Igreja antiga de Barras (demolida). Fonte: Barras Virtual |
Fonte: Centro histórico de Barras. Fonte: Cidades do Mundo/Google |
A identidade de Barras-PI em seus
177 anos
Dílson Lages Monteiro
Da Academia
Piauiense de Letras
A cidade de Barras-PI, na
confluência dos rios Marataoã e Longá, de território entre seis barras de rios
e riachos, festejou, em 24 de setembro, 177 anos. Cidades são feitas de
trabalho e conflitos. Também de sonhos e discursos, porque cidades se constituem
como comunidades imaginadas, em narrativas contadas e recontadas pela história oficial, pela
memória oral, pela literatura, pela mídia, pela cultura popular.Que imagens
definiriam com maior exatidão o sentimento coletivo de barrenses e não
barrenses em relação a essa terra tão afetuosamente exaltada pelos piauienses?
Para muitos, Barras é os rios, a
igreja, a vida rural (ou os resquícios dela). Os rios são, sem dúvidas, um dos
elementos que bem identificam a cidade. Para quem, por exemplo, viveu em Barras
nas décadas de 1970 e 1980, seria quase impossível buscar a cidade da memória e
não se remeter a imagens de numerosos grupos em lazer no Marataoã e no Longá, à
abundância de lavadeiras em todo o percurso, à margem daquele rio, na zona
central; ao fervor com que se comemoravam os festejos de Nossa Senhora da
Conceição, um fervor que se fortalece na preservação repetida da tradição; à
força do extrativismo vegetal em seus últimos suspiros como atividade econômica
forte na economia local, assim como à criação extensiva de gado. Os rios, a
igreja, a vida rural... Também, historicamente, uma cidade com espaços sociais
demarcados pela injustiça social, que força a migração em busca de
oportunidades de emprego, educação e bem-estar.
Os rios, a igreja e a vida rural
revelam-se as bases da fundação de
Barras do Marataoã. David Caldas reconstituiu em narrativa basilar a ocupação
do lugarejo, publicada em O amigo do povo, em 1871, e retomada por inúmeros
pesquisadores. Nela, reconstrói um percurso que se inicia em meados do século
XVIII, ocasião em que já se principia a construção de capela, na fazenda
Buritizinho, hoje núcleo central da cidade, então fazenda pertencente a Miguel
Carvalho de Aguiar. Sucedem-no na posse e administração de Buritizinho e
adjacências, em terras pertencentes, em partes, a Nossa Senhora da Conceição,
Manuel da Cunha Carvalho, Manuel José da Cunha, Francisco Borges Leal Castello
Branco e José Carvalho de Almeida, este, liderança de destaque de Barras Vila,
responsável pelos trabalhos de edificação da Antiga Matriz de Barras, demolida
pela comunidade em 1963.
Nas últimas décadas, o registro
de David Caldas passou por várias leituras e novas interpretações permitiram, a partir,
principalmente, das contribuições da genealogia e da descoberta de fontes
primárias inexploradas, entender com maior exatidão de que maneira ocorreram os
assentamentos humanos nessa região. Graças, sobremodo, aos estudos de Edgardo Pires Ferreira,
Reginaldo Miranda, Afonso Ligório Pires de Carvalho, Gilberto Sodré Carvalho e
Valdemir Miranda, esclareceu-se a movimentação intrafamiliar entre os núcleos
Carvalho de Almeida e Castello Brancos, principalmente, na formação do
patriarcado rural do Norte piauiense. As
novas leituras permitiram que se pudesse, hoje, enxergar com exatidão como
Buritizinho ou a povoação das Barras vai, entre outros fatores, por meio de
laços de parentesco, constituindo-se tanto no século XVIII, quanto no século
XIX. Hoje, essas descobertas ganhariam fôlego com um estudo minucioso do rol de
fazendas da antiga Barras.
O estabelecimento desses grupos
familiares e de outros a eles relacionados encontra na atividade agropastoril,
sobretudo na criação do gado, elemento determinante da atividade laboral.
Diga-se de passagem que a pecuária foi
atividade econômica principal do Piauí do século 18 e ainda vigoraria como um
dos principais aspectos identitários no século 19. A isso se relaciona o
estabelecimento de membros da Companhia de Jesus, praticando pecuária, conforme
ressalta Afonso Ligório Pires de Carvalho, em Terra do Gado.
A origem de Barras como
assentamento humano é, pois, o curral e
a igreja, a que se agrega, de maneira fundamental para a permanência humana, a
abundância de água em seus diversos veios, infelizmente, ao longo da história,
ainda não alvo de políticas públicas eficazes. A importância, por exemplo, do
Marataoã está expressa, formalmente em sua própria designação, por ocasião da
elevação de Barras à categoria de cidade em 1889, com o nome de Barras do
Marataoã.
