Da esquerda à direita, Nelson Nery Costa, presidente da APL, acadêmico Manoel Paulo Nunes, escritor Pádua Carvalho e o acadêmico Dílson Lages Monteiro.
Crispim, rios de desesperança
(*) Dílson Lages Monteiro
Escrevendo sobre particularidades
vitais da Teoria Literária, ao discorrer sobre a trama no romance, anotaram os
mestres mineiros Audemaro Goulart e Oscar Vieira:
“Ler um romance consiste em
filtrar significados outros que não aquele óbvio que as palavras na sua
limitação significativa estão a sugerir. É necessário que o leitor rompa a
barra que separa significante e significado e se projete em outros domínios,
descobrindo novos eventos, às vezes latentes, às vezes matreiramente
escamoteados pelo romancista. Assim procedendo, ele, o leitor, estará
enxergando os personagens sob novos prismas e perspectivas, estará, enfim,
vendo gente viva, onde, supostamente estariam simples bonecos (...) Grave-se
isto: a trama de um romance jamais deve ser o simples contar de uma história.
Existe uma ambiguidade que cumpre ao leitor decifrar” (1994:103).
Crispim, rios de desesperança,
romance com o qual Antônio de Pádua Vieira de Carvalho estreia na seara da
literatura, é uma narrativa, em sua composição temático-formal, concentrada,
sobretudo, em uma trama: interessa ao narrador, principalmente, os vínculos
causais da estória e a alegoria subjacente a eles, construídos a partir dos
desdobramentos em torno do destino trágico do filho de um pescador. Recuperando
uma lenda que, historicamente, simboliza a identidade de Teresina, a lenda do
Cabeça de Cuia, o autor resignifica o
sentido usualmente atribuído a ela, que, na versão de Pádua, vira romance, a
fim de dar a essa lenda uma dimensão até então pouco explorada, embora muitas
versões para a estória, em prosa e verso, tenham brotado das mãos de
experientes literatos locais.
A clássica lenda do Cabeça de
Cuia, vivida e revivida pelos teresinenses, conta popularmente a história de um
garoto muito pobre, Crispim, estabelecido nas margens do rio Parnaíba. Certo
dia, a mãe o serviu para o almoço uma sopa com ossos, porque, em sua casa,
faltava carne. Revoltado com a situação, atirou o osso contra a mãe,
atingindo-a na cabeça em golpe mortal. Antes de morrer, a mãe o amaldiçoou: ele,
com a cabeça enorme no formato de uma cuia, um monstro, vagaria dia e noite
pelo rio, somente se libertando da maldição após devorar sete virgens de nome
Maria. Enlouquecido, Crispim se atirou ao Parnaíba, onde se afogou. O corpo
dele nunca foi localizado e até hoje sua figura lendária desperta temor nos
banhistas, nos pescadores e nas moçoilas.
Narrativas populares, nascidas da
tradição oral, revelaram-se em seu nascedouro como instrumento de explicação
para comportamentos ou ações que fogem à racionalidade ou contrariam as
convenções sociais, a cultura ou as leis. Às vezes, sob forte influência das
crenças religiosas. É o se observa também nos contos de fadas, de natureza
próxima às lendas e ao conto popular, por exemplo, de acordo com o que diz Bruno
Bettelheim:
“(...) Abundam em motivos
religiosos; muitas histórias bíblicas são de natureza idêntica ao conto de
fadas. As associações conscientes e inconscientes que estes evocam na mente do
ouvinte dependem de seu sistema geral de coordenadas e de suas preocupações
pessoais. Daí que as pessoas religiosas encontrarão neles muitas coisas de
importância(...).
A maioria dos contos de fadas se
originou em períodos em que a religião era uma parte muito importante da vida,
assim eles lidam, diretamente ou por inferência, com temas religiosos “
(2007:22).
Seguindo esse viés, a matriz da
lenda Cabeça de Cuia pode ser explicada pela necessidade de obediência diante
das adversidades da vida: evitar o rio e seus perigos, manter a castidade,
livrar-se dos riscos de afogamento nas águas turbulentas do rio, aprender a
perdoar etc.
