segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Piauienses Notáveis

 

Piauienses Notáveis

Fonseca Neto
Da Academia Piauense de Letras

Direto ao ponto: este volume 137 da Coleção Centenário é um repertório de novidades capturadas direto de fontes primárias para a lavra historiográfica. A chamada América Portuguesa, em particular a regionalidade centrada no Piauí, ganham uma contribuição efetiva para dela se ter medidas mais fundamentadas de sua formação social-histórica. 

Obra do companheiro acadêmico Reginaldo Miranda da Silva traz, no título, bem clara, que se trata de um livro com escrita biográfica. Uma contribuição valiosa à historiografia com objeto e temática piauienses, mas estudo que agrega proveitos bem fundados à história da lusitanidade expandida.

O autor inscreve logo de saída uma distinção: figuras notáveis. Isto é, os vultos selecionados e que trazidos para compor o volume são previamente avaliados como “notáveis”, numa escalação valorativa que tem a ver com distinção, alguém com trajetória fora do comum. Mas o autor também avisa em conteúdo pretextual – fácil de conferir – que a força de seu contributo escrevente não se encontra em lampejos elogiosos que eventualmente repontem de cada peça biográfica. Mas na sistemática locução com as fontes formais que seleciona e insere, com o referido valor de novidade historiográfica. E não é pequena a emoção que aflora no pesquisador diante dos apanhados que o garimpo arquival nos oferta, com valor de novidade. Idem, quando é o caso, outros mananciais de fontes.   

No plano do texto biográfico como espécie no gênero da escrita da História – para alguns algo problemático, porque tenderia a aulicizar ou heroicizar seletivamente indivíduos em si –, há uma interessante discussão no próprio campo historiográfico sobre os seus termos, todos, porém, lembrando que a escrita da História orientada para capturar a pessoa em si, nunca opera por completo a separação dela do seu contexto. Somos fios que costuram o tecido social em concreção, que tem dimensões na materialidade e na abstração constituintes das formas de manifestação cultural; enfim, da experiência, da História.

A biografia experimenta nestas últimas décadas um período de certa revivescência, porque, parece, nunca lhe faltar leitores. Tem apelo quando atiça a curiosidade humana ávida de saber mais do outro, da intimidade alheia, das artes desconhecidas normalmente sonegadas por alguém ao conhecer social amplo. Mas o fantasioso, a tendência hagio-panegirista, a babação, ou que seja a detração, têm cada vez mais pouca chance, notando-se uma exigência por esforços biográficos que apresentem a vida de alguém tal uma construção inseparável da que é, pelo comum dos viventes, elaborada na vida social. Sim, a biografia é luz sobre o singular da existência, singular que não obrigatoriamente seja sinônimo e expressão de superioridade, condição dominante.


A propósito, sigo a observação de Mary del Priore, em texto recente, no que atribui o presente e qualificado interesse sobre biografia, a um relativo afastamento da “explicação histórica” interessado “pelas estruturas, para centrar suas análises sobre os indivíduos, suas paixões, constrangimentos e representações que pesavam sobre suas condutas”. “O indivíduo e suas ações [situando-se] em sua relação com o ambiente social ou psicológico, sua educação, experiência profissional, pertença étnica ou religiosa etc. O historiador [devendo] focar naquilo que os condiciona a fim de fazer reviver um mundo perdido e longínquo”. “A biografia não era mais a de um indivíduo isolado, mas é a história de uma época vista através de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Ele ou eles não eram mais apresentados como heróis, na encruzilhada de fatos, mas como uma espécie de receptáculo de correntes de pensamento e de movimentos que a narrativa de suas vidas tornava mais palpáveis, deixando mais tangível a significação histórica geral de uma vida individual”.

O que Miranda nos traz neste volume é algo mais ajustado nessa forma de abordagem. Como ele próprio aponta em seus prolegômenos – já assinalei – não quer marcar seu trabalho como fabricante de heróis ou o mero avivamento elogioso de figuras do passado. Ele quer avançar nessa prática escritural. Até porque não é inexpressivo o quanto de tinta já se gastou para enlevar algumas figuras assim tidas, algo que a historiografia local cuidou em vários títulos. E o que diferencia a presente contribuição?

