sábado, 21 de julho de 2018

BÊBADOS QUERIDOS DA MINHA TERRA!

Fonte: Google

BÊBADOS QUERIDOS DA MINHA TERRA!

José Pedro Araújo
Historiador, romancista e cronista

Todos nós temos perdida na mente a lembrança de algum bêbado famoso. O assunto, que pode ser considerado como uma verdadeira tragédia para os familiares do indigitado beberrão, pode se constituir em situações verdadeiramente hilariantes para outros. Da minha infância, guardo a imagem do velho João Tufo a perambular pelas ruas do nosso Curador, amedrontando as crianças com a sua figura caricata, suja, corpo cheio de feridas, abertas e purulentas. Esse pobre homem andava rua acima, rua abaixo, cambaleante, cofo nas costas, a pedir esmolas mal o dia começava. Na minha ótica, parecia já estar embriagado quando o sol nascia no horizonte. Nada sei da sua origem, apesar de dizerem ser ele uma espécie de Quincas Berro D’Água, o rei dos vagabundos da Bahia, relatado nos escritos de Jorge Amado. Mas, lembro-me que quando morreu causou grande comoção na sociedade local, já acostumada com a sua figura inofensiva e bonachona.

 Vem da mesma época também outro personagem marcante. Era um negro velho, carapinha branca qual chumaços de algodão, chamado Preto Olegário. Não sei da sua origem também, mas era figura conhecidíssima na cidade. Passava os dias em total estado de embriaguez, batendo às portas de todos os bares da cidade em busca de quem lhe pagasse um copo da cruel para beber. Era comum vê-lo no final da tarde caído em alguma calçada, abraçado com alguns trapos que sempre carregava consigo. E onde caía, ali passava o resto da noite, ao relento e sob o orvalho. Ou banhado pelas torrenciais chuvas que caiam no período invernoso. Vem desse período uma frase com viés racista que se usava quando era colocada uma espiga de milho verde para assar, e ela ficava queimada, deixando à mostra aquela crosta escura: “Ih! o Olegário passou o pé”, afirmavam as crianças, numa alusão à cor da pele do pobre homem. Vez por outra, quando estava incomodando demais, o velho Olegário era recolhido pela polícia e passava a noite em uma das celas da cadeia velha, situada na Praça Diogo Soares. Ali, certa vez, o nosso conhecido “beberraz” dormiu para nunca mais acordar. Foi velado na própria delegacia, onde o vi prostrado sobre uma porta de madeira arrancada de um portal. Foi enterrado como indigente. Ninguém veio lhe reclamar o corpo ou chorar por ele.

Certa época apareceu em Presidente Dutra um homem robusto, alvo de tez, conhecido pela alcunha de Créu. Veio das bandas de Sergipe, me parece, e foi acolhido por importante empresário presidutrense, que o contratou como vigia do seu posto de gasolina. O homem começava também a beber logo que o dia amanhecia, de maneira que quando a noite chegava, já o encontrava completamente embriagado. Nessa ocasião, inflamado pela branquinha, subia na marquise do prédio onde hoje funciona um hotel e despejava sobre a cidade seus discursos intermináveis e furiosos. Por esse tempo, vivia-se o início do governo militar que governou o país por mais de vinte anos. Naquele momento as garantias individuais estavam totalmente suspensas e o cala-te boca era a tônica do momento. Nem mesmo este aspecto era impedimento para o falastrão Créu despejar a sua fúria sobre tudo e sobre todos, nas noites do Curador.

Lembro-me, entretanto, que seus principais inimigos eram os Comunistas e Integralistas (que ele chamava de intregalistas). Inflamado, atacava os adversários do regime getulista, implantado lá pelos anos 30, estendendo-se até o ano de 54. Do alto do seu púlpito improvisado, todas as noites o bebum despejava discursos desconexos, misturando datas e fatos, para desgosto das famílias que moravam no entorno do local da sua oração, incomodadas com a voz forte do orador notívago. Certa noite, depois de alguns anos de zangados discursos, a voz do orador se calou. Assim como surgiu, desapareceu sem deixar um adeus.

Em Presidente Dutra, mais precisamente no povoado Canafístula, era fabricada uma pinga que ganhou fama entre os bebedores contumazes, e também entre os apreciadores esporádicos de uma purinha. Sem marca própria, passaram a chamá-la de Beltroina, numa referência ao dono do engenho, o fazendeiro Beltrão Campelo. A Beltroina possuía uma coloração dourada e seus apreciadores diziam ser de uma qualidade extraordinária. Talvez por conta disso, alguns rapazes da cidade se afeiçoaram tanto a aguardente que viviam entornando grandes quantidades dela até beijarem o pó vermelho das ruas. Alguns desses jovens, pertencentes à burguesia local, entravam em tal estado de êxtase que saiam aprontando pela cidade. Um deles, figura conhecidíssima de todos, bonachão, conversa agradável, melava-se amiúde com a Beltroina, para desespero dos familiares e amigos. O contato do rapaz com a marvada se tornou tão corriqueiro que era comum encontrá-lo “tangendo galinha” pelas ruas da cidade ainda na parte da manhã. A propósito disto, os amigos de farra, confirmando aquela máxima de que “o macaco não olha para o próprio rabo”, decidiram que o rapaz precisava arranjar uma cara-metade para cuidar dele. Somente assim, conjeturaram, sairia daquele estado constante de embriaguez.

A escolha recaiu sobre uma jovem muito bonachona e prendada, namorada antiga, mas esporádica do nosso bebum. Honesto também é acrescentar que o rapaz não era nenhuma criança também; já estava ultrapassando a casa dos trinta e cinco anos, de modo que se equivaliam no quesito idade. E além do mais, a moça era prendada e de boa família, formada professora - se não me falha a memória. Cuidaria dele muito bem. Mas o plano só daria certo se a moça concordasse com ele. Aí veio a surpresa. A moça aceitou sem impor condições o casamento, e ainda afirmou que nutria grande paixão pelo candidato que lhe foi ofertado. Foi a sopa no mel. Uma parte do futuro casal concordava inteiramente com o casório. A outra parte, por sua vez, só precisava ser convenientemente preparada!

Mas otimismo tem limites. Foi difícil conseguir convencer a outra cara-metade. Sempre que o assunto era iniciado, o rapaz, naquele momento ainda sóbrio, pulava fora e dizia ao interlocutor poucas e boas, taxando-o de amigo-da-onça. Notaram, porém, que quando o rapaz já havia tomado algumas a mais, o assunto era mais bem recebido, aceito até mesmo com certa simpatia. Combinaram com a noiva realizar o casório quando ele estivesse completamente embriagado. E assim foi feito. No dia do casório, o nosso protagonista estava radiante, apesar de não se manter de pé sozinho. Aparentava também não saber do que se tratava aquela solenidade tão animada. Não importava, já que a cachaça estava rolando solta e a felicidade dos amigos era total. Mas no dia seguinte, quando acordou e deu de cara com a nova sócia ali do lado, o homem irrompeu em um choro descontrolado; não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo com ele.

Poucos dias depois, encontrei-o em um sítio da família. Estava sóbrio e ainda muito magoado com a presepada que haviam aprontado pra ele. Mais tarde, depois de relembrarmos o episódio do casamento, julguei ver brotar de seus olhos algumas lágrimas teimosas.      

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