Fonte da foto e do texto: Portal Entretextos |
Amor e sofrimento em Adail Coelho Maia
(*)Dílson Lages Monteiro
Entre dezenas de obras referenciais da
literatura piauiense republicadas nos últimos anos pela Academia Piauiense de
Letras, sob atenção entusiasmada de seu
presidente Nelson Nery Costa, figura “O Lira do Sertão (Sonetos)” de Adail Coelho
Maia, poeta nascido em São João do Piauí em 1907 e falecido nessa cidade em
1962. A obra foi editada pela primeira vez postumamente em 1978 e teve boa
recepção, embora a circulação dos textos sofresse das limitações da edição
modesta de então e de outras imposições do sistema literário. Quais traços do
plano da expressão e do conteúdo imprimiram valor estético aos textos a ponto
de justificar a reedição?
“Quero morrer de amor, meu Deus,
quero morrer”. Bastariam esses versos para se afirmar que Adail Coelho Maia
(1907-1962), “O Cisne de São João do Piauí”, no dizer de Pe. José Deusdará
Rocha, traduz a essência própria do sentir dos poetas românticos. Para eles,
amor e sofrimento se confundem na materialização de um conflito em que o
desencanto da incorrespondência amorosa e do amor inatingível marca a
inutilidade da existência.
Esses traços temáticos,
característicos, por exemplo, da poesia ultrarromântica de Álvares de Azevedo,
o qual incorpora com maior exatidão, segundo Antônio Carlos Secchin, a “figura
do poeta-sofredor, imerso em devaneios e desilusões” (2018:71), são retomados,
ainda, a seu modo, pelos simbolistas. Aos românticos, só há lugar no mundo para
o sonho e para a ilusão, carregados de sofrimento e dor (leia-se tristeza e divagações),
a ponto de o amor e a morte habitarem entre os temas da predileção romântica
dessa corrente de vates. Aos simbolistas, o amor também é fonte para a evasão,
entretanto, ela se manifesta pelo sono, pelo sonho, pela viagem ou pela morte.
Amar é movimento de sensações, agitação, vibração. A dor, de igual maneira,
integra a subjetividade do poeta simbolista, revelando-se como modo de
libertação do pensamento, que encontra o refúgio nas sensações e no
transcendental, em sua atmosfera lúgubre, de vapor e névoa.
Analisando a aproximação entre
românticos e simbolistas, esclarece Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos
Literários:
“ A introversão romântica sondava
de preferência as camadas superficiais do "eu", de caráter
sentimental ou emocional. Os simbolistas voltam-se para o seu mundo interior em
busca dos estratos mais recônditos: ultrapassam o nível do consciente,
mergulham no inconsciente e atingem o "eu profundo", a zona
pré-lógica ou pré-verbal do psiquismo humano, dimensão do caos e da alogicidade
que se faz representar pelos sonhos, devaneios, visões, alucinações, lapsos de
linguagem etc.” (2002:421).
Para Alfredo Bosi,
“Ambos os movimentos exprimem o
desgosto das soluções racionalistas e mecânicas e nestas reconhecem o correlato da
burguesia industrial em ascensão, ambos recusam a limitar a arte a objeto, à
técnica de produzi-lo a seu aspecto palpável; ambos, enfim, esperam ir além do
empírico e tocar, com a sonda da poesia, um fundo comum que susteria os
fenômenos, chame-se Natureza, Absoluto, Deus ou Nada” (1987:295).
Traçando o perfil pessoal e
literário do poeta e interligando as duas figuras, o cronista São-joanense
Gilvanni de Amorim assim descreve o conterrâneo:
“Adail é lembrado pelos seus
contemporâneos mais pelo temperamento divertido, bem-humorado, do que pelas
suas poesias, que traduzem dor, tristeza e sofrimento. Por que esse paradoxo?
Porque o poeta escrevia sóbrio, diferente do homem alegre que se mostrava no
dia a dia? Incompreendido como artista, não tinha interlocutores para dialogar
consigo no meio em que vivia, e extravasou sua alma complexa, conflitante, numa
lírica repleta de agonia” (2005:120).
É a atmosfera de sofrência por amor
que perpassa quase todo o volume de 61 poemas, sendo 60 sonetos e um “soneto
duplo” intitulado “A desgraçada”. O verso que abre, por exemplo, esta
apreciação crítica se reverbera em outros de teor e significados congêneres.
Neles, a evasão ultrarromântica se desenha como única saída para a angústia do
sofrimento amoroso; morrer de amor, metonimicamente, é condição inescapável do
sentimento:
“Não me mates, por Deus, assim
entre as escolhas
Eu preciso morrer, porém, como
um devoto,
Vendo as luzes do céu, no
brilho dos teus olhos”
(“Desconfiança”, p.53)
“Quero sofrer e sinto-me feliz
Quero morrer a consciência diz
A minha vida te pertence é
tua”.