Em ensaio esclarecedor sobre a
lenda do Cabeça de Cuia, Maria do Socorro Rios Magalhães, crítica literária e
distinta integrante da Academia Piauiense de Letras, associou a criação do mito
Crispim à fundação de Teresina. Citando diversas versões da lenda, ao analisar
sua estrutura narrativa fundamentada em André Jolles, além de considerar
contribuições de Lévi-Strauss, diz a pesquisadora:
“O Cabeça-de-Cuia é uma lenda
muito associada a Teresina, à origem da cidade, remetendo ao lugar onde surgiu
uma pequena povoação, denominada “Vila do Poti”, porque se situava junto à
barra do rio Poti, ali onde aquele rio joga suas águas no Parnaíba, formando um
cenário de extraordinária beleza, hoje transformado em atração turística. Esse
local teria sido a primeira opção de José Antônio Saraiva para construção da
nova capital que substituiria Oeiras, a antiga sede da província do Piauí. No
entanto, as frequentes cheias que assolavam a região o fizeram desistir da
ideia, levando-o a decidir-se pelo lugar conhecido como Chapada do Corisco,
para onde foram transferidos, embora a contragosto de alguns, os moradores da
Vila do Poti. A “Vila Nova do Poti”, como passou a ser chamado o povoado
erguido na Chapada do Corisco, deu origem a Teresina, a nova capital,
inaugurada em 1852 pelo presidente José Antônio Saraiva. Contudo, a antiga
povoação da barra do Poti resistiu, teimando com as enchentes do rio Poti, e
passou a ser conhecida como “Vila Velha do Poti”, até se tornar o bairro “Poti
Velho”, o mais antigo da cidade” (págs.151-152)
Partindo do pressuposto de que
mito e lenda remetem a um tempo das origens e de que “a narrativa mítica é a
transformação de uma estrutura lógica subjacente”, citando Levi Straus,
esclarece Rios Magalhães:
“(...) para captar o sentido de
uma narrativa mítica, é necessário levar em conta, além das sequências
narrativas, ou seja, os acontecimentos na sua ordem cronológica, que dão o
sentido aparente do mito, aquilo que chama de “esquemas”, que são oposições e
equivalências, que se encontram num plano de profundidade superior ao plano
horizontal das sequências” (p.156).
Nessa linha de raciocínio, entre
as várias conclusões que se associam à origem de Teresina, para fundamentar
suas especulações, conclui a pesquisadora:
“A narrativa inicia com um homem
tentando pegar um peixe nas águas dos rios e termina com um homem que, vivendo
como peixe nessas mesmas águas, passa a afugentar aqueles que tentam ali
pescar” (p.157).
Em Crispim, Rios de Desesperança,
o significado da lenda adquire novos contornos. Ela é explorada para que o
leitor alcance uma instância de enunciação compromissada com a dimensão social
da literatura. Crispim deixa de ser o mostro que apenas causa pavor aos
banhistas, canoeiros e mocinhas, para se transformar em vítima das injustiças
sociais. Tal qual na lenda, o Crispim de Pádua Carvalho também matou a mãe e a
avó e desapareceu nas águas do rio; entretanto por circunstâncias mais
diretamente ligadas ao determinismo da imobilidade social gerada pela miséria.
A Teresina de Crispim, Rios de
Desesperança é a da periferia; a da periferia teresinense das décadas de 1940 e
1950. A da família de pescadores residente na Catarina, nas imediações da
Piçarra e do Morro do Querosene, detalhadamente personificada em hábitos e
valores. A da construção da igreja de São Raimundo. A da fé incondicional em
rituais religiosos. A dos incêndios criminosos em casas de palha. A da
arbitrariedade do aparelho policial reprimindo e criminalizando a pobreza. A da
violência galopante nos prostíbulos, formados de jovens perdidas na ilusão do
amor frustrado. A da infância de brincadeiras genuinamente infantis, ainda que
a maldade e o bullying, como denuncia o autor, estivessem desde sempre
estranhados como traço humano ou parte integrante de cultura machista. Seus
personagens tem o cheiro da terra: pescadores, lavadeiras de roupa,
verdureiras, trabalhadores braçais variados, para quem, como reforça o narrador,
pobreza não aniquila a honra nem a dignidade. A Teresina de Crispim tem a marca
da injustiça social, mas reserva lugar ao amor e à bondade.
