terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Couro grosso

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Couro grosso

Pádua Marques
Jornalista, contista e cronista

Sebastião Faustino, se não fosse a cachaça, havera de ser um dos homens mais ricos da Parnaíba. Coisa de ter conta no Banco do Brasil na praça da Graça, andar de automóvel pra cima e pra baixo igual seu Roland Jacob, conhecer deputado, prefeito e governador, dar esmola e ser padrinho de casamento e de batizado de muita gente na Ilha Grande de Santa Isabel, desde o Alto do Batista até o Labino. Mas não. O vício pela bebida e as mulheres da vida dos Tucuns não deixaram.

Tanto fez e deixou de fazer que estava ali agora na maior miséria, numa cama da Santa Casa de Misericórdia, junto da mulher Judite e dos dois filhos, João e Raimundo, pedindo por Deus a caridade de doutor Cândido Ataíde pra que não lhe cortasse o pé, atingido o calcanhar por uma mordida de piranha numa pescaria sem motivo nas lagoas do Labino. De madrugada, sozinho, vindo da farra na Parnaíba e que lhe tinha tirado a saúde e o sossego da família desde o final de junho, quando as águas baixaram.

Foi coisa de ir pra Parnaíba fechar uns negócios com palha e depois se enfiar nos cabarés do Cheira Mijo gastando o apurado, pagando, cigarro, vinho e conhaque pras putas, dando gorjeta pra dono de boteco, menino pidão, engraxate da praça da Graça, algum esmoler que lhe pedisse um tostão e tudo o mais e se esquecendo de voltar pra casa onde havera de ter deixado mulher e menino esperando!

A última notícia que se teve de Sebastião Faustino foi de que foi visto saindo da Casa Inglesa e na companhia de um conhecido, de nome Bernardo.  Coisa de cair da tarde, indo direto pra o rumo da Igreja do Rosário. Rezar não deve ter ido. Sebastião Faustino nunca foi de pisar dentro de igreja pra assistir uma missa que fosse! Pra dizer que não foi, foi no batizado do primeiro filho, João, menino hoje chegando aos dezesseis anos e que ajudava já no corte de palha.

O outro menino, Raimundo, de uns doze anos, foi dado de criação pra os avós na Ilha das Batatas. Foi quando a mãe não aguentando as bebedeiras do marido livrou o filho das incomodações.  Mas agora ela e os filhos estavam ali ao lado da cama do pai doente. Sebastião Faustino às vezes chorava muito pelo medo de ter o pé cortado. Pensava que nunca mais seria homem de sair de casa, fazer pescaria, nadar e tomar banho nas lagoas de águas frescas do Labino. Talvez nunca mais fosse homem de caçar passarinhos, xexéus e periquitos, aqueles mesmos que faziam seus ninhos nas carnaubeiras.

A carnaúba era assim na Parnaíba. Dava com uma mão e tirava com a outra. Pra quem não tinha ambição, vivesse direitinho e sem esbanjamento e não soubesse trabalhar com ela, o destino era a pobreza. Servia sim, pra enricar gente da Casa Inglesa e outras famílias de pente de ouro. Gente que tinha casa boa e até palacete na rua Grande e praça de Santo Antonio. Gente que tinha automóvel, fazenda de gado no Macacal e Ilha das Batatas, nas Canárias, no Buriti dos Lopes. Mas pra gente que bastava pegar em dinheiro, feito Sebastião Faustino, que não media distância com gastar o dinheiro na rua, era depois só dor de cabeça.

Saía de madrugada, ainda tudo turvo, todo pronto, como quem ia votar em dia de eleição ou se consultar na Santa Casa de Misericórdia com doutor Mirócles. Vez por outra levava um animal, tomado emprestado do vizinho, o negro Timóteo. Vendia a cera de carnaúba ainda na palha. Sebastião era bom de conta. Quando faltava o combinado com a Casa Inglesa ou outro comprador menor, comprava de algum vizinho.

A mulher em casa já ficava com a mão na cabeça, carregada de preocupações. Coisa de correr no oratório dentro da camarinha e pedir a Nossa Senhora da Conceição e São Francisco das Chagas que o trouxesse de volta são e salvo. Mas os pedidos de Judite não eram suficientes! Sebastião Faustino era homem de pouco juízo naquela cabeça grande.

Passava boa parte do tempo no carnaubal ou nas pescarias de lagoas de água doce nos Morros da Mariana. O dinheiro era pouco. Mal dava pra comprar aqui e ali algum mercado de querosene pras lamparinas, açúcar, sal, café, quando muito arroz, rede pra quem estivesse com mais necessidade, um vestido de chita pra Judite, sabão pra lavar roupas e os trens de cozinha, cordas, fios pra punho de rede, linha pra tarrafa, chumbo e anzol. Mas às vezes essas mercadorias eram trocadas na Casa Inglesa pela cera trazida em cima de jumento e depois canoas até chegarem na Parnaíba.

Quando estava bom e longe da bebida e estava no carnaubal, Sebastião Faustino às vezes se punha a olhar a vasta mata de palmeiras altas e que o vento acabava fazendo um barulho nas palhas, coisa de meter medo se estivesse sozinho naquele terror de sol do meio da tarde. Ficava ali horas e horas olhando pra copa delas, umas mais baixas, outras mais altas e mais velhas. Aquela mata de carnaubeiras novas era de onde sustentava e levava alguma coisa pra dentro de casa.

E pensava como é que podia toda aquela cera, que ele mesmo achava que não tinha serventia, valor de nada, aquele pó que, se pegasse nos olhos era capaz de cegar um cristão, estava rendendo muito dinheiro na praça comercial de Parnaíba e fazendo fortuna na Casa Inglesa e nos escritórios de seu Roland Jacob? Agora se lembrava de que tinha visto uma novidade na loja de seu Pedro Machado, ou do Franklin Veras, não sabia ao certo. Uma lanterna. Haveria de tão logo o dinheiro chegasse, iria comprar uma lanterna. Seria melhor pra fazer as pescarias à noite no caminho das lagoas. Melhor do que as lamparinas de Judite!

