RETRATO DE MEU PAI
Elmar Carvalho
No dia 8 de janeiro deste novo ano, comemoramos o aniversário
de meu pai. O evento foi idealizado por minha irmã Maria José, mas contou com o
apoio dos familiares. A missa foi celebrada pelo padre Jurandir da Silva
Rodrigues, na igreja da Paróquia Santa Luzia. Foi um lindo culto, em que o
sacerdote, de joelhos, com as luzes na penumbra, fez um magistral sermão, que
nos encantou a todos pela riqueza de seu conteúdo. Todos nos emocionamos com as
suas belas palavras.
Apesar da chuva fina que caiu durante a noite toda, estavam
presentes todos os amigos e colegas postalistas de meu pai, muitos já idosos.
Essa presença massiva foi uma prova de consideração e amizade ao
aniversariante. O padre Jurandir foi atencioso e afetivo com meu pai, inclusive
tendo lhe dado a palavra após o término da celebração. Papai agradeceu o
comparecimento de todos e pediu desculpas por eventuais esquecimentos de nomes.
Vendo tantos amigos, lembrei-me de um caso contado pelo
escritor Orígenes Lessa, a respeito do sepultamento de seu pai, que teve um
grande cortejo. Um forasteiro, admirado, perguntou a uma pessoa que chorava, se
o falecido era uma pessoa muito importante. Recebeu, entrecortada por soluços,
a seguinte resposta: “Não. Era só muito bom.” Fazendo coro, poderia dizer que apenas
comemorávamos as nove décadas de um simples homem bom.
Depois da celebração religiosa, nos deslocamos até o Buffet
Momentos, onde houve farto jantar e libações. Mesmo com a chuva ou, talvez, por
causa dela o “clima” foi de alegria, descontração e congraçamento, com o
reencontro de velhos e estimados amigos. Foram contados vários “causos”
pitorescos ou engraçados do tempo em que papai chefiou a ECT em Parnaíba,
quando muitos dos presentes estavam iniciando a sua vida profissional. Como
lembrança, foi distribuído o livro “Retrato de meu pai” (com depoimentos e
fotografias), cujo texto principal, de minha autoria, datado de 05.01.2016,
quando ele completou noventa anos de vida, transcrevo:
“Não pretendo ser emotivo e nem sentimental, e tampouco
desejo traçar aqui o perfil psicológico e moral de meu pai. Por tal razão, irei
contar, de forma sintética, fatos de sua vida, que serão diminutos mosaicos ou
azulejos, que juntos formarão um pequeno painel de sua vida e de seu caráter.
Talvez alguns de seus pequenos defeitos, que todos os temos,
sejam consequência de suas virtudes e qualidades de homem bom, de uma pessoa
que sempre teve dificuldade em dizer um não, que procurou sempre não contrariar
ou magoar quem quer que fosse. Algumas vezes ele se prejudicou por causa disso,
por causa dessa virtude que alguns consideram fraqueza ou tolerância algo
excessiva. Contudo, Deus o protegeu, e ele alcançou os seus noventa anos de
idade sem maiores percalços e sobressaltos.
Miguel Arcângelo de Deus Carvalho é o seu nome completo.
Nasceu em Barras, no dia 5 de janeiro de 1926, filho de João de Deus Nascimento
e Joana Lina de Deus Carvalho. Perdeu seu pai quando tinha apenas 13 anos de
vida, e cursava o ginásio no Colégio Diocesano, em Teresina. A infausta notícia
lhe foi transmitida, com as cautelas de praxe, pelo Monsenhor Chaves, que
depois viria a se tornar um dos maiores historiadores do Piauí, do qual vim a
me tornar amigo, quando fui o presidente do conselho editorial da Fundação
Cultural que leva o seu nome. Teve que retornar a Barras, a chamado de sua mãe.
Filho único do terceiro casamento de seu pai, muito jovem e sem experiência
laboral, era evidente que não saberia gerir a herança que lhe coube, após a
partilha com os demais herdeiros.
Portanto, cedo teve que trabalhar, para sustentar-se a si e a
sua mãe, que morou em sua companhia até quando faleceu. Fora outros empregos,
trabalhou na Casa Marc Jacob e na Casa Inglesa, em Campo Maior, para onde se
transferiu aos 26 anos. Após aprovação em concurso público, feito pelo famoso
DASP, foi admitido no Departamento de Correios e Telégrafos – DCT, mais tarde,
no regime militar, transformado em empresa.
Quando trabalhou numa firma comercial pertencente ao marido
de uma prima de minha mãe, houve um fato que bem revela o seu caráter de homem
leal, mas polido, e que não gostava de ofender ninguém, mesmo os desconhecidos.