(Sofrer, p. 56)
Lembra Domício Proença Filho:
“Os escritos românticos revelam
no artista uma capacidade de criar mundos imaginários e de acreditar na
realidade deles. Do choque do eu com o mundo, o escritor romântico evade-se na
aspiração por esse outro mundo distinto, situado no passado ou no futuro e onde
ele não encontra as dificuldades que enfrenta na realidade imediatamente
circundante” ( 2002: p.216).
Assim, nos poemas do são-joanense,
esse choque expresso na forma de sofrimento conduz a voz lírica, continuamente,
a ver-se como um condenado, preso ao passado, sempre triste e solitário, como
forma de vivência da paixão. Nessa paixão intensa e sufocante que o aprisiona,
reconhece:
“Agora, que fazer se tudo está
perdido!
Se até meu coração eu sinto
está partido
E a minha alma somente a
maldizer meu fado
Sofrer resignado o meu passado
triste
Perdi o amor bem sei e no meu
peito existe
A sombra torturante deste meu
passado.”
(O Passado, p.19)
Encontra-se em Adail Coelho Maia um
poeta sincrético, que, para traduzir a subjetividade do sentimento, agregou à cosmovisão romântica traços
simbolistas. Em seus versos, não raro, o sofrimento por amor se apresenta como
cárcere, como o foi para Cruz e Sousa, embora poucas vezes, adquira o tom de
transcendência, incorpora léxico próprio do simbolismo, escolhas vocabulares em
que figuram “noites vaporosas”, “arquejos”, que o levam a viver “eternamente
encarcerado”, como se lê no poema “Cárcere” (p.32). Em sua melancolia, expõe o
eu lírico acentuado niilismo, buscando, em alguns momentos, em elementos
etéreos, a fuga para o sofrer, a renúncia à razão:
“Ontem tudo era sonho e tudo me
sorria,
Tinha n’álma o esplendor de um
astro matutino,
A vida para mim somente parecia
Um céu desfeito em luz, um céu
puro e divino
(...)
Eis pois o que me resta em todo
esse tormento
Um pobre coração partido em mil
pedaços,
Dispersos no retiro atroz do
esquecimento.
(E tudo se acabou, p.37)
Entre os momentos elevados de
“Sonetos”, notabilizam-se poemas em que,
por meio de pássaros representativos do semiárido ( o vim-vim, a cauam e o
cardeal), diluem em seu canto e na natureza o próprio sentir da voz poética e
estabelecem relações antinomiais comuns ao romantismo. Referenda-se o que
escreve Vitor Manuel de Aguiar e Silva ao analisar a estilística desse
movimento:
“O romantismo não se aprende numa
definição ou numa fórmula. A sua natureza é intrinsecamente contraditória,
aparece constituída por atitudes e comportamentos antitéticos (...) a verdade é
dialética, pois, tal como a beleza, resulta da síntese de elementos heterogêneos antinômicos,
alimenta-se de polaridades e tensões contínuas” (2007: 557).
Assim é que, o vim-vim, símbolo de
alegria, também, convertido em repulsa, contrapõe-se ao cauam triste, metáfora
para as dores que guarda no peito, ainda que paradoxais, canto que apraz o eu
lírico. De igual modo, o cardeal, que faz lembrar “os mistérios da dor deste
rosário” e, dessa maneira, eles, os cantos inconfundíveis dos pássaros,
promovem e sustentam a inquietude do sentir, validando a premissa, segundo a
qual, “o romantismo valorizou as forças instintivas e arracionais, glorificou o
homem natural, o seu primitivismo(...)” (2007: 558) e construiu uma arte que
“demonstra muitas vezes uma forte capacidade descritiva da natureza física
(2007: 558)”.
Aos que, por ignorância ou pelas
motivações da nova ordem contemporânea, que sufocou ou amorteceu a cultura do
recato nas relações amorosas, servem as palavras de Vitor Manuel de Aguiar e
Silva para esclarecer por que, ao integrar romantismo e simbolismo em sua
poética, Adail Coelho Maia, situa-se entre os poetas que merecem dos leitores
atenção:
“Se meditarmos nesta riqueza
polimorfa do romantismo, nas forças desencontradas que nele atuam, na
multiplicidade de orientações e soluções que ele virtualmente oferece,
compreendemos as razões por que o romantismo tem dinamizado e fecundado
todos os grandes movimentos
artísticos que se têm sucedido ao longo dos séculos XIX e XX, desde o realismo
até o simbolismo, ao decadentismo, ao surrealismo e ao existencialismo” (2007: 558).
(*)Dílson Lages Monteiro é
professor e literato. Ocupa a cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras.
Referências:
AMORIM, Gilvanni Carvalho de.
Relatos da Aldeia. Teresina: Edições Pulsar, 2015.
SECCHIN, Antônio Carlos.
Percursos da Poesia Brasileira: Do século XVIII ao XXI. Belo Horizonte:
Autêntica Editora/ Editora UFMG, 2018
BOSI, Alfredo. História Concisa
da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de
Termos Técnicos da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2002.
MAIA, Adail Coelho Maia. “O Lira
do Sertão”. São Paulo: 1ª. Edição, 1978.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e.
Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2007.
PROENÇA FILHO, Domício.
Literatura e Estilos de Época. São Paulo: Ática, 1994. c
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