Mas depois daquele dia de negócios e de volta pra casa no meio da noite, na escuridão de meter dedo no olho entre o cais do outro lado do porto Salgado até chegar ao Labino, ouvindo o roçar do vento nas carnaubeiras, Sebastião Faustino vinha muito embriagado. Das compras, a dona do cabaré, por precaução pediu pra guardar, entregando tudo em segurança quando ele na semana voltasse na Parnaíba. Deixou que levasse apenas a faca de cintura e a dita lanterna.

Sebastião Faustino disse se gabando e onde estava, que não tinha medo de nada, tinha o couro grosso, só temia os castigos de Deus. Couro grosso e torrado de sol a sol naquela ilha ingrata, cheia de donos e que ninguém sabia ao certo de quem era. Mas era ilha de caboclos machos, muita água, fartura de peixes, muricis, cajus, de um tudo. Empanturrava tudo quanto era mercado de Parnaíba!

No meio do caminho, naquela vastidão de terra coberta de dunas ao longe e cercada de carnaubeiras silenciosas e aqui e outro ali, um pé de cajueiro, Sebastião Faustino acendeu a lanterna e achou uma lagoa de bom tamanho. Aí veio a tentação de nela tomar um banho. Foi se aproximando e logo foi tirando a roupa. Ligou e enfiou a lanterna na areia fofa até a metade com a luz voltada no rumo da água onde pudesse ver por estava indo. Nada e ninguém por perto.

Nu do jeito que sua mãe colocou ele no mundo, Sebastião Faustino, no calor daquele final de noite pra o início da madrugada entrou na lagoa até quando deu na altura das coxas. Nadou por uns poucos minutos. A água fresca da lagoa deu alma nova depois daquele dia de bebedeira no Cheira Mijo, na Parnaíba. Passados uns minutos e já imaginando dar um mergulho, sentiu uma fisgada pequena no calcanhar. Vai ver que fosse alguma piaba. Logo uma fisgada mais forte e outras seguidas. Se apavorou e quando se deu conta já era tarde. Piranhas!  

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

JESUS POBRE, JAMAIS MISERÁVEL

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JESUS POBRE, JAMAIS MISERÁVEL

JOSÉ MARIA VASCONCELOS
CRONISTA, JOSEMARIA001@HOTMAIL.COM

         Atendi a convite para discorrer sobre a personalidade de JESUS CRISTO, em encontro de universitários e professores. Em ambiente carregado de ideologia marxista, era de eu esperar pipocarem perguntas sobre a ostentação de papas e clero, em geral. Ou de um JUDEU errante e rabugento, feito hippie, abraçado a miseráveis, postergados pelas elites.

         IDEOLOGIA MARXISTA é um método de análise socioeconômica sobre as relações de classe e conflito social, que utiliza uma interpretação materialista do desenvolvimento histórico e uma visão dialética de transformação social, que influenciaram várias ideologias políticas e movimentos sociais, de caráter ateísta e anticlerical.

        Diante de uma assembleia dominada pela ideologia marxista, dificilmente eu os convenceria, utilizando-me de uma retórica, digamos, bíblica. Parti de passagens evangélicas, para extrair um perfil da natureza de JESUS, com perguntas bem práticas, sem ranços ideológicos ou religiosos:

- JESUS NASCEU EM GRUTA, ENTRE ANIMAIS. Cristãos, movidos de piedade, logo atribuem reflexos de extrema pobreza e miséria de José e Maria. Ora, o casal dispunha de dinheiro para hospedar-se em uma pensão, o que não ocorreu, por falta de vaga (Lucas, 2). Ademais, as residências, em geral, eram construídas sobre grutas, as quais serviam de abrigo aos animais domésticos do frio e dos inimigos.

- OS REIS MAGOS ENTRARAM NA CASA... ADORARAM-NO... OFERECERAM-LHE OURO, INCENSO E MIRRA (produtos só para majestades), Mateus, cap. 2.

- JESUS, NA CASA DE LÁZARO, JANTOU. Maria, irmã de Lázaro, UNGIU OS PÉS DE JESUS com precioso perfume NARDO. Apóstolo Judas, vendo a extravagância, soltou: “Por que ages assim?! Melhor vender o perfume e distribuir o dinheiro com os pobres!” E JESUS sapecou: “Pobres vocês sempre terão! Ela escolheu o melhor” Evangelista João, cap. 12, afirma que Judas dissera aquilo porque era tesoureiro do grupo e metia a mão na bolsa.

- PARA CELEBRAR SUA ÚLTIMA CEIA, JESUS ESCOLHEU UMA “SALA AMPLA E MOBILIADA NO SEGUNDO PAVIMENTO DE RESIDÊNCIA AMIGA” (Lucas, cap. 22). Afinal, o culto sagrado exige o máximo de nós, AMAR A DEUS ACIMA DE TUDO, principal e primeiro mandamento. A Deus o melhor.