O dono do comércio estava chateado com um fornecedor, que não cumprira
fielmente o contrato. Ditou uma carta áspera, em que se queixava de forma
rigorosa dos defeitos que apontava. Meu pai, ao datilografar o que lhe era
ditado, atenuou algumas palavras e expressões. Ao ler a carta, o empregador,
que era uma ótima pessoa e amigo de meu pai, de maneira educada observou:
“Miguel, você não se sentiu bem em escrever as palavras que eu disse... Deixe,
que eu mesmo vou datilografar.” E carregou na dosagem dos impropérios e
adjetivos, com os quais fustigou o seu desafeto.
Após aprovação em concurso público realizado pelo DASP, meu
pai, em 1957, foi nomeado servidor público federal. O telegrama da nomeação,
após espera de aproximadamente dois anos, lhe foi entregue pelo telegrafista
Gerson Marques, seu amigo por toda a vida, que, apesar de não ser mensageiro
nem carteiro, fez questão de lhe repassar incontinenti a mensagem telegráfica.
Exerceria o cargo de guarda-fio na Diretoria Regional do Piauí do Departamento
de Correios e Telégrafos – DCT. Era considerado um bom emprego para a realidade
da época. Tomou posse de seu cargo no então povoado de Papagaio, um pouco depois
elevado à categoria de cidade, onde nasceu meu irmão João José, o segundo de
uma prole de oito, da qual fui o primogênito. Após uma breve serventia de um
ano, meu pai conseguiu sua remoção para Campo Maior, após breves passagens por
José de Freitas e Barras. Sobre a nossa permanência em Francinópolis já me
referi em outros textos, publicados na internet.
Em sua carreira no DCT, nossa família morou por pouco tempo
na zona rural de Campo Maior e novamente em José de Freitas, durante um ano.
Nesta cidade, com o apoio total do padre Deusdete Craveiro de Melo (meu
professor e diretor no Ginásio Moderno Estadual Antônio Freitas), fundei um
time de futebol, o Santos, e um campo futebolístico, localizado perto do
cemitério velho. Quando morou na zona rural, e com o crescimento da família,
meu pai sentiu a necessidade de ascender funcionalmente. Embora tivesse apenas
o segundo grau incompleto, encarou os livros com afinco e determinação e passou
no concurso interno para técnico postal da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos – ECT. Fez curso de um ano em Recife, no Centro de Treinamento
Correio Paulo Bregaro. Após, teve que optar pelo regime celetista (deixando de
ser estatutário e estável), para assumir seu novo cargo. Foi designado, no
começo de 1975, chefe da ECT em Parnaíba. Exerceu esse cargo por vários anos.
Aposentou-se em 1984.
No final da década de 1960 e/ou início da seguinte, meu pai
foi colaborador eventual do jornal A Luta, de Campo Maior. Nele publicou
algumas crônicas e artigos, alguns contendo casos interessantes ou pitorescos
de sua vida. Seus textos eram concisos, fluentes, objetivos e gramaticalmente
corretos. Tanto que, ao retomar seus estudos, mereceu em redação para a
disciplina Educação Moral e Cívica, de que era professor o impoluto juiz Hilson
Bona, a nota 10. Ao dar o resultado da prova, o Dr. Hilson, que mais tarde veio
a ser meu professor de OSPB, disse que outros alunos mereciam essa nota, mas
que não lhes dera porque não poderia dar mais do que 10 a meu pai. Assim, lhes
deu nove vírgula alguns décimos.
Papai gostava de ler, e “degustou” vários clássicos da
literatura brasileira e mesmo mundial. Tinha certa predileção por Machado de
Assis. Tinha várias antologias escolares, insertas em livros didáticos de
Português. Sabia decorado vários poemas, os quais ocasionalmente recitava.
Cantarolava belas letras, verdadeiros poemas, de músicas da velha guarda. Era
assíduo ouvinte do programa radiofônico Gramofone da Vovó, apresentado por
Jaime Farrell, através das ondas poderosas da Rádio Sociedade da Bahia. Por
esse motivo, conheço muitas dessas antigas e belas melodias. Se tivesse dado
continuidade a essa sua faceta literária, poderia ter-se tornado um escritor,
ainda que bissexto. Mas sua modéstia e despretensão não lhe permitiram ir além
dessas breves incursões literárias.
Ainda na fase em que voltou a estudar, havia uma disciplina
artística em que o aluno era obrigado a confeccionar um objeto de arte, em
papel, madeira ou argila. Geralmente eram feitos desenhos, pinturas ou objetos
de artesanato. Os trabalhos eram elaborados em casa, de modo que alguns alunos
pagavam a alguém para fazê-los, já que não eram produzidos à vista da
professora. Numa das ocasiões, meu pai optou por fazer o desenho de uma das
mais conhecidas casas de Campo Maior. Sem ser desenhista e sem ter essa
vocação, foi, contudo, meticuloso, e mesmo perfeccionista. Fez medições com a
régua e o esquadro, para alcançar a simetria, a proporcionalidade e o possível
efeito da perspectiva. Conseguiu fazer um bom trabalho, mormente
considerando-se a sua inexperiência e falta de vocação para esse mister.
