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A morte beija a mão de nosso senhor Simplício
Dias
Pádua Marques
Romancista, contista e jornalista
Corria
um vento levantando folhas secas de cajueiro vindas do rumo do Macacal, do
Buraco dos Guaribas e do Testa Branca naquele dia 17 de setembro. Simplício
Dias ia morrer daqui a pouco sem muita gente por perto e sem a pompa reservada
aos principais do Piauí. Pouca gente havia na rua Grande e lá embaixo no cais
do Porto Salgado, mas se via na esquina e na entrada de sua casa de morada um
movimento de entra e sai de gente da igreja e alguns poucos conhecidos. Era
assim desde a véspera.
Pois
na véspera pela manhã Elias veio lhe dizer que umas mulheres da vida queriam
ver o benfeitor e lhe pedir a benção já no leito de morte. Dona Isabel Thomásia
achou aquele pedido fora de sentido. Uma falta de respeito! Mas por insistência
do criado acabou aceitando. Vieram umas seis, muito pias, silenciosas, cabeças
cobertas por véus. Simplício até que podia ser perverso, mas nunca perseguiu as
mulheres da vida lá embaixo no Porto Salgado e nos Tucuns. A casa há dias já
estava vazia e silenciosa, aquele silêncio de casa onde acaba de sair um
enterro.
Elias
estava se sentindo só. De manhã cedo, olhando com cuidado seu senhor naquela
cadeira, próximo da rede e de um penico, Simplício estava com as canelas finas
terminando nos pés dentro de um chinelo de couro gasto saindo por baixo do
chambre de tecido ruim, os olhos encovados, a cabeça de antes cabelos
carapinhos e cor de cobre, agora estava ficando careca. O escravo de confiança
lembrava ali perto dele os dias em que precisou ter coragem.
Quantas
e quantas vezes a morte veio de tudo quanto era lado e de jeito, faca, pistola,
espada. Simplício venceu todas elas, mas agora não tinha como escapulir. Ia
morrer. Não levava nada desta vida. Nem o ouro, as pratarias, a louça de
porcelana inglesa, as joias valiosas da mulher, das filhas e da igreja feita
pelo pai Domingos e que os portugueses de Fidié roubaram um dia quando
invadiram a Parnaíba e que depois foram devolvidas. Voltou pouca coisa, não tudo. Os móveis, o
cofre com os poucos tostões da antiga fortuna.
Morreu
Simpilição! Simpilição morreu! Foi o que se ouviu no largo da igreja e na rua
da casa de morada do dono da Parnaíba naquele meio de tarde. Um negro passou a
gritar no rumo dos Tucuns e logo a notícia foi se espalhando pelos imensos
caminhos de areia beirando o rio. Tão logo ficaram sabendo, muitos escravos,
afilhados e agregados da casa da rua Grande vieram correndo em pranto de choro
rezar na igreja do Rosário. Muita gente espantada com aquela notícia tomou as
portas das casas humildes. Muita gente triste e muita gente alegre.
Morreu
Simpilição! No Porto Salgado, entre a gente das embarcações atracadas e nas
calçadas de armazéns, de repente ficou mais parecendo a Sexta-feira da Paixão.
Aquela gente sem nada pra fazer passou a ir pras portas das vendas e ficou
bebendo aguardente, fumando, achando graça com a mão na boca e até fazendo
pilhérias com o nome do morto. De noite por fim quando se soube de forma
oficial da morte em toda a vila, de ponta a ponta, ninguém mais fez nada nos
barcos.
Morreu
o Simpilição! Se acabou o Simpilição da Parnaíba! E assim já no outro dia,
antes de o sol andar quase no meio do céu indo morrer atrás das carnaubeiras de
Ilha Grande de Santa Isabel, aquela gente toda veio pra o largo da casa de
morada do governador da Parnaíba. Não puderam entrar, mas ficaram ali plantados
de longe olhando o movimento antes da saída do corpo pra dentro da igreja. Uns
falando das qualidades e da valentia dele como soldado. Outros lembrando
passagens boas ou ruins, a fortuna, o luxo exagerado em meio de tanta gente
necessitada, os castigos que dava aos escravos de sua casa, as perseguições
políticas.
Os
mais de dentro, contando políticos e comerciantes da praça e próximos de sua
casa, lembravam a caridade com uns poucos, a lealdade e depois a rebeldia com o
imperador dom Pedro I e o tino de comerciante, mesmo tendo perdido dinheiro com
a insistência de vender carne seca pra Europa quando lá se consumia há tempos
linguiça e salsichas da Alemanha, o sumiço da fortuna com um luxo fora de propósito
e as mortes do pai Domingos e do irmão Raimundo e o vazio que deixava por não
ter sucessores homens na família.
Mas
no meio daqueles que se apinhavam na frente dos armazéns, indo no sentido do
porto e da alfândega e lá mais longe, havia aqueles que o renegavam e até
desejavam que sua alma estivesse àquela hora no inferno. Morreu Simpilição!
Morreu, morreu Simpilição da Parnaíba! A família pediu que as cerimônias de
encomendação do corpo se dessem mesmo em casa, contrariando o senado da Câmara,
que queria que fosse dentro da igreja com toda a pompa a que ele tinha direito.
Mas
dona Isabel Tomásia e os outros de casa no íntimo temiam de que poderia haver
manifestações exaltadas. A milícia isolou toda a parte de baixo e do lado de
cima. E por fim por volta do meio da
manhã saiu quase em que se percebesse o cortejo em direção à igreja. Pouco mais
de dez pessoas, contando os carregadores, seis negros vestidos com roupas
brancas, calçados e asseados. Atrás do caixão vinham a viúva, a filha, os
outros parentes e as autoridades.
O
povo no largo da igreja do Rosário e no da casa de morada, rua Grande e
arredores pouco teve tempo de ver aquela procissão. Entraram na igreja e as
portas foram fechadas. A milícia pouco teve trabalho em deixar afastados os
curiosos. No porto a movimentação estava suspensa por ordem do capitão
Felismino Botelho, do brigue Cidade de São Luiz, o comandante mais antigo das
embarcações atracadas. E assim dentro de pouco tempo a vida e os feitos do
senhor da Parnaíba estavam debaixo da terra.
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