 - JESUS NÃO VESTIA TRAPOS, MAS UMA VALIOSA TÚNICA, SEM COSTURAS DE ALTO ABAIXO. “Uma cobiçada peça que foi sorteada entre os soldados que O crucificaram” (João, cap. 19)

- Há algum tempo, publiquei a crônica, JESUS POBRE, SÃO FRANCISCO MISERÁVEL. Eu me inspirara em JOÃO MOHANA, sacerdote, médico, escritor maranhense, membro da Academia Brasileira de Letras, obras de sucesso nos anos 60 e 70. Li quase todas, especialmente O MUNDO E EU, na qual o autor não vê FRANCISCO DE ASSIS modelo de vida cristã, devido ao exacerbado rigor na prática da pobreza, de caráter miserável. Ao contrário de JESUS, FRANCISCO não pegava em dinheiro nem aceitava doações de moedas para seus frades. Não tomava vinho se não fosse misturado com água, além de se vestir com roupas toscas de camponeses. O Papa INOCÊNCIO III titubeou em aprovar a ORDEM de FRANCISCO, pelo excesso de pobreza. Até misturava cinza às comidas, segundo alguns biógrafos. O POVERELLO (pobrezinho) de Assis desgastou-se perante frades, a ponto de se dividirem em disciplina mais frouxa.

- “VEIO JOÃO BATISTA QUE NÃO COMIA PÃO NEM BEBIA VINHO COM PECADORES, VOCÊS DIZIAM QUE ELE TINHA DEMÔNIOS. JÁ O FILHO DO HOMEM QUE COME E BEBE COM OS PECADORES, VOCÊS O CONSIDERAM UM COMILÃO”(Mateus, cap. 11, vers,19).

- JESUS CRISTO PREGAVA A CARIDADE PARA COM OS POBRES, LIBERTANDO-OS DA MISÉRIA, E CONDENAVA A RIQUEZA EM DETRIMENTO DO ESPÍRITO DE POBREZA.

- Exige-se muita prudência e sabedoria, não confundindo JESUS CRISTO um beberrão e aliado a uma elite pagã e hipócrita. Quanto mais me aprofundo no seu discurso, mais descubro uma sociedade que tateia em busca da felicidade de costas para valores mais altos da família, de mundo mais justo.

domingo, 29 de dezembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA ZODIACAL

Fonte: Google


AUTOBIOGRAFIA ZODIACAL

Elmar Carvalho

Sou do signo de
            Carneiro
Mas meu coração é um
            Touro indomável
No meu sangue
corre a fúria de
            Leão
Entre uma Virgem e duas
            Gêmeas
Meu coração / bala
           Balança
Sou um Câncer
nos chifres de
            Capricórnio
Sou Peixes libertário
sem o cárcere de um
            Aquário
Sou Sagitário
            a
                        r
                                    m
                                               a
                                                           arco e flecha
                                               d
                                    o
                        d
            e
(A flecha é uma cauda de Escorpião)   

sábado, 28 de dezembro de 2019

Amor e sofrimento em Adail Coelho Maia

Fonte da foto e do texto: Portal Entretextos



Amor e sofrimento em Adail Coelho Maia

(*)Dílson Lages Monteiro

         Entre dezenas de obras referenciais da literatura piauiense republicadas nos últimos anos pela Academia Piauiense de Letras, sob atenção entusiasmada  de seu presidente Nelson Nery Costa, figura “O Lira do Sertão (Sonetos)” de Adail Coelho Maia, poeta nascido em São João do Piauí em 1907 e falecido nessa cidade em 1962. A obra foi editada pela primeira vez postumamente em 1978 e teve boa recepção, embora a circulação dos textos sofresse das limitações da edição modesta de então e de outras imposições do sistema literário. Quais traços do plano da expressão e do conteúdo imprimiram valor estético aos textos a ponto de justificar a reedição?

“Quero morrer de amor, meu Deus, quero morrer”. Bastariam esses versos para se afirmar que Adail Coelho Maia (1907-1962), “O Cisne de São João do Piauí”, no dizer de Pe. José Deusdará Rocha, traduz a essência própria do sentir dos poetas românticos. Para eles, amor e sofrimento se confundem na materialização de um conflito em que o desencanto da incorrespondência amorosa e do amor inatingível marca a inutilidade da existência.

            Esses traços temáticos, característicos, por exemplo, da poesia ultrarromântica de Álvares de Azevedo, o qual incorpora com maior exatidão, segundo Antônio Carlos Secchin, a “figura do poeta-sofredor, imerso em devaneios e desilusões” (2018:71), são retomados, ainda, a seu modo, pelos simbolistas. Aos românticos, só há lugar no mundo para o sonho e para a ilusão, carregados de sofrimento e dor (leia-se tristeza e divagações), a ponto de o amor e a morte habitarem entre os temas da predileção romântica dessa corrente de vates. Aos simbolistas, o amor também é fonte para a evasão, entretanto, ela se manifesta pelo sono, pelo sonho, pela viagem ou pela morte. Amar é movimento de sensações, agitação, vibração. A dor, de igual maneira, integra a subjetividade do poeta simbolista, revelando-se como modo de libertação do pensamento, que encontra o refúgio nas sensações e no transcendental, em sua atmosfera lúgubre, de vapor e névoa.

            Analisando a aproximação entre românticos e simbolistas, esclarece Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários:

“ A introversão romântica sondava de preferência as camadas superficiais do "eu", de caráter sentimental ou emocional. Os simbolistas voltam-se para o seu mundo interior em busca dos estratos mais recônditos: ultrapassam o nível do consciente, mergulham no inconsciente e atingem o "eu profundo", a zona pré-lógica ou pré-verbal do psiquismo humano, dimensão do caos e da alogicidade que se faz representar pelos sonhos, devaneios, visões, alucinações, lapsos de linguagem etc.” (2002:421).

            Para Alfredo Bosi,

            “Ambos os movimentos exprimem o desgosto das soluções racionalistas e mecânicas e             nestas reconhecem o correlato da burguesia industrial em ascensão, ambos recusam a limitar a arte a objeto, à técnica de produzi-lo a seu aspecto palpável; ambos, enfim, esperam ir além do empírico e tocar, com a sonda da poesia, um fundo comum que susteria os fenômenos, chame-se Natureza, Absoluto, Deus ou Nada” (1987:295).

