Um canto para uma imaginada Índia
Dílson Lages Monteiro
Da Academia Piauiense de Letras
Independente da razão que leva à
leitura de uma obra literária (apelo afetivo-temático, imposição
circunstancial, entretenimento etc.), somos instantaneamente capturados a nos
encontrarmos nas páginas do livro de algum modo. Alberto Manguel constatou, por
isso, que os livros são espelhos de cada leitor: refletem sua identidade;
subvertem os significados do autor. Convidados a apresentar “Um Canto para uma
Imaginada Índia”, de Rita de Cássia Amorim Andrade, pusemo-nos a perguntar o
que de significativo (ou que pelo menos imaginássemos significativo) poderíamos
examinar para chegar à essência do livro em forma e conteúdo. Folheando-o,
vimos de saída que era um texto épico, um gênero menos cultivado que os demais
e, por essa razão, acreditamos oportuno vasculhar a função do gênero para atingir
a individualidade da obra e, dessa maneira, dar à apresentação do texto uma
natureza pedagógica, refletindo nossa identidade de professor e alcançando os
sentidos originais pretendidos pela escritora.
Chamamos “poesia épica, ou poesia
heroica, ou ainda simplesmente épica (como substantivo)”, “um texto poético,
predominantemente narrativo, dedicado a fenômenos históricos, lendários ou
míticos considerados representativos duma cultura”, define Carlos Ceia em seu
Dicionário de Termos Literários esse que é um dos gêneros literários cuja
leitura demanda “estratégia discursiva que converte eventos documentáveis em
‘feitos’”. Gera-se, assim, “a imagem dum tempo heroico particular, definido
como o glorioso passado da nação e como um modelo de emulação para tempos
vindouros”.
Rita de Cássia Amorim Andrade,
escritora já senhora das palavras, autora de romances como “Pedra do Sal, um
pescador e seus amores”, “Karen: corpo e alma”, “O hortigranjeiro e a médica”,
traz agora aos leitores obra com o matiz épico. “Um canto para uma imaginada
Índia” é uma busca de definir e entender uma cultura, a multiforme cultura
indiana, a partir de seus heróis, a partir do que a torna grandiosa;
entretanto, de um modo inusitado: pela intermediação dos diálogos favorecidos
pela moderna tecnologia.
Pela natureza do gênero, a obra é
texto que requer, dadas as especificidades formais e temáticas que caracterizam
texto épico, um modo particular de leitura, sem a percepção da qual o leitor
menos habituado a textos com as particularidades que o gênero agrupa tende ao afastamento. Trata-se de leitura
exigente, muito embora a oralidade verta-se em traço recorrente, como também o
é na obra de Rita de Cássia. Por que essa leitura costuma ser, para muitos,
exigente? A leitura pede que consideremos, de imediato, a influência dos
aspectos formais na construção dos efeitos de sentidos, ainda mais por ser a
obra constituída de poemas narrativos longos.
Diz Cristina Ramalho, em estudo
de orientação sobre estratégias de leitura de textos épicos, que, se comparado
a outros gêneros literários, é “visivelmente reduzido o número de manifestações
do gênero épico que circulam na historiografia literária universal”. Segundo
ela, “embora a produção épica seja numericamente expressiva, seu trânsito pelas
culturas é restrito”. Apesar disso, na tradição literária universal, figuram
obras épicas de notável reconhecimento como A Ilíada e A Odisseia, de Homero; O
paraíso perdido, de Milton; A divina comédia, de Dante Alighiere; Decamerão, de
Giovanni Boccaccio; A Eneida, de Virgílio; Os Lusíadas, de Camões; Mensagem, de
Fernando Pessoa. Na literatura brasileira, grandes obras épicas alcançaram
sucesso entre leitores: Prosopopeia, de Bento Teixeira; Uraguai, de Basílio da
Gama; Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa; Caramuru, de Santa Rita Durão; O
caçador de esmeraldas, de Olavo Bilac; Pau Brasil, de Oswald de Andrade; Cobra
Norato, de Raul Bopp; Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima; Romanceiro da
inconfidência, de Cecília Meireles.
Na literatura piauiense, essa
manifestação é excessiva na tradição da cultura popular por meio dos folhetos
de cordel, os quais exaltam figuras mitológicas do sertão nordestino. Entre
nós, na literatura de feição erudita, Hinderburgo Dobal Teixeira cultivou a
épica. Na expressão do crítico M. Paulo Nunes, procurou Dobal “retratar em sua
poesia ‘os trabalhos e os dias’ de nossa gente, inclusive em seus momentos mais
dolorosos e sofridos, como ocorre com o seu poema épico ‘El Matador’,
focalizando um episódio bárbaro de nossa colonização: o massacre da raça
indígena, dizimada pelo colonizador. Ou ainda quando retrata, na figura de
Leonardo das Dores Castelo Branco, em seu poema épico ‘Leonardo’, de tão grande
beleza, a saga de nossas lutas na guerra da Independência”.
Embora seja numerosa a produção
épica, conforme resumidamente explicitado, a explicação para a restrita
circulação do gênero, conforme Cristina Ramalho, seria um modo de ler
ultrapassado: “(...) há uma precariedade em termos de recepção ao texto épico,
decorrente do congelamento da imagem de um leitor ideal preso, portanto, a
processos de leitura épica orientados por visões teóricas anacrônicas”. Esse
modo de ler desconsideraria as transformações pela quais o gênero épico passou
e as possibilidades de recepção crítica a produções contemporâneas. Como,
então, ler “Um canto para uma imaginada Índia?”