Outro trabalho seu, por exigência dessa disciplina artística,
foi um carro de boi, executado em buriti, que é leve e não exige demasiado
esforço para ser desbastado. Após vários dias, com muito cuidado, disciplina e
paciência, fez a miniatura, que apresentava notáveis semelhanças com um de
verdade, pelo menos aos meus olhos de menino. Mereceu o elogio de todos,
inclusive de minha mãe, e creio que da professora, já que ele não ficou
reprovado. Disso tiro a conclusão que ele tinha o espírito de um artista, mas
que por modéstia e timidez não deixou que lhe aflorassem esses dotes, que lhe
ficaram em estado latente, ou pelo menos reservados à admiração que tinha pelos
dons alheios. Talvez, ao confeccionar o seu pequenino carro de boi, tenha se
lembrado do engenho de madeira de seu pai e dos imortais versos de Da Costa e
Silva:
Movida pelos bois tardos e sonolentos,
Geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
Que as desgraças por vir, sabe-as todas de cor.
Ai! dos teus tristes ais! Ai! moenda arrependida!
- Álcool! Para esquecer os tormentos da vida
E cavar, sabe Deus, um tormento maior!
No final da década de 1950, meu pai foi chamado a Teresina
pelo senhor Oto Veloso, que exercia o cargo de diretor regional do DCT no
Piauí. Visivelmente constrangido, o diretor perguntou o que meu pai fizera
contra determinada figura da política piauiense. Meu pai respondeu-lhe que
nada, que apenas comentara que não iria votar em determinado candidato que ele
apadrinhava. Oto, bastante contrafeito, contou a papai que o político referido
[descendo de seu alto cargo republicano para a sarjeta da política miúda, para
a politiquice de campanário], exigira a sua destituição de pequeno cargo de
confiança. Confidenciou que ainda lhe ponderara que Miguel era um bom servidor,
e que não cometera nenhum deslize profissional, mas a alta autoridade, com
irritação, quase tendo um chilique ou um ataque de apoplexia, respondera: “Mas
eu quero, eu quero que ele seja exonerado”. Meu pai, humilde, mas altivamente,
falou: “Fique à vontade, diretor, não se preocupe, pode fazer a exoneração, que
a minha amizade e respeito pelo senhor vão permanecer os mesmos. Entretanto, o
que eu fiz contra esse político foi votar nele várias vezes. Porém, moralmente,
retiro os votos que já lhe dei...” Papai sempre manteve grande respeito e
admiração pela integridade moral de Oto Veloso, irmão do ex-governador Djalma
Martins Veloso.
No começo da década de 1960, logo ao chegar para o
expediente, meu pai foi indagado pelo chefe da agência sobre por que faltara ao
plantão anterior. Papai respondeu que não fora ele o faltoso. O agente, então,
exigiu que lhe desse o nome do funcionário que não comparecera. Meu pai
respondeu que não poderia fazer isso, mas que lhe bastava consultar o livro de
ponto para saber o nome desse servidor. De maneira insólita o chefe comunicou
ao diretor regional da época que meu pai teria cometido insubordinação, e não
lhe teria acatado a determinação funcional. Meu pai, como “punição”, quase foi
transferido para um local distante e isolado. Contudo, seguindo seus princípios
éticos, preferiu ser prejudicado a prejudicar alguém, sofrer uma injustiça, a
praticá-la. Mas Deus o protegeu e orientou, e tudo acabou bem.
Após aprovação em concurso interno, meu pai foi fazer o curso
de Técnico Postal no Centro de Treinamento Correio Paulo Bregaro, em Recife,
cuja duração era de um ano. Ao retornar, e após breve serventia em Teresina,
foi designado para chefiar a agência da ECT em Parnaíba. Permaneceu nesse cargo
por mais de sete anos. Embora aposentado, continuou residindo em Parnaíba até
dezembro de 1994, quando voltou a morar em Campo Maior. Procurou cultivar a
política da boa vizinhança com os quase cinquenta servidores, que existiam no
início de sua gestão. Sempre que precisava reclamar por causa de alguma falha,
chamava o colaborador ao seu gabinete, quando, então, com bons modos, fazia as
suas observações e lhes dava a orientação que achava conveniente. Por causa de
sua maneira cordial os servidores lhe tinham respeito e consideração, que até
hoje conservam. Muitos que conviveram com ele, declaram dele sentir saudade, e
sempre perguntam por ele e pela sua saúde. Desprovido de empáfia e arrogância,
nunca precisou levantar a voz contra quem quer que fosse, e tudo acabava dando
certo.