            Traçando o perfil pessoal e literário do poeta e interligando as duas figuras, o cronista São-joanense Gilvanni de Amorim assim descreve o conterrâneo:

“Adail é lembrado pelos seus contemporâneos mais pelo temperamento divertido, bem-humorado, do que pelas suas poesias, que traduzem dor, tristeza e sofrimento. Por que esse paradoxo? Porque o poeta escrevia sóbrio, diferente do homem alegre que se mostrava no dia a dia? Incompreendido como artista, não tinha interlocutores para dialogar consigo no meio em que vivia, e extravasou sua alma complexa, conflitante, numa lírica repleta de agonia” (2005:120).

            É a atmosfera de sofrência por amor que perpassa quase todo o volume de 61 poemas, sendo 60 sonetos e um “soneto duplo” intitulado “A desgraçada”. O verso que abre, por exemplo, esta apreciação crítica se reverbera em outros de teor e significados congêneres. Neles, a evasão ultrarromântica se desenha como única saída para a angústia do sofrimento amoroso; morrer de amor, metonimicamente, é condição inescapável do sentimento:

            “Não me mates, por Deus, assim entre as escolhas

                Eu preciso morrer, porém, como um devoto,

                Vendo as luzes do céu, no brilho dos teus olhos”

                (“Desconfiança”, p.53)



                “Quero sofrer e sinto-me feliz

                Quero morrer a consciência diz

                A minha vida te pertence é tua”.

                (Sofrer, p. 56)

  
            Lembra Domício Proença Filho:

                “Os escritos românticos revelam no artista uma capacidade de criar mundos imaginários e de acreditar na realidade deles. Do choque do eu com o mundo, o escritor romântico evade-se na aspiração por esse outro mundo distinto, situado no passado ou no futuro e onde ele não encontra as dificuldades que enfrenta na realidade imediatamente circundante” ( 2002: p.216).

            Assim, nos poemas do são-joanense, esse choque expresso na forma de sofrimento conduz a voz lírica, continuamente, a ver-se como um condenado, preso ao passado, sempre triste e solitário, como forma de vivência da paixão. Nessa paixão intensa e sufocante que o aprisiona, reconhece:

            “Agora, que fazer se tudo está perdido!

                Se até meu coração eu sinto está partido

                E a minha alma somente a maldizer meu fado



                Sofrer resignado o meu passado triste

                Perdi o amor bem sei e no meu peito existe

                A sombra torturante deste meu passado.”

                (O Passado, p.19)
  

            Encontra-se em Adail Coelho Maia um poeta sincrético, que, para traduzir a subjetividade do sentimento,  agregou à cosmovisão romântica traços simbolistas. Em seus versos, não raro, o sofrimento por amor se apresenta como cárcere, como o foi para Cruz e Sousa, embora poucas vezes, adquira o tom de transcendência, incorpora léxico próprio do simbolismo, escolhas vocabulares em que figuram “noites vaporosas”, “arquejos”, que o levam a viver “eternamente encarcerado”, como se lê no poema “Cárcere” (p.32). Em sua melancolia, expõe o eu lírico acentuado niilismo, buscando, em alguns momentos, em elementos etéreos, a fuga para o sofrer, a renúncia à razão:

            “Ontem tudo era sonho e tudo me sorria,

                Tinha n’álma o esplendor de um astro matutino,

                A vida para mim somente parecia

                Um céu desfeito em luz, um céu puro e divino

                (...)

                Eis pois o que me resta em todo esse tormento

                Um pobre coração partido em mil pedaços,

                Dispersos no retiro atroz do esquecimento.

                (E tudo se acabou, p.37)



            Entre os momentos elevados de “Sonetos”, notabilizam-se  poemas em que, por meio de pássaros representativos do semiárido ( o vim-vim, a cauam e o cardeal), diluem em seu canto e na natureza o próprio sentir da voz poética e estabelecem relações antinomiais comuns ao romantismo. Referenda-se o que escreve Vitor Manuel de Aguiar e Silva ao analisar a estilística desse movimento:

“O romantismo não se aprende numa definição ou numa fórmula. A sua natureza é intrinsecamente contraditória, aparece constituída por atitudes e comportamentos antitéticos (...) a verdade é dialética, pois, tal como a beleza, resulta da síntese de      elementos heterogêneos antinômicos, alimenta-se de polaridades e tensões contínuas” (2007: 557).

            Assim é que, o vim-vim, símbolo de alegria, também, convertido em repulsa, contrapõe-se ao cauam triste, metáfora para as dores que guarda no peito, ainda que paradoxais, canto que apraz o eu lírico. De igual modo, o cardeal, que faz lembrar “os mistérios da dor deste rosário” e, dessa maneira, eles, os cantos inconfundíveis dos pássaros, promovem e sustentam a inquietude do sentir, validando a premissa, segundo a qual, “o romantismo valorizou as forças instintivas e arracionais, glorificou o homem natural, o seu primitivismo(...)” (2007: 558) e construiu uma arte que “demonstra muitas vezes uma forte capacidade descritiva da natureza física (2007: 558)”.


            Aos que, por ignorância ou pelas motivações da nova ordem contemporânea, que sufocou ou amorteceu a cultura do recato nas relações amorosas, servem as palavras de Vitor Manuel de Aguiar e Silva para esclarecer por que, ao integrar romantismo e simbolismo em sua poética, Adail Coelho Maia, situa-se entre os poetas que merecem dos leitores atenção:

“Se meditarmos nesta riqueza polimorfa do romantismo, nas forças desencontradas que nele atuam, na multiplicidade de orientações e soluções que ele virtualmente oferece, compreendemos as razões por que o romantismo tem dinamizado e fecundado todos            os grandes movimentos artísticos que se têm sucedido ao longo dos séculos XIX e XX, desde o realismo até o simbolismo, ao decadentismo, ao surrealismo e ao                 existencialismo” (2007: 558).

