domingo, 8 de abril de 2018

Seleta Piauiense - Hermes Vieira

Fonte: Google


Fogo na mata

Hermes Vieira (1911 – 2000)

Um dia, um campônio malvado lançou à floresta
Com as aves em festa, uma chama maldita
Que, dentre as gramíneas sem seiva e vigor,
Dilata o calor, estremece e se agita.
  
O Sol declinava em demanda do ocaso,
A Lua, em atraso, à distância o seguia,
E, em toda a floresta sentida e plangente,
Um vento pugente, raivoso rugia.
  
Ouviam-se estrondos, fragores, ruídos,
Sibilos, zunidos, estalos de espata,
De lenhos sem vida, de vidas tombando
Ao fogo bailando no ventre da mata.
  
As caças adultas às tontas fugiam,
As tenras morriam detidas nas camas,
E as aves, aflitas, voavam dos ninhos,
Deixando os filhinhos expostos às chamas.
  
As nuvens de insetos, dispersas, sem rumo,
No bojo do fumo revolto, giravam;
Lagartos e ofídios, de ensombros ausentes,
Aos golpes ingentes do fogo, expiravam.

E o lume macabro, lançando torpedos
De lava aos balcedos que davam guarida
Aos filhos das selva, a mata deforma,
Desfeia e transforma-a em deserto sem vida.

Qual bravo guerreiro, coberto de glória,
Que canta a vitória da pátria adorada,
Saía o campônio do bosque inditoso,
Cantando, garboso, singela toada.

Mas nesse momento em que o Sol expirava
E um cheiro exaltava de estranho churrasco,
Ouviu-se uma voz ressonante e temível
De um gênio invisível chamando o carrasco:

“Campônio perverso, brutal,execrando,
Que estás entoando tão negro epinício,
Quem foi que te disse, cabeça insensata,
Que o fogo na mata te traz benefício?

Tu, ontem, tirano, daqui conduzias
Batatas macias e loiras espigas,
Os pomos fragrantes, arroz e feijão,
E o mel,- doce pão,- das abelhas amigas.

E agora, tu voltas,, ingrato campônio,
Trazendo um demônio com chispas nas assas,
E a mata feraz, generosa e benigna,
Com flama maligna, transformas em brasas ?

Tupã, da cabana de estrelas broslada
Na tela azulada, distante, sem fim,
Em face do crime por ti praticado,
Te manda, malvado, castigo por mim.

Por isso, em chegando ao teu rancho dileto,
Verás, em seu teto, com grande pavor,
Fantasmas horríveis, espectros horrendos,
Duendes tremendos gerando o Terror.

São vultos de agentes das leis invisíveis,
-Titãs invencíveis,- que há séculos comando;
Na choça a que vão e à qual vais retornar,
Irás expiar o teu crime nefando”.

Ouvindo a sentença do sacro juiz,
Ao peso infeliz de uma cruz abstrata,
Qual tardo quelônio que lento se arrasta,
Do Nume se afasta o verdugo da mata.

Em casa, a mulher do carrasco deixara.
Num berço de vara, o filhinho a sonhar
E fora ao regato lavar-lhe a roupinha,
Voltando num manto de chamas, ardia.

E enquanto o casebre trajava a mortalha
De fogo, retalha-se o peito ofegante
Da pobre matuta que aflita chorava
E, aos gritos, chamava o marido distante.

Mas, nesse comenos de extrema aflição,
Surgiu-lhe a avisão do filhinho que a Sorte
Ingrata lançara, do berço risonho,
Ao antro medonho e dantesco da Morte.

Em face daquele episódio esquisito,
-Cenário maldito de monstros em luta,
Aos lances da dor, a infeliz entontece,
Delira, ensandece... depois, resoluta.

Da Vida esquecendo-lhe o sacro dulçor,
Arrosta o furor do sinistro cruento :
Seus passos velozes à porta a conduzem...
Lá dentro reluzem brasidos ao vento.

No palco do fogo, em profana comédia,
Gingava a Tragédia em compasso lascivo;
Na borda do páteo, que ao drama assistia,
Exausto, surgia o campônio nocivo.

O bosque murmura, a campina emudece,
A tarde esmaece, a Natura suspira,
E a jovem campônia,- demente heroína,
À gula assassina das chamas se atira.

Contudo, a infeliz, num velado gemido,
Emite ao marido dorida mensagem...
Seu rudo consorte, com falso desdém,
Se envolve também nos lençóis da voragem.

E a Noite, arrastando da gruta das sombras
Escuras alfombras, recolhe as montanhas,
Os bosques e os prados, os vales e os montes,
Os lagos e as fontes às negras estranhas.

E enquanto, no topo de anosa aroeira,
Rezava a agoureira e assustosa acauã,
O Gênio, benzendo a floresta combusta,
Voltava à venusta mansão de Tupã.    

Fonte: Rádio Poran

Nenhum comentário:

Postar um comentário