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DEPOIMENTO SOBRE JOSÉ GUIMARÃES CASTELLO
BRANCO
Alcenor Candeira Filho
Conheci o primo José Castello em 1954,
quando ele, contando dois anos de idade, visitou Parnaíba em companhia dos pais
e irmã, todos hóspedes de meus avós paternos e de minha mãe.
Conservo até hoje fotografias batidas
nessa viagem. Mostrei-lhas quando ele visitou novamente Parnaíba em 2008, já na
condição de jornalista e escritor consagrado nacionalmente, com o propósito de colher informações e
vivenciar emoções a partir do passado de seu pai José Ribamar Castello Branco, que aqui
morou na mocidade e que é personagem central do livro que estava escrevendo –
RIBAMAR, com que viria a ganhar o prêmio Jabuti de 2011 na categoria de
romance.
RIBAMAR é uma fusão de ficção e de
memórias biográficas que focaliza o conturbado relacionamento entre pai e filho.
Uma das fotos mostradas a José Castelo e
na qual aparecem o futuro escritor, seu pai, sua mãe e sua irmã é tão
reveladora que foi evidenciada no livro. Examinando atentamente o velho
retrato, o escritor descobre que já existia ali o conflito entre pai e filho:
“A fotografia está fosca, as cores fraquejam,
as imagens
se dissolvem. Ainda assim, ela lateja em minhas mãos. Emite
outro tipo de luz: aquela em que o
passado resiste, como um destino.
Aos dois anos de idade, magro e
desconfiado, já sou o
estranho que você conheceu e de
quem se afastou. Está tudo
ali, para que
mais? Para que escrever um livro?”(p. 163/164).
Essa penosa busca de reconciliação por
meio de um mergulho no passado do falecido pai é que levou José Castello a
voltar a Parnaíba, trazendo o “projeto insano” de recuperar o passado do pai,
“uma loucura, uma estupidez, um livro” (p. 47), não um livro “sobre” o pai, mas
um livro “através” do pai (p. 136).
A falta de sintonia entre pai e filho,
principal fio condutor da narrativa, já existia entre pai e avô do autor, Lívio
Ferreira Castelo Branco, apontado no romance como intelectual medíocre não só pelo neto escritor mas também
pelo próprio filho Ribamar, que declara ao entregar a José Castello um velho
caderno com poemas publicados na imprensa de Parnaíba nos anos 20: “São
bobagens de meu pai. Por mim, vão para o lixo”(p.119).
Quer dizer, o autor se vê de repente
diante de uma herança maldita, “diante de uma duplicação. Mais uma. Um segundo abismo, agora entre você e seu pai,
repete o desfiladeiro que nos separa. Um destino grafado no sangue, uma herança
genética – algo de que não conseguimos escapar” (p. 119).
Desconhecendo o fato acima, aqui em
Parnaíba mostrei a José Castello uns poemas de seu avô, e ele de forma direta,
curta e grossa como se diz no Piauí: “Péssimo poeta, já sabia disso desde
criança, quando meu pai me entregou velhos papéis com poemas do vovô Lívio, com
a recomendação de que os jogasse no lixo”.
O duro e azedo julgamento do neto sobre os
escritos do avô paterno se manifesta ostensivamente em várias páginas do livro:
“Não me interesso pelos sonetos de
meu avô, pomposos,
com rimas odiosas, estúpidas
exaltações de civismo. Um deles se
chama ‘Progressos’, mas a linguagem
do passado destrói tudo”
(p.120).
“Dois pseudônimos: João do Mato e
Sabino Ferreira.
Dois mantos que meu avô (...) usou
para se esconder. Suas
crônicas na imprensa, assinadas com
os nomes falsos eram
medíocres” (p. 267).
Essa história de pseudônimos usados pelo
avô do romancista não é ficção, como prova o ALMANAQUE DA PARNAÍBA de 1929, que
registra o falecimento de Lívio em 05.02.1929 durante um baile de carnaval no
Cassino 24 de Janeiro e traça-lhe o perfil moral, político e intelectual,
ressaltando ter sido ele “como literato, um poeta espontâneo e gracioso, que com os apelativos de João do
Mato e Sabino Ferreira deixou crônicas que marcaram época no nosso meio
intelectual”.
Confesso que as opiniões críticas
apresentadas no romance RIBAMAR, embora sinceras e verdadeiras, me fizeram ter
pena de meu bisavô, que sempre considerei um poeta tolerável para leitores de
boa vontade e que indiquei para patrono da cadeira nº 28 da Academia Parnaibana
de Letras.
Algumas pessoas da família Castelo Branco
não gostaram do premiado romance, achando-o amargo e ofensivo ao pai do autor e
à família. Atribuo esse julgamento, com o qual não concordo por entender que das
278 páginas do livro o personagem central sai é engrandecido, a uma impressão apressada e superficial de
leitura.