(*)Dílson Lages Monteiro é professor e literato. Ocupa a cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras.

  
Referências:

AMORIM, Gilvanni Carvalho de. Relatos da Aldeia. Teresina: Edições Pulsar, 2015.

SECCHIN, Antônio Carlos. Percursos da Poesia Brasileira: Do século XVIII ao XXI. Belo Horizonte: Autêntica Editora/ Editora UFMG, 2018

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Técnicos da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2002.

MAIA, Adail Coelho Maia. “O Lira do Sertão”. São Paulo: 1ª. Edição, 1978.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2007.

PROENÇA FILHO, Domício. Literatura e Estilos de Época. São Paulo: Ática, 1994.  c

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Nomes e prenomes exóticos, eis a questão

James Dean. Fonte: Google



Nomes e prenomes exóticos, eis a questão

Elmar Carvalho

Fui informado pela chefia do Cartório Eleitoral de que fora criada uma duplicidade de filiação por causa de um caso curioso. Duplicidade é quando um eleitor é filiado a dois partidos, o que não é permitido por lei. Em alguns casos, trata-se de pessoas diferentes, mas homônimas, mas logo se descobre a verdade através da filiação ou da data de nascimento. Porém, no caso que me foi informado, os pais tinham o mesmo nome e os dois filiados tinham nascido no mesmo dia.

Os sobrenomes eram os mesmos e os prenomes eram praticamente iguais. Eram Luiz e Luís. A mãe, no auge da empolgação materna e no afã de homenagear o santo que lhe teria feito uma espécie de milagre, batizou os gêmeos com o mesmo nome, homófonos e homógrafos, com a única diferença da troca de um z por um s. É claro que o problema será resolvido, mas foi criada uma situação embaraçosa, que poderá acarretar algum constrangimento aos envolvidos.

Contudo, tenho ouvido falar de situações mais graves, cujos nomes servem de zombaria e escárnio aos seus possuidores. Nomes como Flávio Cavalcante Rei da Televisão, Osama Bin Laden, Lady Diana devem provocar risos, ou até mesmo chacotas. Muitas vezes os pais sequer sabem pronunciar corretamente o nome do filho, quanto mais escrevê-lo. Antes de pensarem na satisfação que o exotismo e bizarrice desses nomes lhes causam, deveriam pensar nos problemas e traumas que eles poderão provocar em seu filho.

Numa das cidades em que trabalhei, ouvia falar em certo Jamim. Pensei que se tratasse, evidentemente, de Jaminho, cujo pai se chamasse James. Somente por ocasião de uma audiência, em que esse Jamim era parte, foi que descobri que ele de   fato se chamava James Dean, sendo ele naturalmente uma homenagem ao ator norte-americano. Acredito que o bisonho pai do menino Osama sequer soubesse ao certo quem era o verdadeiro Osama e a razão de sua triste e trágica celebridade.

Soube que em certa cidade do Piauí, uma mãe, por causa de uma promessa ao santo de sua devoção, deu o nome Raimunda Cândida da Conceição a cinco filhas. Criou uma verdadeira dinastia de Raimundas: a primeira, a segunda, a terceira... Não satisfeita com tantas Raimundas, batizou quatro filhos com o nome de Raimundo. Drummond, obviamente para rimar com mundo, disse que se se chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Haja tantas Raimundas e Raimundos!

Não sei por que razão, mas as pessoas de nome Raimundo parecem não gostar muito desse nome, e geralmente são chamadas de Rai ou Ray, Mundico, Mundoca, Mundinho ou simplesmente R. E as Raimundas, por causa da rima com certa parte protuberante e posterior do corpo, também são um tanto ariscas com esse nome próprio (ou impróprio?).

Todavia, há os que assimilam bem os seus nomes esquisitos e até os ostentam com glória e orgulho, como o João Bosta da anedota, que foi consultar o juiz a respeito de mudar o seu nome. O magistrado disse que a mudança, em seu caso, não só era permitida como até recomendável, e lhe perguntou sobre que nome gostaria de ter, ao que o consulente respondeu que gostaria de se chamar Pedro Bosta. Sua implicância, portanto, não era com o Bosta, mas com o João, talvez por causa da estória do João Besta.

Contudo, deixo a advertência aos pais: cuidado com o nome que irão dar a seus filhos. Lembrem-se de que quem irá usá-lo é o rebento, e é este que sofrerá as consequências de seu exotismo e excentricidade, através de risos, mofas, escárnios e zombarias. Consequentemente, é o filho que poderá amargar constrangimentos e mesmo traumas por causa de um nome próprio impróprio.  


7 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

É Natal

Fonte: Google


É Natal

José Pedro Araújo
Romancista, cronista e contista

Não há quem não sinta a alma se elevar e o espírito ganhar um sentido mais reflexivo nesse momento do ano tão importante para os cristãos, quando comemoramos o nascimento de Cristo. O Toque dos sinos, as músicas e os cânticos alusivas ao período nos trazem recordações que nos transportam até os longínquos dias da nossa meninice. Eu, por exemplo, já tive a oportunidade de relatar essa autêntica viagem ao passado lá no meu interiorzinho em que não tínhamos panetone, chocolates, uvas passas ou perus de pesando dez quilos ou mais (ou o Chester, Blesser, e até mesmo o pernil já pronto para ir ao forno). Lá, quem podia engordava o seu próprio peru, sacrificava o pobrezinho e o enchia com farofa com seus próprios miúdos para o levar ao forno da padaria.