O Crispim de Pádua Carvalho é um
rapazote disposto ao trabalho e a ajudar o pai Juvenal e a avó Dona Esperança, atormentado
pela orfandade da mãe que habitava sua curiosidade e afeto. Embora se consumem
núcleos dramáticos repletos de tristeza e sofrimento, a ternura e a comoção
fazem o leitor se identificar com a narrativa. Identificação advinda também do
humor sutil que perpassa o texto. Crispim ganha, por exemplo, a designação de
Cabeça de Cuia, na verdade, pela natureza do trabalho que exerce (vendedor de
cuias e esponjas) na feira do bairro
Piçarra, onde, permanentemente é caçoado por colegas que tentam inferiorizá-lo.
Em Crispim, Rios de Desesperança,
há o publicitário que é o autor. E publicidade se chama ideia: responde ao nome
de sonho. Há, neste romance, portanto, a imaginação viva de quem se habituou a
transformar sonhos em necessidades, ou a verter carências em ideais. Permite,
pois, sua obra recuperar o que escreveu o escritor russo Máximo Gorki, ao
explicar como aprendeu a escrever:
“Na luta da existência, o
instinto de conservação desenvolveu no homem duas poderosas forças criadoras.
Essas forças são o conhecimento e a imaginação. A primeira é a capacidade de
observar, comparar e elucidar os fenômenos naturais e os fenômenos da vida social;
em outras palavras, o conhecimento é a capacidade de pensar. Em essência, a
imaginação também é pensamento acerca do mundo. Porém, é fundamentalmente,
pensamento em imagens, pensamento em forma artística” (1998:12).
Para aquilatar a dimensão de que
o leitor estará diante de escritor senhor da palavra, o qual resignificou em
romance a lenda mais característica do Piauí, em linguagem que valoriza a
oralidade, sem perder a fluência nem empobrecer o texto, reproduzem-se aqui as
linhas iniciais de Crispim, Rios de desesperança, na voz de um narrador
distante que a contempla como se apalpasse a memória, para, mesmo em descrição
da paisagem, conotar traço identitário de Teresina. Nestas linhas, o céu de
Teresina, visto do bairro Picarra:
“O sol ia alto no céu destas
paragens de Teresina, uma cidade nova que há pouco tempo acabara de completar
seus primeiros cem anos de vida. Estava límpido aquele céu, o mesmo que em
noites de chuva era rasgado por coriscos e se fazia estremecer com o estrondar
dos trovões, obrigando os mais supersticiosos a ficarem em suas casas, as
portas e janelas fechadas, presos às crendices de cobrir os espelhos com panos,
como forma de se protegerem. Ainda havia, na gente simples, muito da ignorância
cultivada anos a fio pela pobreza, o isolamento e a falta de acesso ao
conhecimento, talvez certa ingenuidade que, aos poucos, cedia lugar para uma
nova realidade.
Este é o mesmo céu que, de dia,
estende a luminosidade cegando as vistas, faz do astro-rei um braseiro que
esturrica o chão das ruas de Piçarra, brilhando e queimando a pele dos filhos
deste rincão de maneira menos branda que os de outros lugares. Mas, ainda
assim, o verde das árvores predomina na paisagem, meio urbana e meio rural, e
recompensa, com sua sombra, a enormidade do desconforto trazido pelo calor
escaldante” (p.15).
Referências
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise
dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
CARVALHO, Antônio de Pádua Vieira
de. Crispim, rios de desesperança. Teresina: Livraria Nova Aliança Editora,
2017.
GORKI, Maximo. Como aprendi a
escrever. Porto Alegre: Mercado de Letras, 1998.
GOULART, Audemaro Taranto &
SILVA, Oscar Vieira da. Introdução ao Estudo da Literatura. Belo Horizonte-MG:
Editora Lê, 1994.
MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios.
A lenda do Cabeça de Cuia: estrutura narrativa e formação do sentido.
Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/1920/1216
(*)Dílson Lages Monteiro é poeta
e ficcionista. Editor de Entretextos e professor, ocupa a cadeira 21 da
Academia Piauiense de Letras.
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