O macaco e
o menino
Pádua Marques
Contista, cronista e romancista
O comandante Pedro da Galiza chegou
naquele dia à tarde em casa, no distante e úmido bairro dos Tucuns e já foi
gritando na direção da cozinha, onde a mulher Eponina estava decerto próxima do
fogão a lenha. De lá ela ouviu o marido arriando os apetrechos de viagem ao
Maranhão. Dois dias entre o Brejo, os Araioses, São Bernardo e a Parnaíba,
transportando lenha pra os Moraes, no bairro do Carmo, naquele meio de maio e
com o rio cheio de perigos.
Muita chuva, muita correnteza e o
leito do Parnaíba se entupindo de carnaubeiras mortas derrubadas e oferecendo
perigo. Mas tinha que ir e trazer aquela carga toda semana. Se não fosse, ninguém
iria em seu lugar. Pedro de Galiza era um homem de boa altura, queimado de sol,
nariz chato, cabelos raros e pouco carapinhos no meio da cabeça. Estava há
muitos anos neste ramo de navegação no Parnaíba. Conhecia o rio de ponta a
ponta, quantas braças de uma margem à outra, a fundura aqui e acolá, onde estava
naquele momento o canal.
Era capaz de saber quantas
carnaubeiras tinham na beira do rio entre a Parnaíba e a Barra do Longá sem
contar duas vezes. Sua profissão era difícil, mas era a única que tinha e era
com ela que trazia alguma coisa pra ele e a mulher Eponina, uma filha de
lavadeira de roupas das casas de famílias como a de seu Pedro Machado, na rua
João Pessoa, a de doutor Mirócles e tantos outros. Eponina não era lá aquele
poço de beleza. Nunca deve ter sido bonita mesmo. Hoje estava velha, gorda, os
peitos grandes quase saltando pra fora pelo colarinho do vestido e ainda por
cima cambota.
Nunca teve filhos, mas gostava de
criar os dos outros. Criou mais de doze entre meninos e meninas, que depois de
grandes, cada qual dono de seu nariz, ganharam o mundo saindo da Parnaíba.
Alguns voltavam de vez em quando trazendo filhos e até netos pra ela conhecer. Eponina
ficava feliz, mas não cobrava, não fazia questão. Se acostumou anos e anos
aquela casa só ela e as coisas, seus objetos de cozinha, a camarinha, a janela
da frente de casa onde podia ver aqui e ali alguma vizinha de cócoras catando
piolho na filha ou algum pescador consertando sua tarrafa naquela rua de casas
cobertas de palha indo dar longe no porto dos Tucuns.
Agora tinha em casa mais um filho de
criação. Damião, de pouco mais de quatro anos, ganhou de uma comadre de
fogueira, quando esta voltou pra o Brejo dos Anapurus com o outro irmão gêmeo,
Cosme. Escurinho, triste, barrigudo, sempre com o nariz escorrendo, vestido com
um calção de brim ordinário, sempre com os pés descalços naquele chão de barro
entre a rua e a casa.
Doutor Cândido, quando Eponina passava
com ele na Santa Casa, receitava pílula contra, pés calçados, roupa limpa e que
evitasse molhado. Nunca houve quem fizesse Eponina chamar o marido pelo nome
certo, Pedro Galiza. Chamava de seu Galiza ou agora mais puxada na idade,
Galiza. Os do porto e onde ele tinha encomenda de lenha chamavam de mestre
Pedro da Galiza.
Quando não tinha nada pra fazer em
casa, pegava o menino e ia ver Galiza chegar no porto Salgado. Passava antes na
venda e comprava algumas frutas. No porto, do lado dos Tucuns, sentava num
caixote ou até uma pedra que fosse e se largava a comer melancia, manga, cajus
ou banana. E gostava de quando algum conhecido vindo do porto Salgado passava
por ele e chamava pelo nome. Sinal de que era importante pra alguém e pra muita
gente naquele fim de mundo dos Tucuns.
