Fonte: Instituto Socioambiental/Google |
Asfalto na selva (*)
Márcio Santilli, sócio fundador
do ISA
Em uma crônica especial, o sócio
fundador do ISA Márcio Santilli conta um pouco sobre o Programa
Waimiri-Atroari, uma das mais importantes iniciativas indigenistas do país, e o
indigenista Porfírio Carvalho
Foi numa manhã de setembro de
1995 que eu tomei posse no cargo de presidente da Fundação Nacional do Índio
(Funai), numa breve cerimônia realizada no Ministério da Justiça. Ao final, o
ministro Nelson Jobim pediu que eu subisse até o seu gabinete após os
cumprimentos de praxe.
Logo que eu entrei no gabinete,
ele me disse: "Há um grupo de índios que ocupou a BR-174, na fronteira
entre o Amazonas e Roraima, e expulsou de lá o batalhão de engenharia do
Exército, que se preparava para iniciar a pavimentação do trecho em que a
rodovia atravessa uma terra Indígena. Vá até lá, se for preciso, e retire esses
índios do leito da estrada". Com efeito, os índios Waimiri-Atroari haviam
empatado a obra. Imprensa e a classe política regional faziam um auê danado,
acusando os índios de quererem impedir a redenção de Roraima, pois a pavimentação
da rodovia retiraria o estado do seu isolamento histórico em relação ao resto
do país.
Expliquei ao ministro que os
índios Waimiri-Atroari são um aguerrido povo guerreiro que sofreu um impacto
genocida com a abertura daquela estrada, ainda nos tempos de ditadura, e que
não era sem motivo que os militares tinham optado pela retirada, E que, portanto,
ele não deveria esperar que eu, ou de qualquer outro mortal, fosse retirar os
índios à força.
O ministro argumentou que a faixa
de domínio ao longo da rodovia havia sido desafetada da condição de terra
indígena pelo decreto presidencial que havia homologado a sua demarcação e que,
portanto, eles estavam ocupando uma área sobre a qual não detinham direitos
legais, não podendo o governo tolerar tal ilegalidade. Informei-o, então, que,
embora desafetado, o trecho da estrada que atravessa a terra indígena era
extenso - 125 km - e que independentemente da sua condição jurídica, a sua
pavimentação representaria, sim, impactos adicionais sobre a terra indígena,
sendo melhor que o governo se dispusesse a discutir com os índios as condições
reais da área em vez de querer lhes impor, simplesmente, a formalidade da lei.
Disse-lhe, ainda, que eu desconhecia as condições atuais do conflito e que
voltaria a conversar com ele assim que tivesse tempo para me informar
devidamente.
O primeiro telefonema que eu dei
como presidente da Funai foi para o Porfírio Carvalho, um indigenista
historicamente formado no órgão, mas que já vinha prestando serviços como
consultor à Eletronorte há alguns anos, mediando as relações entre a empresa e
os grupos indígenas afetados por empreendimentos hidrelétricos na região
amazônica. Carvalho foi o principal protagonista da construção do PWA -
Programa Waimiri-Atroari - como resultado de um convênio entre a Funai e a
Eletronorte para proteger as terras e melhorar as condições de vida dos índios,
abaladas pela implantação de vários projetos de desenvolvimento, como a
implantação da BR-174, da Hidrelétrica de Balbina e da Mina do Pitinga, onde a
mineradora Paranapanema explora cassiterita, empreendimentos que incidem em
áreas de ocupação tradicional que foram excluídas dos limites demarcados como
terra indígena.
Carvalho me explicou que a
ocupação da estrada pelos índios já vinha rolando há alguns dias e que os
militares haviam concordado em se retirar e evitar qualquer ato de força que pudesse
agravar a animosidade entre índios e trabalhadores, aguardando negociações para
resolver pacificamente o conflito. O comando do batalhão de engenharia havia
percebido uma intenção meio malandra do DNIT, que havia licitado entre
empreiteiras privadas os demais trechos da obra e reservado ao Exército apenas
o trecho em que havia conflito com os índios.
Carvalho também informou que os
Waimiri-Atroari estavam dispostos a aceitar a pavimentação caso o governo se
dispusesse a bancar a implantação e funcionamento, por 10 anos, de um novo
plano de fiscalização e vigilância daquele trecho da estrada. O PWA já
realizava a sua fiscalização, mas necessitaria de recursos adicionais para
ampliar a sua estrutura diante do previsível aumento do tráfego, do risco de acidentes
e do atropelamento de animais em consequência da pavimentação.
Com essas informações, retornei
ao ministro Jobim e defendi a posição dos índios, mostrando que a providência
de ampliar a fiscalização da área bem poderia ser solicitada pelos usuários da
estrada: "Imagine, ministro, o senhor fazendo uma viagem com a família e o
seu carro quebra em algum ponto remoto da fronteira Amazonas-Roraima. Não lhe
seria confortável saber que há uma estrutura de monitoramento permanente do
trecho para lhe garantir socorro em um tempo razoável?" Ele disse, então,
que estava convencido da pertinência da reivindicação dos índios, mas que eu
teria de convencer o governo como um todo: "Ao Ministério dos Transportes
compete a execução da obra; ao Planejamento, a disponibilização dos recursos;
ao Meio Ambiente, o licenciamento ambiental; a nós (Justiça) compete apenas a
desobstrução da via".
