu aberto, com a
preservação dos túmulos e a criação de alamedas, jardins, caramanchões e um
espaço para meditações e palestras temáticas. Seu discurso, com as suas
denúncias e sugestões, foi acolhido com longa e intensa salva de palma. O jornal
A Batalha o publicou na íntegra e a rádio Princesa do Paraguaçu o divulgou em
vários horários. Posteriormente, foi publicado em forma de folheto.
Após o seu discurso, houve um lauto
coquetel. Quando Marcos se postou, sozinho, a uma das janelas ogivais, perto
das quais dançara tantas vezes, quando o auditório era a pista de dança do
saudoso Évora Clube, veio cumprimentá-lo uma moça loura, um tanto gorda, de
olhos azuis, meio enevoados pelo que poderia ser o prenúncio de alguma doença
ocular; apresentava sinais de espinhas, sardas e varíola no rosto. Elogiou-lhe
o discurso e tentou entabular uma conversa. Olhava-o como se tentasse seduzi-lo.
Não tendo gostado da conversa e não se sentindo nem um pouco atraído pela
mulher, Marcos, conquanto a tenha tratado com cortesia, inventou uma desculpa
qualquer e se dirigiu para a mesa onde estavam Fabrício e outros amigos.
Soube, então, que aquela mulher era uma
neta de James Cavalcante Taylor, já falecido há alguns anos, despojado da
fortuna que tivera outrora. Viera passar alguns dias em Évora, após longos anos
de ausência, em visita a familiares. Marcos, consternado, teve a certeza de que
por trás daquela ruína precoce se escondia a inefável e precária beleza daquela
menina linda, mas tola e presunçosa, que tanto o encantara no início de sua
adolescência, e que tanto o magoara com o seu estúpido desdém.
Tomou um longo gole de cerveja, porém a
bebida lhe pareceu mais azeda que de costume, como se fora um cálice de
amargura e de fel. Não teve nenhuma sensação de vitória, revanche ou vingança.
Ao contrário, como lamentou esse reencontro e a beleza esvaída nas formas
transitórias, imperfeitas.
Com o coração confrangido, lembrou-se
destes versos de um jovem poeta amigo seu:
recordas a menina que te golpeou
com um não, apenas por capricho e maldade.
(...)
lamentas a namoradinha jovem e esbelta
que envelheceu e engordou.
debalde procuras a sua cintura
para ternamente lhe pousares as mãos.
antes não mais a tivesses revisto.
Benvindo, mestre. O nosso Marcão está vivendo aquele período em que o belo e a vida descompromissada cede lugar às marcas do tempo e às obrigações. E isso, à vezes, nos traz mais sofrimento e amargura do que alegria e felicidade.
ResponderExcluirMestre JPA,
ResponderExcluiro Marcão agora vai ver o que é bom pra tosse; vai saber com quantos paus se faz uma cangalha e vai ouvir c de cotia assobiar no pino do meio dia.