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Crônica, a forma literária do
tempo presente
Dílson Lages Monteiro – da
Academia Piauiense de Letras
A pressa do dia a dia e a
automação do cotidiano, intermediadas pela intensa presença de tecnologias,
criaram um vácuo para novas necessidades. Uma delas, para surpresa de muitos, é
a de comunicar-se de verdade; de encontrar uma voz que se ligue à sua, para
suprimir a impressão de que, na multidão do anonimato, não se é um número ou
não se está sozinho. O desejo de pertencer a uma comunidade, de ter uma
identidade ou de aperfeiçoá-la, faz com que a crônica encontre um espaço
natural em meio ao burburinho de imagens ofuscantes e do imediatismo de um mundo
de “clicks”, feito para durar o instante de sua materialidade. A crônica
impõe-se como resistência e caminho de iniciação à descoberta da literatura.
Joaquim Ferreira dos Santos, na
antologia “As cem melhores crônicas brasileiras”, lembra que a crônica, com o
propósito concedido a ela hoje, começou, guardadas as especificidades do tempo,
da relação com a imprensa, com o fito de registrar relatos da semana e, na
virada do século XX, ganhou fisionomia própria com Machado de Assis: “Passou a
refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso, o que
ia nos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o
crescimento das cidades, o duelo dos amantes e tudo mais que quer mexesse no
caminhar da espécie.”Acrescenta ele que, em Machado, “a crônica está no detalhe, no mínimo, no escondido, naquilo
que aos olhos comuns pode não significar nada, mas, puxa uma palavra daqui,
‘uma reminiscência dali’, e coloca-se de pé uma obra delicada de observação
absolutamente pessoal”.
Hoje, o contato diário do
brasileiro com os maiores nomes da literatura ocorre, principalmente, por esse
gênero. A crônica se ressignificou, sem abandonar a função mais básica: forma
de interação, entretenimento e participação social, capaz de inserir o leitor
no espaço concreto dos grandes acontecimentos e, ao mesmo tempo, recuperar os
aspectos mais banais da vida, aparentemente sem grande relevância. Independente
de como se configure (seja pela sua dimensão lírica, seja pela humorística,
seja pela política), no fundo, essa manifestação tornou-se hoje – mais do que
em qualquer tempo –- um significativo meio de desenvolver a noção de
pertencimento a uma comunidade, o que reforça a evidência de que “a crônica
brasileira tem uma cara própria, leve, bem-humorada, com o pé na rua”, como bem
disse Antônio Cândido.
Conforme ainda Joaquim Ferreira
dos Santos, as crônicas hoje se apresentam com “o abuso da primeira pessoa, do
comentário e da liberdade de adotarem um idioma ora poético, ora
jornalístico, ora irônico, ora
perplexo”, quase sempre bem-humorado. Parecem textos ligeiros, simples e
superficiais, tamanha a facilidade de leitura. São pequenas obras-primas de
emoção, baseadas nos espantos e alegrias, decepções e surpresas do cotidiano”.
Por isso, marcam-se pela amenidade, como diria Leandro Konder, ao escrever
“Artes da palavra – elementos para uma poética Marxista”: “Ao contrário da
reportagem, a crônica não tem maiores compromissos com a objetividade. Sua
força não está na informação, mas na capacidade de interessar os leitores, em
geral. Sua força não está na profundidade do pensamento, mas na amenidade com
que o expõe”.
A natureza amena da crônica leva
Leandro Konder a afirmar que tal forma literária “abre espaço para o comentário
pessoal, o olhar subjetivo, a busca de singularidade do efêmero e do
fragmentário. Embora não ignore os problemas da esfera pública, a crônica
parece preferir lidar com vicissitudes mais pessoais, com sentimentos que se
formam na vida privada, ou se voltam para ela”. Esses traços reafirmam uma de
suas principais funções: “ A crônica faz apreciação pessoal dos fatos do
cotidiano”.
Essa apreciação do dia a dia
tanto comporta a revisão da história, não raro, quanto abre espaço para a
liberdade própria do gênero “em que tudo é possível”, inclusive o
intercruzamento de gêneros textuais. A esse respeito, José Castello,
citando os relatos de oficinas de
escrita criativa de Walter Galvani, publicados em “Crônica: o voo da palavra”,
registra:
“Entre nós, hoje, o fracasso dos
gêneros se expressa, de maneira muito particular na proliferação da crônica – o
lugar, por excelência, da ausência de gênero. Na crônica, tudo é possível, da
ficção clássica à moda de Clarice Lispector às interrogações existenciais de um
Carlinhos de Oliveira, do lirismo despudorado de Rubem Braga à filosofia
disfarçada em desafogo de Paulo Mendes Campos. Depois deles, a crônica
brasileira tornou-se o lugar da experimentação (...). Às vezes, abriga apenas o
texto jornalístico; outras vezes, a confissão mais sincera, ou a simples
memória que, na verdade, não é tão simples assim. (...) A crônica se tornou o
lugar da experiência, um laboratório; o espaço sem forma, para o qual os velhos
gêneros confluem, já sôfregos, já deformados por um século inteiro de agonia e
suspeitas. (...)”.
A atualidade permanente da
crônica hoje também se configura em duas de suas características: a leveza e o
descompromisso. Esses elementos a aproximam da oralidade, fazendo com que seja
gênero facilmente praticável e de rápido encantamento, principalmente em tempos
de pressa e imediatismo. Como ensinou Antônio Cândido em seu clássico ensaio
"A vida ao rés-do-chão", sempre atual, “na linguagem, a crônica é
descompromissada, leve, longe da lógica argumentativa ou da crítica política e
se deixa penetrar pela poesia. No seu desenvolvimento, a crônica foi largando a
intenção de informar e comentar e passou a ficar com a função de divertir,
todavia, divertindo, ela também faz refletir. O grande prestígio da crônica
hoje seria um sintoma do processo de busca da oralidade na escrita, isto é, de
quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser
do nosso tempo”.
Todas essas razões se mostram
suficientes para se afirmar categoricamente: “A crônica é, por excelência, a
forma literária de primazia na atualidade”. A porta aberta para as descobertas
que somente a literatura consegue gerar em suas travessias de sonhos, asas,
perguntas e inquietações.
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