Na minha casa comemorávamos diferente. Acorríamos à Igreja Cristã Evangélica para nos juntarmos à grande família cristã que festejava o verdadeiro sentido natalino entoando cânticos e assistindo belas performances teatrais em que o verdadeiro homenageado era incensado e louvado. Tudo sob as luzes brilhantes de uma bela árvore natalina feita a partir de um frondoso galho de pitombeira. Nada de sacrificar o peruzinho de basta plumagem e cabeça avermelhada, porém. Ou entornar litros e mais litros de vinho.

Aliás, o galináceo em seu estado selvagem era originário das regiões geladas da América do Norte, e atribuem a ele esse nome por se achar em Portugal durante o século XVI que o bípede emplumado ali consumido provinha do País sul americano. Mas a ave tal como a conhecemos hoje, foi domesticada no México, e virou um dos símbolos do natal.

Mas nem todos comemoram da mesma forma o período que para nós é tão importante. Os Islamitas árabes em sua quase totalidade), consideram Jesus apenas um dos cinco profetas que vieram para divulgar a palavra de Deus aos homens. E, apesar de respeitarem a data, não a comemoram como os cristãos.  Os Budistas também não comemoram o evento. Apenas respeitam a tradição, mas consideram Jesus apenas um ser de sabedoria elevada. Para os Judeus, conterrâneos de Cristo, até reconhecem a sua existência, mas não o cobrem da mesma santidade que nós. Lá, eles comemoram o Hanukah, a festa das luzes, e relembram as vitórias contra a opressão e a perseguição. Para os Hindus é tempo de festejar as luzes e adorar a energia divina.  Para os Xintoístas japoneses o 25 de dezembro é apenas uma festividade comercial, e, finalmente, para os Taoistas chineses, não tem qualquer significado divino. Louvemos nós ao Senhor Jesus Cristo pelo seu aniversário de nascimento!

FELIZ NATAL E UM PRÓSPERO ANO NOVO A TODAS AS NAÇÕES DA TERRA!   

Fonte do texto: Blog Folhas Avulsas

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

DALILÍADA

Fonte: Google


DALILÍADA

(poema épico inspirado na vida e na obra de Dalí)

Elmar Carvalho


           XIII

A deusa
da janela via o mar
mas eu só via as partes glúteas da deusa
que da janela via o mar.

           XIV

A vela dilacerada do veleiro esvaído
naquela pintura esvaída
era um sinal já perdido
da esperança perdida.
(Impressionismo é uma mancha diluída
 na desbotada tela da memória.)

           XV

Meu pai me olha circunspecto
do retrato que não pintei;
me olha austero
do que jamais pintarei.
(Os retratos têm pupilas,
os bustos não.)
Mas quanta bondade
nas pupilas de seu busto
que jamais esculpirão.

           XVI

Ao pé das rochas duras, quadradas,
a mulher sentada,
de carne macia, delicada,
com suas curvas e coleios,
envolta na grande solidão
de um céu duro, quadrado,
sem nuvens e da cor de chumbo,
bela e humildemente contrastava.  

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Cabeça de cera



Cabeça de cera

Pádua Marques
Romancista, contista e cronista

Pompílio se agachou e se pôs a coçar os pés que ardiam como em brasas depois de ter passado por cima de um formigueiro naquela vastidão de carnaubeiras na parte mais deserta da Ilha Grande de Santa Isabel. Um sol de rachar os miolos. E suando muito não tirou dele a ambição de olhar pra aquelas palmeiras naquele meio de dia e pensar que, se tudo desse certo conforme prometido a Gastão Carneiro, haveria de em pouco ter dado um salto e tanto na vida. Não havia nascido pra viver e um dia morrer pobre.

A mulher Nonata havia ficado em casa com os três filhos. Rosinha, a mais velha, menina de uns doze anos e já furando os bicos dos peitos, Teresa, a do meio, de dez anos e o mais novo, Gerônimo, de sete pra oito anos. Este, desde que nasceu que se tinha por muito doente. Coisa de pele. Umas feridas que davam pra coçar e tomando o corpo, só livrando mesmo a cabeça. Em tudo quanto foi médico na Parnaíba ele foi consultado, mas nenhum deu resposta do que se tratava a doença. O alívio era os três banhos por dia com raspa de casca de cajueiro, dados pela avó, dona Maria Tilim, metida a ler mãos pra adivinhar a sorte.

Havia quem dissesse que aquelas coceiras de Gerônimo eram coisa de sua mãe ter sangue ruim e que o menino tinha tudo pra depois de grande virar lobisomem. Nonata sofria muito pela pobreza, a doença do filho e com o que diziam sobre quando crescesse. Se crescesse. O marido Pompílio não era de reclamar da vida, mas era ambicioso e inquieto. Tinha na cabeça que um dia ainda haveria de sair daquele padecer com a família e até dar, se possível, escola pra os filhos que viviam correndo pra cima e pra baixo entre a casa de taipa dentro do carnaubal e a casa da outra avó, Mariana, a dona Véia, viúva de Raimundo Pereira, o Mundico da Arraia. 

Tudo gente vinda do Maranhão e muito pobre. Nos tempos de cheia das lagoas se danavam a pescar de rede ou de tarrafas e o pouco conseguido levavam pra Parnaíba, onde iria ser vendido nas ruas próximas da igreja de Nossa Senhora da Graça. Na época de trabalhar na derrubada da palha de carnaúba, até que entrava algum vintém, que ia logo pagar o fornecimento pela compra de querosene, açúcar, azeite, uma louça, algum metro de pano pra roupa de Nonata e das crianças. E nisso seu Gastão Carneiro corria a mão na caneta ou do lápis na gaveta pra saldar no caderno o que vendia fiado pra Pompílio, filho de Mariana, a dona Véia, dos Morros.