Mais do que uma simples
localização geográfica, as reminiscências do rio evocam, para quem, por
exemplo, viveu em Barras nas décadas de 1970 e 1980, a figura de grandes
invernos com as margens lambendo quintais de casas com violência; grandes
piranhas, vermelhas e pretas, pescadas em abundância e toda sorte de peixes
hoje raros em suas águas, alguns até definitivamente desaparecidos, como
preconizara em carta, datada de 1974, o advogado barrense e político Durval de
Carvalho e Silva, domiciliado em Pompeia-SP. Dirigindo-se aos familiares, por
correspondência, profetizou: “O
Francisco ainda está pescando? Deve ele ser mais comedido, pois o nosso
Marataoã é pequeno”, e sem dúvida, não tem condições de ‘armazenar’ tanto
peixe.” Curiosamente, o Francisco referido é Francisco Luiz de Carvalho e
Silva, que prefeito de Barras entre 1951 e 1955, construiria com recursos
próprios uma das maiores obra de infraestrutura do século XX no município, a
Barragem do Pesqueiro, responsável não apenas por reter e concentrar água em
abundância no perímetro urbano, favorecendo o abastecimento de água, mas também por garantir, por décadas, fartura
de peixes.
Na memória, o rio, ou os rios, é,
ainda, a figura quase escassa de um trabalhador, visto hoje quase
exclusivamente em motocicleta em comunidades rurais, o vendedor de peixes de
porta em porta. Sua presença era rotineira nos invernos: de cabo de madeira
sobre o ombro, segurava firme o peso dos cambos de peixes nas duas extremidades
e o inconfundível bordão cortando a atmosfera: “Olha o peixe! Olha o peixe!
Mandi, piau, surubim!”.
O rio Marataoã sempre se
apresentou como patrimônio de destaque não apenas aos nascidos no berço de João
Pinheiro e Leônidas Melo, mas também aos que passam por esse chão. Recordando
férias em Barras, desfrutadas na década de 1940, o professor da Universidade de
São Paulo, piauiense Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, ressalta em seu
livro de memórias sobre a Rua da Glória, em Teresina, o fascínio pelas águas
calmas do rio. Relatando sua hospedagem em pensão situada na Praça da Matriz,
comenta:
“A pensão de D. Sinhazinha ficava
nessa praça, o coração da pequena cidade, pois nela estava a igreja matriz de
N. S. da Conceição, padroeira da cidade. Esta era pequena e descalça, mas muito
tranquila e limpa e tinha uma graça especial, como o rio Marathaoan, que
serpenteava pela planície, alargando-se mais ou menos em frente à matriz e
formando uma ilha muito pitoresca, onde os habitantes organizavam pequeniques e
chamavam de Ilha dos Amores”.
Diz ainda prof. Carlos Augusto
Monteiro:
“O Marataoã era, ao tempo de
minhas férias, a principal atração. Todas as manhãs, entre o café e o almoço, a
garotada em férias e mesmo os rapazes da cidade reuniam-se para o banho. (...)
Os homens tinham o seu ‘porto’ mais a montante. Abaixo, a uma razoável
distância de uma meia légua, já fora da cidade, ficava o porto das lavadeiras”.
Quem, entre os barrenses,
naturais ou de afeto, não guarda no peito e no pensar uma lembrança amável
desse rio?
Entre representações
reconstruídas sobre a memória da cidade, imagem da qual se orgulham os
barrenses, tanto crítica como alienadamente, está a de que Barras é “Terras de
Governadores” . O que isso diz verdadeiramente sobre o chão em que nasceram os
governadores Taumaturgo de Azevedo, Coriolano de Carvalho e Silva, Artur de
Vasconcelos, Matias Olímpio de Melo, Leônidas Melo, Sigismundo Gonçalves,
Fileto Pires Ferreira?
A história de Barras, a oficial,
é contada e decantada, principalmente, a partir de seus filhos ausentes. É a
história dos feitos deles, geralmente, em outras paragens. História de
heroísmos, bravura, liderança e coragem. Essas representações, envoltas em
romantismo, têm sua origem, talvez, na figura medieval do desbravador
português, não na história das conquistas a ferro e fogo; na figura do vaqueiro
destemido, não na do homem usurpado em sua condição humana; na figura dos
coronéis empreendedores, não na do jogo de forças em que o poder era exercido
pela extensão das terras e pelo número de agregados ou por quem mandava mais.
O heroísmo, a bravura, a
liderança e a coragem propaladas como tão naturais dos barrenses, às vezes, é
genuína; às vezes, imaginada para reforçar uma identidade calcada em valores
ora ilusórios, ora verdadeiramente sentidos:
está no voluntariado da Guerra do Paraguai (nem tão voluntário assim...), na
fundação de uma sociedade libertadora de escravos, adiante de seu tempo,
referenciada por nomes como Odilon Nunes e Clóvis Moura, nas denúncias
incontestes da injustiça social feitas por David Caldas, publicadas nos
variados jornais em que esteve à frente, no poder exercido pela oligarquia
Pires Ferreira entre os anos de 1889 e 1930, na vitoriosa carreira política de
um dos mais ilustres barrenses de todos os tempos, Leônidas Melo.
Os rios, a igreja, as tradições
do passado de glórias dos filhos ausentes se mantêm como motivos para que
Barras se autodefina. Hoje, também o carnaval, a reforma agrária, o triste
recorde de exportação de mão de obra escrava e semiescrava, para o Norte,
Centro-Oeste e Sudeste do país, o empenho e a persistência de empreendedores da
melancia e do caju, mas essa já é outra história... Em seus 177 anos, Barras do
Marataoã continua, ainda que envolta em suas ilusões históricas, alimentando
sonhos e esperanças, porque de sonho e esperança, especialmente, faz-se a vida.
Fonte: Portal Entretextos
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