Piauienses
Notáveis
Fonseca Neto
Da Academia Piauense de Letras
Direto ao ponto: este volume 137
da Coleção Centenário é um repertório de novidades capturadas direto de fontes
primárias para a lavra historiográfica. A chamada América Portuguesa, em
particular a regionalidade centrada no Piauí, ganham uma contribuição efetiva
para dela se ter medidas mais fundamentadas de sua formação
social-histórica.
Obra do companheiro acadêmico
Reginaldo Miranda da Silva traz, no título, bem clara, que se trata de um livro
com escrita biográfica. Uma contribuição valiosa à historiografia com objeto e
temática piauienses, mas estudo que agrega proveitos bem fundados à história da
lusitanidade expandida.
O autor inscreve logo de saída
uma distinção: figuras notáveis. Isto é, os vultos selecionados e que trazidos
para compor o volume são previamente avaliados como “notáveis”, numa escalação
valorativa que tem a ver com distinção, alguém com trajetória fora do comum.
Mas o autor também avisa em conteúdo pretextual – fácil de conferir – que a
força de seu contributo escrevente não se encontra em lampejos elogiosos que eventualmente
repontem de cada peça biográfica. Mas na sistemática locução com as fontes
formais que seleciona e insere, com o referido valor de novidade historiográfica.
E não é pequena a emoção que aflora no pesquisador diante dos apanhados que o
garimpo arquival nos oferta, com valor de novidade. Idem, quando é o caso,
outros mananciais de fontes.
No plano do texto biográfico como
espécie no gênero da escrita da História – para alguns algo problemático,
porque tenderia a aulicizar ou heroicizar seletivamente indivíduos em si –, há
uma interessante discussão no próprio campo historiográfico sobre os seus
termos, todos, porém, lembrando que a escrita da História orientada para
capturar a pessoa em si, nunca opera por completo a separação dela do seu
contexto. Somos fios que costuram o tecido social em concreção, que tem
dimensões na materialidade e na abstração constituintes das formas de
manifestação cultural; enfim, da experiência, da História.
A biografia experimenta nestas
últimas décadas um período de certa revivescência, porque, parece, nunca lhe
faltar leitores. Tem apelo quando atiça a curiosidade humana ávida de saber
mais do outro, da intimidade alheia, das artes desconhecidas normalmente
sonegadas por alguém ao conhecer social amplo. Mas o fantasioso, a tendência
hagio-panegirista, a babação, ou que seja a detração, têm cada vez mais pouca
chance, notando-se uma exigência por esforços biográficos que apresentem a vida
de alguém tal uma construção inseparável da que é, pelo comum dos viventes,
elaborada na vida social. Sim, a biografia é luz sobre o singular da
existência, singular que não obrigatoriamente seja sinônimo e expressão de
superioridade, condição dominante.
A propósito, sigo a observação de
Mary del Priore, em texto recente, no que atribui o presente e qualificado
interesse sobre biografia, a um relativo afastamento da “explicação histórica” interessado
“pelas estruturas, para centrar suas análises sobre os indivíduos, suas
paixões, constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas”. “O
indivíduo e suas ações [situando-se] em sua relação com o ambiente social ou
psicológico, sua educação, experiência profissional, pertença étnica ou
religiosa etc. O historiador [devendo] focar naquilo que os condiciona a fim de
fazer reviver um mundo perdido e longínquo”. “A biografia não era mais a de um
indivíduo isolado, mas é a história de uma época vista através de um indivíduo
ou de um grupo de indivíduos. Ele ou eles não eram mais apresentados como
heróis, na encruzilhada de fatos, mas como uma espécie de receptáculo de
correntes de pensamento e de movimentos que a narrativa de suas vidas tornava
mais palpáveis, deixando mais tangível a significação histórica geral de uma
vida individual”.
O que Miranda nos traz neste
volume é algo mais ajustado nessa forma de abordagem. Como ele próprio aponta
em seus prolegômenos – já assinalei – não quer marcar seu trabalho como
fabricante de heróis ou o mero avivamento elogioso de figuras do passado. Ele
quer avançar nessa prática escritural. Até porque não é inexpressivo o quanto
de tinta já se gastou para enlevar algumas figuras assim tidas, algo que a
historiografia local cuidou em vários títulos. E o que diferencia a presente
contribuição?