Gastão Carneiro era dono de um dos armazéns onde se vendia de um tudo na rua Grande, onde estava todo o movimento de comércio na Parnaíba naquele início de século XX. Magro, rosto fino e bigode mais ainda, idade de uns cinquenta anos mais pra cima, rapaz velho, vivia sempre com os olhos voltados pra beira do rio pondo sentido em quem vinha subindo o barranco. Bem que podia ser gente rica, vindo da Tutoia ou até mesmo de São Luiz em algum vapor, em ponto de fazer grandes compras ou fechar sociedade. Mas se contentava em dia de movimento fraco a mexer nas prateleiras anotando e alterando os preços das mercadorias.

Tinha por único empregado, o Damião, um negro lá de seus quarenta anos, sempre pronto a obedecer aos mandos do patrão ao menor sinal. Quando não havia freguês se punha a fazer contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir num papel de embrulho no final do balcão. Foi indicação do pai, Afonso Carneiro, quando lhe passou o destino e o futuro do estabelecimento. Que pegasse um negro que fosse esperto, o ensinasse a ler e a contar e que sendo bem de feição e obediente, sem vício de bebida e de engraçamento com mulheres da vida dos Tucuns ou da Coroa, colocasse no armazém pra lhe ajudar. De certo que depois de desarnado e com pouco de tempo e paciência podia passar pra o balcão.

Negociava com pó de carnaúba e entre seus fregueses estava o inglês Wallace Groover, homem de uns quarenta e poucos anos, cabelos acobreados e já ficando brancos, dentes amarelos, roupas encardidas, suado e sempre fumando um cachimbo feito de sabugo de milho. Metido a jogar galanteios e pilhérias pras mulheres. Por esses e outros hábitos não era bem quisto pelas famílias de comerciantes da rua Grande, oficiais da justiça, padres e outras autoridades. Mas Mister Groover ou seu Groover, como era mais conhecido pelo pessoal da rua e do porto Salgado, se sabia que era tido e havido nas casas de gente rica e negociantes de pó de cera de carnaúba, os ingleses e franceses.

No final da tarde, já o sol se ponto por trás dos carnaubais da Ilha Grande de Santa Isabel, vinha ele se sentar, saído da pensão Bauss, de Eponina Bauss, em alguma porta de armazém a convite de seu dono e naquele estado se punha a se pabular da vida de inglês e vez por outra até criticava os costumes da gente do Brasil e da Parnaíba. Um ou outro ia puxando a conversa. E nesse tempo em que o porto ia se acomodando e ganhando o silêncio e a escuridão da noite, Groover voltava pra pensão ou quando estava mais afoito pela bebida de conhaque, se danava no rumo dos Tucuns à procura de mulheres da vida.

Chegavam notícias vindas da Tutoia de que a cera de carnaúba estava ganhando preço na Europa e nos Estados Unidos da América. E Groover foi um dos que mais bateu palmas na rua Grande com esta notícia. Consultou Gastão Carneiro sobre como estava a produção de pó de cera na Parnaíba e quem poderia fornecer este produto sem o risco de agiotagem. Pagamento em libras esterlinas, a moeda mais alta em todo o mundo, se gabava. Falou e falou muito e bonito. Disse até que falaria em breve com o cônsul inglês sobre a possibilidade de sua majestade o rei da Inglaterra, terra onde dizia que o sol nunca se põe, comprar um pedaço da Ilha Grande de Santa Isabel!

Os embarcadiços, negros estivadores, vagabundos, bêbados e até os faltos de juízo de toda sorte vieram ouvir o inglês com aquela gabolice toda. Batiam palmas, davam gargalhadas, contavam piadas indecentes, tentavam falar alguma palavra da língua inglesa, dançavam uns com os outros. Groover agora rasgava elogios ao Brasil, sua gente, as mulheres, principalmente as negras, a aguardente, as frutas. E aquela conversa tomava o rumo direto da noite e das casas baixas e imundas do Cheira Mijo e da Coroa.
                                               
Lá no meio daquela imensa mata de carnaubeiras, Pompílio estava com a mão na cabeça e era assunto de seu ofício. Era de como iria dizer pra mulher Nonata que o dinheiro apurado com a venda da palha naquele ano mal dava pra tapar uns buracos na dívida com Gastão Carneiro, tão logo pendesse pra Parnaíba naquele meado de agosto. Olhava os imensos campos cobertos de mata-pasto e salsa subindo as dunas no rumo da Pedra do Sal, os alagados cheios de peixes ruins, os ninhos de xexéus e de periquitos tomando as carnaubeiras.

Carnaúba já não tinha mais valor de venda. Imaginava vender tudo, pouco mais de duas léguas. Tudo pra tirar umas poucas arrobas de pó de cera, o cansaço dele e dos animais puxando a carga, o pagamento de algum ajudante, a canoa no Igaraçu. Depois ter que aguentar conversa de Gastão Carneiro e de outros. Mas foi o que recebeu de Deus e presente de Deus ninguém renega. Recebeu aquela ponta de carnaubeiras do seu pai, Mundico Arraia, marido de Mariana, a dona Véia. Foi dada como herança pra iniciar a vida depois de se juntar com Nonata.

Pó de cera era tudo o que dava aquele tipo de negócio. Tinha tempo que dava dinheiro, no que dava pra apagar alguma dívida na praça da Parnaíba. A vida era assim, ordinária e sem muita graça pra pobre e ainda mais sem instrução. Soubesse ler e contar talvez ninguém lhe passasse a perna.  Chegava com a carga de pó de cera e o comerciante ficava conversando com o comprador naquela língua que ele Pompílio não tinha entendimento. O mundo era assim. Uns sabiam falar, comer na mesa, fazer discurso, se vestirem bem e melhor. Ele não. Era só pra passar vergonha porque não sabia de nada. Tinha mal o nome.