Também foi vítima desse mal entendido
familiar o publicitário e escritor Renato Pires Castelo Branco por causa de seu
romance TEODORO BICANCA, em que se confundiu um tipo sociológico genérico, o
Coronel, fruto de um quadro histórico, com a pessoa de seu tio – coronel
Belarmino Pires.
No Salão do Livro do Piauí – SALIPI, em
2011 ou 2012, fui a Teresina para ouvir a palestra de José Castello sobre o
romance RIBAMAR. Após a palestra e com a palavra dirigi-me ao palestrante não
com uma pergunta como seria natural, mas com um depoimento que talvez naquele
momento só eu pudesse dar entre os presentes. Reportei-me ao fato de que alguns
membros da família Castelo Branco detestaram o romance. E como parente e
sobretudo por ter conhecido pai e filho, concluí: “Acho que RIBAMAR é o tipo de
romance de que eu como pai e personagem muito me orgulharia”.
No livro INVENTÁRIO DAS SOMBRAS, José Castello
conta que no Rio de Janeiro, novembro de 1974, vinte e três anos de idade,
enviou um conto para Clarice Lispector, com endereço e telefone juntos na
esperança de que ela viesse a retornar. Passado um bom tempo de silêncio, eis
que “o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: ‘Clarrrice
Lispectorrr’, diz. Ela entra logo no assunto: ‘Estou ligando para falar de teu conto’, continua )...) ‘Só tenho uma
coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso (...). E com medo ninguém
consegue escrever’” (p. 19). Que grande conselho!
É provável que RIBAMAR seja o tipo de
livro de ficção que Clarice Lispector gostaria que José Castello escrevesse.
Nele ou através dele percebe-se que o
autor realizou uma grande obra porque a escreveu após libertar-se das amarras
do medo a que se refere a autora de LAÇOS DE FAMÍLIA.
A exemplo de Mário de Andrade, que, à
falta de melhor classificação para a extraordinária obra MACUNAÍMA, chamou-a de
rapsódia. José Castello classifica seu livro como romance, “porque não sei o
que ele é”, conforme declarou na dedicatória do exemplar a mim destinado.
Transcrevo toda a dedicatória por ser bastante esclarecedora do que pensa o
escritor sobre a própria obra em que trabalhou exaustivamente durante quatro
anos:
Querido Alcenor,
Curitiba, 15-set.-10
Vai aqui o livro que consegui
escrever. Não procure a
verdade nele, porque ela só aparece
de forma esmaecida.
Não é uma biografia, não é um
ensaio, não é uma
confissão, não é um livro de
viagens.
Eu o chamo de ‘romance’ porque não
sei o que ele é.
Você aparece escondido na figura do
tio Antônio.
Minha gratidão.
José Castello”
RIBAMAR é uma obra fortemente influenciada
pelo escritor tcheco Franz Kafka, como se vê nas páginas iniciais: “Meu mal tem
uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não que eu o inveje ou deseje
ser como ele. Também não o odeio e, com algum esforço, reconheço sua grandeza.
Meu problema é que não consigo parar de pensar em Kafka” )p.11).
O livro de Kafka tão presente no romance
não é o mais famoso dos que escreveu –
METAMORFOSE – mas talvez o mais profundo de todos – CARTA AO PAI – que Ribamar
no Dia dos Pais do ano de 1973 recebeu com esta dedicatória: “Para o papai com um beijo e o amor do filho José”
(p.21).
Assim como o pai do genial escritor tcheco
jamais leu a CARTA AO PAI, “livro
que, refém do medo, Franz preferiu
entregar à mãe, Julie, e não ao pai” (p. 22/23), também o exemplar dessa carta
adquirida por acaso numa papelaria de Copacabana e dado pelo filho ao pai no
Dia dos Pais nunca foi lida, tendo sido encontrada muito tempo depois num sebo
do Rio de Janeiro.
E como as cartas que não chegam a seu
destino são as “que se perpetuam” (p. 276), na hora de deixar Parnaíba e de
fechar as malas, pagar a conta do hotel e voltar para casa, o escritor fecha o
grande romance:
“Antes de pegar a estrada, preciso
passar no correio.
Tenho uma carta a despachar. Esta
carta, a você, meu pai.
A atendente me olha perplexa: ‘Falta o
endereço’.
Eu respondo: ‘Ponha aí um destino
qualquer’” (p. 278).
José Castello, carioca, radicado em
Curitiba, é crítico literário, biógrafo, jornalista e romancista. Como cronista
já trabalhou em diversos jornais e revistas: O Globo, O Estado de São Paulo,
Isto É, Veja , etc..
Autor
de vários livros, destacando-se RIBAMAR, VINÍCIUS DE MORAES: O POETA DA PAIXÃO:
UMA BIOGRAFIA, INVENTÁRIO DAS SOMBRAS, DENTRO DE MIM NUNGUÉM ENTRA, NA
COBERTURA DE RUBEM BRAGA, A LITERATURA NA POLTRONA.
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