Por ter constituído uma família grande, mais precisamente de
oito filhos, em certa fase de sua vida passou por algumas dificuldades
financeiras, como costuma acontecer com quase todas as famílias, mas guardava
isso somente para si, e nunca gostava de se queixar. Tinha uma fé inabalável em
Deus, a quem orava com fervor, e terminava por resolver todos os seus percalços
e dificuldades, sem nunca enganar os outros e nem lhes causar prejuízo. Nas
vezes em que, eventualmente, recebeu algum dinheiro a mais, em lojas ou em
agências bancárias, de imediato retornava para devolver o que indevidamente lhe
fora pago. Esses exemplos sempre nos eram ressaltados por nossa mãe, para que
os seguíssemos.
Em meados da década de 1960, meus pais receberam, através do
serviço de reembolso postal, um pacote remetido pela empresa Hermes. Era um
belo faqueiro, de aço inoxidável, quase uma novidade na época, pelo menos para
nós. Esse conjunto de garfos, facas, colheres e outros utensílios nos serviram
desde então. Minha mãe, creio que por pressentir que o termo de seus dias já se
aproximava, mandou gravar em sete dessas colheres os dizeres “Casamento –
Miguel e Rosália – 09.06.55”, e as distribuiu a cada um dos filhos. Desde essa
data (09.06.55) até o falecimento de mamãe em 26.04.2013, meus pais viveram em
perfeita união e benquerença.
Com oração e Fé, suportou meu pai a trágica morte de minha
irmã Josélia, ocorrida em 02.07.1978, quando ela mal completara 15 anos de
idade, e a de minha mãe, Rosália. Sei que ele muito sofreu, mas em Deus
encontrou força e resignação. E agora, ainda lúcido e saudável, como um herói
da vida e da luta do cotidiano, comemora com seus familiares, amigos e
admiradores os seus 90 anos de idade, em cujo percurso, como o apóstolo Paulo,
guardou a Fé, e disseminou o bem e o seu exemplo de homem voltado para a
concórdia e para a bondade.”
(*) Este texto foi escrito por ocasião da comemoração do
aniversário de 90 anos de idade de meu pai. Ele nasceu em Barras, no dia
26/01/1926, e faleceu em Teresina, no dia 05/11/2017, portanto com a idade de
91 anos e dez meses.
É de homens como o seu Pai, Sr. Miguel, que se recente o mundo de hoje, Poeta. Sei como se sente após tão rápido desenlace, mas tenho a certeza de que logo mais restarão apenas as boas lembranças de uma vida em família, rica em casos alegres e eivados de bons exemplos. A tristeza pelo seu desaparecimento se transformará em doces recordações e saudade.
ResponderExcluirCaro, Elmar Carvalho, senti sua falta ontem na Raul Lopes. Lendo agora esta crônica "Retrato de Meu Pai", vi que pouco conheci o S. Miguel, diante da história impecável dele, fora uma bela história de luta, trabalho e amizade de um homem piauiense, ele honrou muito bem a terra onde nascera, "Berço de Heróis" ou mesmo "Os Verdes Campos", da nossa querida Campo Maior. Nesta foto relembrei os seus irmãos, que há muito tempo não os vias e suas irmãs que não as conhecia. Elmar, não tem como esquecer, todas as vezes que eu passar pela velha Praça da Graça, em Parnaíba, e olhar para o vetusto prédio dos Correios, lembrarei de S. Miguel...
ResponderExcluirabraços,
Everardo Oliveira
Caros Araújo e Everardo,
ResponderExcluirNo início de minha crônica memorialística, quando falo do sepultamento de um pastor evangélico, lembrei-me do pai de Araújo, que exerceu esse mister em cidades do Piauí e do Maranhão, e que além disso formou uma boa família e exerceu benéfica liderança nas comunidades em que atuou.
Ao caro Everardo agradeço pelas bonitas palavras ditas sobre nossa família e sobre meu pai.
Abraço,
Elmar
Gostei muito de saber da trajetória de seu pai! Homens assim como ele, honesto, gentil, bom pai e bom marido faz muita falta hoje! Tenha certeza de que ele está em paz e na glória de Deus! Se minha mãezinha fosse viva, iria falar com ela sobre ele, pois ela exerceu a Chefia de Pessoal na época de Dr. Oto Veloso! Ela também era concursada e reestruturou o DCT para Empresa dos Correios ! Aposentou-se como estatutária e foi contratada como celetista na Empresa, que na época era dirigida por Dr. Ernane Araújo! Forte abraço, colega!
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