Para Adorno, “As epopeias desejam
relatar algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto,
algo inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome”. Na épica
de Rita de Cássia, organizada em 10 cantos, com variações em sua estrutura
formal clássica, o legado histórico do indiano, a superioridade de uma natureza
única e das cidades de patrimônio imaterial secular, o talento reconhecido de
grandes literatos, o anonimato de gente exótica, exaltada pela celebração da
visibilidade da Era Digital, imprimem no leitor, por meio do contato com amigos
distantes e ao mesmo tempo tão próximos pela força do compartilhamento de
informações e afetos, o encontro e o reencontro com o maravilhoso. A autora
acende representação que lembra Italo Calvino em suas Cidades Invisíveis,
porque cada cidade traz marcas sui generis impressas na paisagem, impressas nos
habitantes, mas marcas que servem também para todas as cidades e, ainda,
concomitantemente, para uma única cidade.
Por todo o poema, há,
intencionalmente elaboradas, descrições em excesso, a fim de apontar
características que denotem ou conotem o notável valor da cultura da Índia. A
arquitetura é um dos elementos mais focalizados, tal qual a vocação para o
trabalho e para a espiritualidade. Sobre o primeiro aspecto, por exemplo, assim
procede ao descrever a cidade industrial de Kanpur, no canto III, destacando a
antinomia entre a efervescência comercial do lugar e a paz refletida nas
relíquias arquitetônicas de um templo de estilo gótico:
“Enfim Kanpur, a estridente
cidade industrial/ Lotada de pessoas andantes e ágeis,/Pisando leve nos seus
silêncios atentos. (...) Enquanto o meu olhar tímido vagueia/ Por entre um povo
rico de viver,/Quando o relógio do meu tempo/ desperto pelos vapores suspensos
no ar/ invadem as minha narinas/ num incessante arfar, procuro um jardim/onde
posso respirar tranquilamente. (...)A nave da igreja está vazia e
silenciosa./Ao lado da casa de Deus um cercado gótico/ protege um anjo
esculpido,/com braços cruzados em sinal de paz. (...)A Índia é um país de
deuses próprios/ Mas dizem que Jesus Cristo andou/ De cá para lá nesse solo tão
antigo!/ Assim também sou eu, de igrejas e de templos/ para conhecer melhor a
natureza espiritual.” (pags. 100 e 106)
Ao longo de todos os cantos, ao
registrar particularidades de tipos e lugares, o narrador dissolve-se na
paisagem sócio-humana observada, arrastando consigo o olhar do leitor curioso,
como nos versos do parágrafo anterior, como nestes versos finais ao visitar VARANASI, a cidade sagrada: “O sol se
põe/E podemos visualizar em redor dos Barcos/O vulto de pessoas nas
águas/Curando suas dores (p.112)
Em todo o poema narrativo de “Um
canto para uma imaginada Índia”, geografia e história dialogam com heróis
indianos, a partir da invocação feita metonimicamente com a função de um
prefácio. Nela, o narrador, que se vai deixando a conhecer como um narrador
moderno que incorpora a figura de um internauta, focaliza a fusão entre o
provinciano e o moderno, como condição para abstrair a essência da Índia. Sob
esse aspecto, todo o poema evoca o ufanismo, traço composicional do gênero, que
tornam cirúrgicas as anotações de Cristina Ramalho a respeito do gênero: “É por
sua capacidade de tocar o simbólico da ação heroica e as verdades morais que
estão na estrutura de uma sociedade ou cultura, que o poeta e a poetisa épicos
se fazem porta-vozes de um epos amalgamado na sociedade ou cultura retratada”.
Nessa perspectiva, o que há de
inventividade no texto de Rita de Cássia Amorim Andrade? Ainda que se possa
tentar estabelecer um liame entre essa escritura e o momento histórico atual,
assinalado pelo escapismo das soluções políticas fáceis ou pela polêmica dos antagonismos políticos, aos
quais a literatura também se relaciona,
consciente ou inconscientemente, a voz de seu narrador imprime substância à
capacidade da globalização de pôr o homem em todos os espaços e ao mesmo tempo
no espaço pequeno da sala, do quarto ou mesmo da tela do celular.
O narrador de “Um Canto para uma
Imaginada Índia” é este narrador de todos os dias. Por isso, a cadeia da
referenciação se tece mediada por inúmeros contatos que a voz enunciadora
apresenta como amigos de redes sociais, tão reais e tão virtuais, subvertendo,
pela situação de diálogo e oralidade, a narrativa histórica, que passa a
segundo plano. Esse narrador mora no
Whatsapp, no Facebook e no Instagram. Assim se confundem narrador e leitor. Esse narrador, também leitor, paradoxalmente,
vive estórias que nunca serão as suas estórias, porque imediatamente apagadas
pela rapidez do acontecimento novo e fragmentadas sem que sequer houvesse tempo
para se processá-las. Mas seu narrador, anunciando-se como um viajante moderno,
não mais em naus físicas que levam a outros continentes em turbulentas viagens
de semanas e meses, é o da metalinguagem e o da intertextualidade. Cada
referência histórica do poema épico de Rita de Cássia está no google, esperando
por leitores que, lendo a Índia, em suas cidades e personagens, lerão o Brasil
e seus lugarejos, e descobrirão também o que nos faz tão tropicais quanto
qualquer lugar onde a esperança do futuro está na alma do povo.
Para finalizar, reproduzimos as
palavras finais da autora: “Aqui a palavra morre/ E derrama os seus rubros
glóbulos/ Por sobre o papel de uma memória/ do que não vivi”.
Fonte do texto e da foto: Portal Entretextos
Fonte do texto e da foto: Portal Entretextos
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