A seleção de biografáveis que determina o repertório aqui apresentado, deu-se na perspectiva alcançável pelo autor em direção ao chamado período “colonial”, chegando ao Oitocentos, objeto do interesse crescente dele, mormente em face dos acervos recentemente disponibilizados ao grande público-mundo, de arquivos portugueses, notadamente as milhares de folhas manuscritas sobre o Piauí existentes em Portugal, e não só, profusos estão na Europa e nos arquivos do próprio Brasil. Até na Índia, África.

Conhecedor bastante dos textos canonizados sobre a formação do Piauí, Miranda sabe de suas incompletudes explicativas decorrentes, na exata medida, da falta de referentes em fontes formais já exploradas. É habilidoso no manejo de fundos, notadamente os que são constituídos pela vigorosa burocracia papelizada lusitana, consistente em milhares de petições processadas em fartas autuações, tratando praticamente de todos os assuntos correntes na vida social do Reino -  aprendeu a enfrentar a leitura paleográfica no exercício cotidiano dela. Velho reino e reinados por eles tidos, e por muitos dito, tal um Império sem fronteiras debaixo do sol que nunca se punha. Lembro que Miranda é advogado e sabe qual é a estrutura formal da engenharia e dinâmica de um processo nas diversas esferas do Estado português. Registre-se que a burocracia de governo do Portugal-Brasil setecentista, por exemplo, tem muito a ver com as formalidades de hoje em dia.

Este Piauienses Notáveis vem preencher algumas e relevantes lacunas sobre o conhecimento que o Piauí tem de si, relacionado aos dois primeiros séculos de sua formação histórica. Miranda remove camadas de esquecimento sobre pessoas e fatos que pareciam inexistentes, sobretudo porque passaram em branco por ícones da nossa historiografia, a exemplo de Odilon Nunes, Pereira de Alencastre, e Pereira da Costa, outros. Passaram em branco, explico, não por opção desses pródromos fecundos da historiografia piauizeira, mas pela circunstância de suas oficinas historiografantes não alcançarem a distante Lisboa e Évora, por exemplo, além do Rio de Janeiro, ou mesmo a Bahia e São Luís, sedes reinóis e eclesiásticas, cabeças e corações do Poder ordenador que vincula parte substantiva dos documentos instituintes do Piauí.

Explicada a incorporação geral do vale do Punaré nas estruturas colonizadoras mercantis, na agregação cultural-histórica dos sertões do Piauí à dinâmica da América portuguesa, muito se deixou a dizer sobre a devastação que elidiu os grupos humanos aqui viventes antes do entradismo bandeirista e da tomada do espaço físico pela dominação colonial. Sobretudo o que diz respeito ao primeiro século de implantação do aparato da ordem fundando-se na titulação da terra, agora repartida entre régulos de longe, toscos e gananciosos, vivendo na franja rala do europeísmo expandido para além do Além Mar, isto é, para a profundeza dos sertões do continente pós-Atlântico.

Este livro é mais que um conjunto de registros biográficos. É revelador de informações muito relevantes para se entender a história do Brasil a partir de acontecimentos dados no Piauí. Veja-se a centralidade que tem aqui os episódios que enredam a fundação da Mocha, este lugar que muito cedo se fez capital irradiadora do domínio colonial dos adentrados sertões. Os nexos e conexos que orientaram, passando pela futura Oeiras do Piauí, a penetração colonial a partir dos litorais norte-leste e das imensidões semiáridas em direção aos goiazes e maciço central da América portuguesa. E assim, também, nessa expansão para dentro, o até agora quase desconhecido papel estratégico dos sertões de cima onde nasce o complexo Gurgueia-Parnaíba. Sertões quase sem fim.

A historiografia é tecido que muitos costuram, pintam e bordam. E até recortam. Aqui os pontos, repontos e pespontos do autor reforçam a tessitura de registros que exprimem muito mais que as narrativas reiteradas. Contudo, no meu sentir, sem exasperação contra narrativa, adicionando copiosos aportes documentais no sentido puro do termo. No Piauí, alcançamos elaborar um qualificado repertório interpretativo sobre questões colocadas pelo século vinte, sem, no entanto, alcançar estudos mais consistentemente elaborados com fontes refinadas. A distância física com os arquivos metropolitanos, em Lisboa e arredores portugueses e europeus, significou um empecilho aos pesquisadores. Ironia: agora que as fontes documentais estão sob nossos olhos, no conforto de núcleos de pesquisa locais e de nossas próprias casas, há como que um desinteresse quase que generalizado sobre os temas atinentes à formação social piauiense em temporalidade mais recuada, repita-se, tempo cujas interpretações apresentam mais incompletudes.  

