HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este
romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente),
à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXXVII
Seus olhos são negros, negros
Elmar Carvalho
Não se pode dizer que Marcos tenha sido insensível ao filho que
Madalena lhe disse levar em seu ventre para as Alterosas. Apenas aceitou como fato
consumado e irreversível a circunstância de que talvez nunca o veria e de que
essa criança seria criada por ela e pelo marido, sem a sua participação e sem a
sua lembrança. Contudo, alimentava a esperança de que algum dia poderia ver o
filho, ainda que incógnito e à distância.
Muitos anos depois, quando Marcos já completara cinquenta anos de
idade, e exercia, pela segunda vez, a função de delegado da Receita Federal,
recebeu, em seu gabinete, a visita de um guapo rapaz, que se anunciara como uma
pessoa que desejava tratar de urgente assunto pessoal. O jovem, bem vestido e
elegante, após os cumprimentos iniciais e apresentação, com certo embaraço e
discreta hesitação, lhe contou que era formado em medicina, como seu pai, e era
filho de Madalena.
Disse que o pai, quando sentiu que estava à morte, um ano atrás,
pedira à mulher que, após o seu falecimento, revelasse a Lucas da Mota Dias Júnior,
que lhe herdara o nome e a profissão, quem era seu pai biológico. Recomendou
que o filho o visitasse, caso o desejasse. O rapaz, após colher as necessárias
informações da mãe, quando esta lhe revelou o segredo familiar, fez pesquisas
na internet, tendo conseguido o endereço funcional de Marcos, sem maiores
dificuldades.
Desejando ser sintético e não querendo emocionar o meu leitor,
direi que ambos se comoveram, se abraçaram e mesmo derramaram discretas
lágrimas. Marcos o convidou para se hospedar em sua casa, mas o rapaz, que
viera acompanhado de sua jovem esposa, em viagem de lua de mel, preferiu ficar
hospedado no Luxor Hotel, no centro da cidade.
Todavia, aceitou almoçar com o pai, na residência deste, onde foi
muito bem recebido por sua esposa e pelos dois filhos do casal. Coroando tudo,
em perfeito final feliz, após conversa e deliberação entre eles, Marcos foi com
Lucas ao Cartório competente onde o reconheceu como filho. Os expedientes e
termo foram enviados ao cartório de Belo Horizonte, onde Lucas fora registrado.
Feitas as averbações, o rapaz passou a constar como filho de Lucas
da Mota Dias e de Marcos Azevedo, seus pais afetivo/adotivo e biológico. Pouco
se falou em Madalena, mas o jovem médico informou que ela se encontrava em bom
estado de saúde e ainda se mantinha bela e em forma. Pai e filho passaram a se
comunicar, com admirável frequência, por telefone e pelas redes sociais da
internet, inclusive com envio de fotos familiares.
* * *
Marcos nunca esqueceu a linda e loura paranaense de olhos de
esmeralda. Ela lhe ficou como uma bela e inatingível miragem de sua
adolescência. Seu pai fora transferido para outra loja, sediada na capital, e
ele não mais a reviu. Porém, mais de década depois, quando ele já residia na
capital voltou a vê-la, talvez por acaso, se é que o acaso existe.
Estava, em companhia de Antônio Francisco Sousa, colega fiscal,
assistindo a um artista de rua, quando uma magnífica balzaquiana, de
cintilantes cabelos louros e refulgentes olhos verdes, começou a olhá-lo de
forma insistente e intensa. Embora estivesse acompanhada de uma menina de cerca
de cinco anos, chegava ao ponto de quase se voltar para trás, para melhor
fitá-lo.
Ele também a fitou, com intensidade e alumbramento, com paixão e
ternura no olhar, mas logo convidou o colega a se retirarem, temendo este notasse alguma coisa. Mas, não andaram
muito, Antônio Francisco, que também era perspicaz cronista, lhe perguntou, com
ar divertido e malicioso:
– Marcão, você pensa que eu não vi, que eu sou cego e insipiente?
Quem é aquela suntuosa e esplêndida “balzaca”, com aquela linda aliança no anelar
esquerdo, que te olhava com tanta insistência e admiração? Parecia te conhecer
e estar cheia de amor para dar...
Marcos, recordando-se dos seus tempos de adolescente, preferiu
responder de forma enigmática e poética:
– É um fantasma, um vulto de mulher que me persegue desde minha
adolescência. Prefiro deixá-la numa torre ebúrnea, alta, distante, e
inalcançável como um unicórnio, para que em mim permaneça indelével a nostalgia
de quanto a amei, e de quanto a fiz inatingível em minha timidez e loucura de
poeta adolescente, embora ela também me quisesse... Assim foi melhor, porque
sempre permanecerá a doçura do enlevo e da devoção, e jamais a amargura da
decepção...
*
*
*
Quando Marcos completou 32 anos de idade, assumiu o cargo de
auditora-fiscal uma moça de nome Lívia Maria. Esbelta, de boa estatura, chamava
a atenção por sua beleza e simpatia. Embora concentrada nos serviços que
desempenhava e focada em seus deveres funcionais, tinha senso de humor e o
usava com inteligência, discrição e notável senso de oportunidade. Fora
analista na Justiça do Trabalho. Corria o boato de que tinha um namorado ou
noivo em sua antiga repartição.