E o menino ali do lado olhando aquele
movimento dos estivadores na beira do rio Igaraçu, as canoas levando e trazendo
gente e coisa de comer dos Morros da Mariana, na Ilha Grande de Santa Isabel.
Damião ficava ali quieto, calado como sempre, de vez em quando admirado apontando
esta ou aquela embarcação. Outros meninos brincando, nus da cintura pra cima,
encardidos, descalços naquele pedaço de Parnaíba onde os ricos e importantes
nunca passavam.
Naquele dia Pedro trouxe um animal que
veio mudar a vida de Eponina e de Damião dentro daquela casa. Trouxe do
Maranhão, onde tinha parentes, um macaco. Foi só entrar em casa com o bicho no
ombro e a confusão começou. Não com ela, mas com o gato da casa. A mulher deu um grito de susto quando o
presente saltou por cima dela e foi parar na cozinha quase causando um prejuízo
com as panelas, vasilhas de açúcar e outros trens. Damião foi de correr pra
entre as pernas da mãe e lá ficou até que Pedro com muita paciência colocasse
ordem naquela arrumação.
Mas aos poucos o macaco foi ficando
mais amigo do gato e até cochilavam juntos depois do almoço e debaixo da mesa
da cozinha. Eponina dava pra ele comer manga, laranja, banana, goiaba, abóbora
cozida, pregado de panela, tudo. Era de dentro de casa. Damião tinha medo dele.
Nunca passou por perto que fosse. Quando Pedro voltava de viagem era a primeira
coisa de que perguntava era do Chico. Depois vinham os passarinhos lá no
alpendre, presentes de amigos de beira de rio. E esse Chico foi criando asa e só não falava
pra não fazer mandado na vizinhança. E o que tinha de sabido passou a ficar
saliente!
Um dia Eponina estava lavando umas
peças de roupa e quando se deu conta sentiu alguma coisa levantando sua saia.
Nem foi muito longe e lembrou naquele relâmpago de tempo no gato. Mas aquilo
foi ficando mais constante e a saia se levantando ainda mais já quase nas
coxas. Olhou pra trás e levou um susto. O macaco estava com saliência e aquilo
não podia ficar sem um cobro! Quando Pedro chegou naquele meio de tarde de mais
uma daquelas viagens vindo do interior do Maranhão ela perguntou de onde ele
havia tirado aquele animal.
De onde veio e quem deu o diabo
daquele macaco? Contou tudo sem tirar nem por. E o animal foi amarrado no
tronco de um pé de goiaba no quintal e lá foi ficando até se esquecerem dele
por uns dois dias. Eponina de vez em quando saía na ponta do pé ver como ele
estava. Damião sempre ao lado da mãe e lhe segurando a ponta do vestido.
Passado o tempo de castigo o macaco foi solto e veio pra dentro de casa tomando
chegada e se esfregando nas coisas da cozinha. De repente se danou a fazer
caretas pra mulher e pra o menino como se quisesse se vingar da prisão.
Pedro de Galiza ficou sabendo dessa
sua nova investida, inclusive já incomodando a vizinhança e, num dia de manhã,
numa semana de folga da carga de lenha pra os Moraes, foi até o porto Salgado e
tratou de ver se estava vindo alguém de cima do Parnaíba e que devesse voltar
logo pra o Maranhão. Já não tinha paciência com o serviço de carregador de lenha
e muito menos pra ficar sendo cuidador de um macaco! Até se aparecesse um circo
que fosse já era vantagem!
Passados uns dias Chico estava de
volta pra o Maranhão. Desta vez dentro de uma gaiola e longe de causar qualquer
brincadeira de mau gosto com alguém. Pedro levou Damião pra se despedir dele,
no convés do barco Estrela do Mearim, embarcação de um compadre seu, mas o
menino pouco deu importância. Bem que Damião podia ter se dado bem com Chico
pra que o macaco fosse seu brinquedo. Eponina ainda foi perto da gaiola e deu
duas bananas pra ele comer no caminho. Damião pra ela sua mãe, ia ganhar seu
lugar de volta naquela casa.
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