Aqui não é ocasião de se ler o texto como se fora substituindo, por antecipação, o leitor. Este deve ter a satisfação degustativa de suas próprias descobertas. No entanto, acrescento que entre as novidades aqui trazidas, tem-se um quadro primoroso de exatos 100 anos de história bem documentada sobre a atuação dos Ouvidores gerais do reino em terras piauienses, de 1723 a 1823. Cobre, em boa medida, a lacuna deixada inclusive pelo autor de Sua Excelência, o Egrégio, belo título de livro que ensaia sobre o gestar e fixar a judicação e magistratura no Pindorama piauiense. É a base do que mais tarde se chamará de Poder Judiciário, numa dinâmica muito mais rica que hoje, pois numa estrutura social-política em que as esferas pública e privada, tal se tem hoje, ainda não estavam devidamente configuradas. Conhecer a vida dos Ouvidores, 17 ao todo, quinze deles naturais da sede do Reino e formados em Coimbra, permite vislumbrar, por exemplo, como era viver na Mocha, Oeiras depois, no primeiro século de sua existência.

O livro é uma abalizada fonte para o deslinde da estrutura familiar, o que resulta em conferir a seu autor o galardão que o inclui entre os mais dedicados investigadores da história das famílias piauienses, em chave de estudos histórico-genealógicos. Já em 2018 publicou Memória dos Ancestrais, parentes e contraparentes: uma genealogia do sertão, com muito valor de originalidade documental e revisionismo a respeito das estruturas parentais colonialistas do Piauí.

Saúdo Reginaldo Miranda por esta contribuição e sou sabedor que há muitos bons temas que ele está lapidando à luz de boa documentação, pois depois que aprendeu a quebrar a dormência de códices e de milhares de avulsos dos arquivos locais e internacionais..., depois que tomou gosto por amanhar os fundos em que se guardam e conservam o mais relevante dos sobreditos acervos, de sua lavra sabemos que sairá contribuições valiosas. Inclusive mais volumes deste Piauienses Notáveis. Claro que Esperança Garcia e Lourenço Barbosa, e mais mulheres, indispensáveis, estão a caminho destas páginas cuidadosas e benvindas.

A Coleção Centenário, já um projeto altamente exitoso de republicação de títulos raros sobre o Piauí, agrega este título novo, de primeira mão e edição, que engradece dita Coleção e o próprio silogeu acadêmico piauiense. Coleção, aliás, idealizada e iniciada por Reginaldo Miranda, quando as celebrações dos 100 anos da APL eram ainda apenas um projeto, e ele exercendo a Presidência. Coleção que a presidência Nelson Nery Costa elevou ao patamar de mais impactante projeto editorial que se fez no Piauí, dos mais do Brasil.

Piauienses Notáveis é um livro com 80 textos biográficos. É uma seleção cujas determinantes foram a disponibilidade documental alcançada e não a mera subjetivação nas escolhas de seu autor, entre milhões de piauienses biografáveis. São biografados do sexo masculino unicamente – sinal da espécie de sociedade daquele tempo – avultando as figuras de Ouvidores, letrados, régulos da burocracia militar e político-administrativa, do entradismo apresador dos aborígines, e padres; também uma oportuna textuação sobre a vida de Mandu Ladino, e de Bruenque, agora contemplando esses homens para além da idealização e de certa ficção costumeiras.

Aqui o leitor – e não é livro só para especialista – verá histórias de vida, lavradas com honestidade intelectual, que abrem, contudo, oportunas pistas para se entender ainda melhor a formação histórica do Piauí como labor coletivo, luta e suor de sofredores, denodo e grandeza revelados agentes sociais de outro tempo. Também aqui as muitas quedas do Piauí, o intrincado, em linhas vivas, incandescentes, dos nós que atam esta terra social aos rudimentos e condicionalidades próprios do viver na periferia da latino-portugalidade.

Acadêmico Miranda, sejam ainda mais felizes as folgas de sua profícua advocacia, dedicadas a essas incursões benfazejas nas garras do mnemônico casal Cronos e Clio.   

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