A seleção de biografáveis que
determina o repertório aqui apresentado, deu-se na perspectiva alcançável pelo
autor em direção ao chamado período “colonial”, chegando ao Oitocentos, objeto
do interesse crescente dele, mormente em face dos acervos recentemente
disponibilizados ao grande público-mundo, de arquivos portugueses, notadamente
as milhares de folhas manuscritas sobre o Piauí existentes em Portugal, e não
só, profusos estão na Europa e nos arquivos do próprio Brasil. Até na Índia,
África.
Conhecedor bastante dos textos
canonizados sobre a formação do Piauí, Miranda sabe de suas incompletudes
explicativas decorrentes, na exata medida, da falta de referentes em fontes
formais já exploradas. É habilidoso no manejo de fundos, notadamente os que são
constituídos pela vigorosa burocracia papelizada lusitana, consistente em
milhares de petições processadas em fartas autuações, tratando praticamente de
todos os assuntos correntes na vida social do Reino - aprendeu a enfrentar a leitura paleográfica no
exercício cotidiano dela. Velho reino e reinados por eles tidos, e por muitos
dito, tal um Império sem fronteiras debaixo do sol que nunca se punha. Lembro
que Miranda é advogado e sabe qual é a estrutura formal da engenharia e
dinâmica de um processo nas diversas esferas do Estado português. Registre-se
que a burocracia de governo do Portugal-Brasil setecentista, por exemplo, tem
muito a ver com as formalidades de hoje em dia.
Este Piauienses Notáveis vem preencher algumas e relevantes lacunas
sobre o conhecimento que o Piauí tem de si, relacionado aos dois primeiros
séculos de sua formação histórica. Miranda remove camadas de esquecimento sobre
pessoas e fatos que pareciam inexistentes, sobretudo porque passaram em branco por
ícones da nossa historiografia, a exemplo de Odilon Nunes, Pereira de
Alencastre, e Pereira da Costa, outros. Passaram em branco, explico, não por
opção desses pródromos fecundos da historiografia piauizeira, mas pela
circunstância de suas oficinas historiografantes não alcançarem a distante
Lisboa e Évora, por exemplo, além do Rio de Janeiro, ou mesmo a Bahia e São
Luís, sedes reinóis e eclesiásticas, cabeças e corações do Poder ordenador que
vincula parte substantiva dos documentos instituintes do Piauí.
Explicada a incorporação geral do
vale do Punaré nas estruturas colonizadoras mercantis, na agregação
cultural-histórica dos sertões do Piauí à dinâmica da América portuguesa, muito
se deixou a dizer sobre a devastação que elidiu os grupos humanos aqui viventes
antes do entradismo bandeirista e da tomada do espaço físico pela dominação
colonial. Sobretudo o que diz respeito ao primeiro século de implantação do
aparato da ordem fundando-se na titulação da terra, agora repartida entre
régulos de longe, toscos e gananciosos, vivendo na franja rala do europeísmo
expandido para além do Além Mar, isto é, para a profundeza dos sertões do
continente pós-Atlântico.
Este livro é mais que um conjunto
de registros biográficos. É revelador de informações muito relevantes para se
entender a história do Brasil a partir de acontecimentos dados no Piauí.
Veja-se a centralidade que tem aqui os episódios que enredam a fundação da
Mocha, este lugar que muito cedo se fez capital irradiadora do domínio colonial
dos adentrados sertões. Os nexos e conexos que orientaram, passando pela futura
Oeiras do Piauí, a penetração colonial a partir dos litorais norte-leste e das
imensidões semiáridas em direção aos goiazes e maciço central da América
portuguesa. E assim, também, nessa expansão para dentro, o até agora quase
desconhecido papel estratégico dos sertões de cima onde nasce o complexo
Gurgueia-Parnaíba. Sertões quase sem fim.
A historiografia é tecido que
muitos costuram, pintam e bordam. E até recortam. Aqui os pontos, repontos e
pespontos do autor reforçam a tessitura de registros que exprimem muito mais
que as narrativas reiteradas. Contudo, no meu sentir, sem exasperação contra
narrativa, adicionando copiosos aportes documentais no sentido puro do termo.
No Piauí, alcançamos elaborar um qualificado repertório interpretativo sobre
questões colocadas pelo século vinte, sem, no entanto, alcançar estudos mais
consistentemente elaborados com fontes refinadas. A distância física com os arquivos
metropolitanos, em Lisboa e arredores portugueses e europeus, significou um
empecilho aos pesquisadores. Ironia: agora que as fontes documentais estão sob
nossos olhos, no conforto de núcleos de pesquisa locais e de nossas próprias
casas, há como que um desinteresse quase que generalizado sobre os temas
atinentes à formação social piauiense em temporalidade mais recuada, repita-se,
tempo cujas interpretações apresentam mais incompletudes.