E aqueles campos todos cobertos de carnaubeiras. Que custavam tanto e tantos anos pra dar palha em condições de corte. Iam cobrindo até a beira do rio, tomando os alagados, ainda eram de onde tirava alguma coisa pra sua família ter em casa. Queria uma roupa boa, um calçado, uma faca com bainha de couro cravejado de pedras, daquelas que um dia viu e se admirou num armazém na rua Grande. Vestido pras filhas e pra Nonata e algum agrado pra Gerônimo. Esse filho que lhe causava desgosto por causa da doença que doutor nenhum na Parnaíba disse o que era.

Mas bem que podia vender. Não tudo, mas umas braças de terra e com o dinheiro apurado ir pra São Luiz, no Maranhão, correr atrás de saber que diabo era aquilo no menino. Coisa mais feia. Chegou em casa e foi direto pra camarinha. Largou a pensar e lembrou que ainda havia pó de cera, mais de dez arrobas. Foi e fez o cálculo. Dava pra tirar algum vintém. No outro dia iria de cretado na Parnaíba negociar com Gastão Carneiro aquela mercadoria. Nem tratou com a mulher. Era coisa que não queria criar encrenca dentro de casa.

Gastão Carneiro estava naquela manhã interessado em receber uns negociantes de São Luiz que vieram até Parnaíba oferecer sociedade num negócio de máquinas de costura. Pompílio chegou e tratou de chamar Damião a um canto. Ofereceu o negócio da carga de pó de cera de carnaúba. O ajudante de balcão foi tratar com seu patrão e logo mais veio dizer que a pessoa mais acertada era Wallace Groover, um inglês que morava na pensão de Eponina Bauss. Era ficar esperando até à tarde quando ele viesse ter no porto com alguns donos de armazéns. Era mais que certo. Damião falou e falou bem do inglês, assim como o conhecesse. E tanto falou que acabou impressionando Pompílio. Voltou pra Ilha Grande de Santa Isabel pronto pra organizar a carga e dentro de mais uns dois dias voltasse pra fechar negócio.

Aquele terror de sol queimando o couro da cabeça, o suor escorrendo pelo queixo de barba mal feita, fez Pompílio juntar os quatro jumentos com a carga de pó de carnaúba e atravessar a região mais deserta de Ilha Grande de Santa Isabel no rumo do porto Salgado. Damião, o negro do armazém não jurou que o inglês Groover vinha toda tarde conversar com Gastão Carneiro? E essa era a vez de chegar com a carga de pó de cera de carnaúba e oferecer negócio. Quem sabe que daquele primeiro negócio não viessem outras encomendas!

Pensava alto. Na mulher mais bem cuidada, nas meninas estudando numa escola boa na Parnaíba, um colégio de freiras, talvez. A troca da mobília de casa, uns animais pra ajudar na cata da palha, uma tarrafa nova pra o tempo da pescaria.  Pensava até de falar da doença de Gerônimo. E assim foi chegando entre veredas e várzeas no porto Salgado. Descarregou os jumentos e contratou com o pouco dinheiro que ainda tinha o serviço de uma canoa grande. Os sacos foram sendo empilhados e Pompílio junto dentro de pouco tempo estava atracando no porto Salgado.

Nem descarregou o pó de cera de carnaúba. Subiu correndo o barranco e foi dar na porta de Gastão Carneiro. Pelo que havia falado o negro Damião, o inglês Groover estava metendo a cara pra mais um final de tarde de conversa. Era a hora de a onça beber água! Ia chegar oferecendo o pó de cera e a um preço convidativo. Não tinha como dar errado. Ficou pensando as palavras com que iria se dirigir ao inglês. Damião o viu de longe e fingiu que não o conhecia. Pompílio fez um aceno. Fez outro. Nada. O negro estava se fazendo de dono do armazém, só podia ser!

O futuro caixeiro do Armazém Carneiro veio dizer meio sem jeito que ficou sabendo pela manhã, logo no abrir as portas, que Groover havia ido embora da Parnaíba assim duma hora pra outra saindo pela Tutoia em canoa até alugada. Anoiteceu e não amanheceu! E pelo que se ficou sabendo, tudo por causa de ter mexido com mulher alheia, mulher de um dono de curtume, homem muito rico e influente. Na volta pra os Morros da Mariana, quando a canoa alcançou o meio do rio Igaraçu, Pompílio puxou a faca da cintura e foi furando um a um todos os sacos. O pó da cera de carnaúba foi se espalhando na água e sumindo na correnteza.

- Bem que haviam me avisado que não confiasse em gente do estrangeiro!   

domingo, 22 de dezembro de 2019

Carro-de-boi

Fonte: Google



Carro-de-boi 

Hermes Vieira (1911 - 2000

Carro véio de boi, purque tu geme
E lamenta siguindo o teu camim?
É purque tu vai indo assim puxado,
Conduzindo esse fardo tão pesado,
Qui tu geme e lamenta tanto assim?

Carro véio de boi, neste momento,
Cuma tu qui lamenta, geme e chora,
Cunduzindo outros fardo bem pesado
Pur camins turtuoso, imbaraçado,
Tombém muitos vão indo mundo afora

Eu bem sei qui tu sofre, sem tê curpa,
Uma dô pur'o peso qui condúiz,
Mais, ti alembra qui o Fio de Maria,
Padecendo tombém tanta agunia,
Sem tê curpa, arrastou pesada crúiz.

E eu tombém,cuma tu,meu carro véio,
Arrastando e sofrendo ím meu camim,
Vou levando mil saca de amargura
Pra butá no paió da sipurtura,
Cedo ou tarde, onde ispero isto tê fim.

E  purisso, tem carma e vai siguindo
Teu camim, padecendo conformado:
Foi sofrendo, cum carma, qui Jesuis,
Adispois de cravado numa crúiz,
Pur'o mundo vem sendo festejado.