O rapaz logo percebeu que, além de diligente em seus deveres
funcionais, ela tinha bom caráter e uma exemplar formação moral, mas sem
preconceitos e farisaísmos. Nas horas de folga, estudava com afinco a
legislação tributária, especialmente as mais direcionadas a seu cargo. Tratava
todos os contribuintes com urbanidade e presteza, sobretudo os mais humildes.
Quando Marcos entrava em discussão intelectual com algum colega,
ela parecia admirar a cultura e a capacidade argumentativa dele, a sua capacidade
de análise, a maneira como ele falava das variáveis que poderiam ser seguidas e
de suas possíveis consequências. Poucas vezes ela participava dessas controvérsias,
avessa que era a polêmicas e dissensões.
Todavia, em suas poucas e comedidas intervenções, demonstrava
sempre conhecimento da matéria e muita racionalidade em seus fundamentos,
sempre pautados pela lógica, proporcionalidade e razoabilidade. Uma vez ela
confidenciou ao colega que o que mais admirava num homem era a inteligência e o
caráter. E, se não fosse querer demais, o bom humor.
Algumas vezes, quando fazia um novo poema, e se encontrava bem humorado
e eufórico, o rapaz o recitava para um ou outro colega interessado. Lívia
parecia ouvi-lo com admiração e certo embevecimento. Ele, para testar os seus
pruridos de pudor e talvez preconceitos, quando fez um poema erótico, aliás,
inspirado em sua beleza sinuosa, lhe entregou uma cópia, e ficou a lhe observar
as reações faciais.
Notou que ela enrubesceu levemente, talvez pressentindo ser a musa
daqueles versos eróticos ou por estar sendo observada, mas o leu com muita
atenção e sem demonstrar contrariedade. Fez duas ou três perguntas, e em
seguida emitiu comentários argutos e pertinentes, em que se percebia a sua
inteligência e os seus conhecimentos de quem gostava de literatura, conquanto
não fosse poeta ou escritora, mas assídua leitora de poemas, contos, crônicas e
romances, como esclareceu.
Certa ocasião, antes do início do segundo turno, Marcos foi até a
sua sala. Encontrou-a sozinha. O rapaz, apesar de não cultivar a vaidade,
percebeu que ela o olhou de cima a baixo. Pareceu admirar o que viu. O rapaz a
consultou sobre certo assunto de trabalho, sobre o qual tinha dúvida, e depois
lhe contou uma de suas anedotas engraçadas, supostamente verídicas, ao menos em
parte, retornando a seu local de trabalho. Ficou pensando naqueles cabelos
negros, ondulados, e naqueles olhos negros, cheios de fascínio e mistério, que
lhe faziam recordar os versos do condor Castro Alves: “Teus olhos são negros, negros,
/ Como as noites sem luar... / São ardentes, são profundos, / Como o negrume do
mar”. Seu pensamento divagava, como a barcarola do poeta.
A moça foi em seu encalço. O rapaz também estava sozinho em sua
sala, sentado à sua mesa, com o olhar sonhador, pensativo. Ela, às suas costas,
pousou as mãos sobre seus ombros, afagando-os com muita suavidade. Marcos ficou
surpreso, porquanto Lívia sempre fora muito contida e discreta em seus gestos e
palavras. Não sabendo bem o que fazer, pousou as suas sobre as dela, que não as
retirou.
Porém, quando Marcos se levantou e tentou lhe afagar o rosto, ela
se afastou e disse, com suavidade, mas com voz firme e peremptória:
– Não, Marcos, não... Eu te toquei porque te amo, mas você tem uma
linda noiva, com a qual vai em breve se casar.
Para não entrar em delongas tão enfadonhas quanto desnecessárias,
direi apenas que nesse mesmo dia Marcos terminou o noivado, que, por sinal, já
vinha muito morno, quase adormecido, e logo iniciou apaixonado romance com
Lívia, que se mostrou terna, carinhosa e ardente, como ele sempre sonhara.
Poeta, vejo, já com sinais de saudade, que estás a caminhar aceleradamente rumo ao fim das deliciosas Histórias de Évora.Este capítulo múltiplo (por conter algumas e distintas fases da vida do protagonista),trouxe-nos o resultado da relação do Marcão com uma das mais belas e queridas conquistas, e isso foi uma grande e gostosa sacada do autor. Ótimo capítulo.
ResponderExcluirCaro José Pedro,
ResponderExcluirVocê tem vocação para investigador ou então bebeu água de chocalho, quando menino, pois aprendeu a adivinhar.
De fato, o capítulo acima é o penúltimo.
Contudo, após o epílogo, haverá um anexo, que fará parte do livro, mas não do romance propriamente dito. De certa forma, será uma espécie de "surpresa".
A Madalena,meu caro, não tinha os olhos da Capitu, mas possuía o charme das grandes amantes.E talvez por isso tenha me apaixonado ela. Quanto ao marido, esse era uma figura controvertida, mas que demonstrava devotar grande amor pela esposa e, acima de tudo, espírito honrado, que demonstrou ao chamar o filho para lhe contar sobre a sua verdadeira paternidade. Dois personagens fortes, tanto a Madalena quanto o marido.
ResponderExcluirComo diz um amigo meu, em carregado portunhol, es verdad, ou pelo menos torço para que o que você diz encontre ressonância em meus outros poucos leitores.
ResponderExcluirObrigado, caro amigo.