Aqui não é ocasião de se ler o
texto como se fora substituindo, por antecipação, o leitor. Este deve ter a
satisfação degustativa de suas próprias descobertas. No entanto, acrescento que
entre as novidades aqui trazidas, tem-se um quadro primoroso de exatos 100 anos
de história bem documentada sobre a atuação dos Ouvidores gerais do reino em
terras piauienses, de 1723 a 1823. Cobre, em boa medida, a lacuna deixada
inclusive pelo autor de Sua Excelência, o
Egrégio, belo título de livro que ensaia sobre o gestar e fixar a judicação
e magistratura no Pindorama piauiense. É a base do que mais tarde se chamará de
Poder Judiciário, numa dinâmica muito mais rica que hoje, pois numa estrutura
social-política em que as esferas pública e privada, tal se tem hoje, ainda não
estavam devidamente configuradas. Conhecer a vida dos Ouvidores, 17 ao todo,
quinze deles naturais da sede do Reino e formados em Coimbra, permite vislumbrar,
por exemplo, como era viver na Mocha, Oeiras depois, no primeiro século de sua
existência.
O livro é uma abalizada fonte
para o deslinde da estrutura familiar, o que resulta em conferir a seu autor o
galardão que o inclui entre os mais dedicados investigadores da história das
famílias piauienses, em chave de estudos histórico-genealógicos. Já em 2018
publicou Memória dos Ancestrais, parentes
e contraparentes: uma genealogia do sertão, com muito valor de originalidade
documental e revisionismo a respeito das estruturas parentais colonialistas do
Piauí.
Saúdo Reginaldo Miranda por esta
contribuição e sou sabedor que há muitos bons temas que ele está lapidando à
luz de boa documentação, pois depois que aprendeu a quebrar a dormência de
códices e de milhares de avulsos dos arquivos locais e internacionais...,
depois que tomou gosto por amanhar os fundos
em que se guardam e conservam o mais relevante dos sobreditos acervos, de sua
lavra sabemos que sairá contribuições valiosas. Inclusive mais volumes deste Piauienses Notáveis. Claro que Esperança
Garcia e Lourenço Barbosa, e mais mulheres, indispensáveis, estão a caminho
destas páginas cuidadosas e benvindas.
A Coleção Centenário, já um
projeto altamente exitoso de republicação de títulos raros sobre o Piauí,
agrega este título novo, de primeira mão e edição, que engradece dita Coleção e
o próprio silogeu acadêmico piauiense. Coleção, aliás, idealizada e iniciada
por Reginaldo Miranda, quando as celebrações dos 100 anos da APL eram ainda
apenas um projeto, e ele exercendo a Presidência. Coleção que a presidência
Nelson Nery Costa elevou ao patamar de mais impactante projeto editorial que se
fez no Piauí, dos mais do Brasil.
Piauienses Notáveis é um livro com 80 textos biográficos. É uma
seleção cujas determinantes foram a disponibilidade documental alcançada e não
a mera subjetivação nas escolhas de seu autor, entre milhões de piauienses
biografáveis. São biografados do sexo masculino unicamente – sinal da espécie
de sociedade daquele tempo – avultando as figuras de Ouvidores, letrados,
régulos da burocracia militar e político-administrativa, do entradismo apresador
dos aborígines, e padres; também uma oportuna textuação sobre a vida de Mandu
Ladino, e de Bruenque, agora contemplando esses homens para além da idealização
e de certa ficção costumeiras.
Aqui o leitor – e não é livro só
para especialista – verá histórias de vida, lavradas com honestidade
intelectual, que abrem, contudo, oportunas pistas para se entender ainda melhor
a formação histórica do Piauí como labor coletivo, luta e suor de sofredores,
denodo e grandeza revelados agentes sociais de outro tempo. Também aqui as
muitas quedas do Piauí, o intrincado,
em linhas vivas, incandescentes, dos nós que atam esta terra social aos
rudimentos e condicionalidades próprios do viver na periferia da latino-portugalidade.
Acadêmico Miranda, sejam ainda
mais felizes as folgas de sua profícua advocacia, dedicadas a essas incursões
benfazejas nas garras do mnemônico casal Cronos e Clio.
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