Ocorreu-me, então, fazer do limão
uma limonada: um caso exemplar de consulta aos índios para se implantar um
empreendimento de infraestrutura com impactos potenciais sobre o seu
território. Sugeri ao ministro organizarmos uma visita de Estado ao território
indígena para uma conversa direta com os Waimiri-Atroari sobre a obra e a sua
condicionante. Eu lideraria uma delegação com representantes dos quatro
ministérios envolvidos, à qual ele sugeriu incorporar representantes dos
governos do Amazonas e de Roraima. O ministro se dispôs a indicar o seu
representante e a solicitar formalmente a designação dos representantes dos
demais ministérios e governos. No geral, foram indicadas pessoas com
considerável grau de hierarquia funcional nos respectivos órgãos.
Informei ao PWA e aos índios que
o governo estava pronto para conversar com eles sobre a pavimentação da estrada
e sobre a proposta do plano de fiscalização, deixando-lhes bem claro que não
havia qualquer decisão de governo sobre a reivindicação dos índios, mas havia
uma disposição de negociar em alto nível e na própria terra indígena caso eles
também concordassem. Eles perguntaram - e eu expliquei - quais pessoas e com
que mandato iriam e, então, consentiram em nos receber dizendo que também
formariam uma comissão de alto nível. Datas foram acordadas.
A reunião das partes aconteceu no
Posto Indígena Nawa - Núcleo de Apoio aos Waimiri-Atroari - situado no seu
próprio território e à beira da estrada, distante uns 200 Km de Manaus. Fomos
vendo, pelo caminho, a situação das obras de pavimentação da estrada, não
faltando comentários politicamente incorretos sobre a interrupção das obras pelos
índios e sobre a proposta deles de fiscalização do trecho. O representante do
Ministério do Planejamento - um jovem de inteligência brilhante e altamente
graduado - revelava grande ansiedade em se encontrar com índios, o que faria
pela primeira vez. Ao mesmo tempo, ironizava a reivindicação deles, dizendo que
"não existe antecipação de orçamento por 10 anos".
Chegando ao limite da terra
indígena, os representantes federais ficaram impressionados com o trabalho do
PWA. Havia um prédio de apoio, veículos e pessoal operando a cancela que
controla a entrada de veículos. Os transeuntes recebiam instruções verbais
sobre a condição legal da área em que estariam entrando e sobre como deveriam
proceder em caso de emergência. Também recebiam sacos de lixo e a informação de
que não se pode jogá-lo na estrada, além de uma cartilha sobre os
Waimiri-Atroari e o seu território. Seguimos, então, até o posto indígena, onde
ficamos hospedados até a manhã seguinte, data da reunião com os índios.
Os visitantes impressionaram-se
com a estrutura simples, porém impecável, do Posto Nawa. O alojamento era
rústico, de madeira, coberto com telhas venezuelanas com isolamento térmico que
oferecem conforto no forte calor, ventilação, limpeza e alimentação caseira
saudável. Embora situado à beira da estrada, o local é bonito, florido,
agradável e todo o trecho da estrada é florestado, de modo que animais e gentes
transitam. À noite, o tráfego da estrada é interrompido e impera a sinfonia da
selva.
No jantar, o representante do
Ministério do Planejamento sentou-se ao meu lado na mesa e me perguntou muitas
coisas sobre os índios, a terra e a estrada. Perguntou, também, sobre o PWA, se
dizendo bem impressionado com o seu zelo pela cancela e pelo posto, e eu lhe
informei que o PWA desenvolve ações de vários tipos de apoio aos índios em
todas as aldeias, além da fiscalização da estrada em outros pontos, assim como
da vicinal que leva à Mina do Pitinga e dos acessos fluviais à área através da
represa de Balbina e que também passou a fazer, mediante convênio com o Ibama,
a fiscalização da Reserva Biológica do Uatumã, contígua à terra indígena, que
conserva importantes espécies endêmicas das cabeceiras do Rio Uatumã e que, do
ponto de vista dos índios, funciona como colchão protetor para uma parte do
limite da sua terra.
Depois, ele passou a falar da
reivindicação dos índios, mas já sem a ironia tecnocrática que o havia embalado
durante a viagem e com nítida preocupação quanto à impossibilidade - por ele
alegada - de antecipar recursos orçamentários para despesas de anos futuros.
Quanto a isso, eu apenas lhe disse que ele teria a oportunidade de explicar
essa impossibilidade diretamente aos índios na reunião da manhã seguinte.
Apesar do silêncio, só entrecortado por sons de sapos, insetos e aves noturnas,
o cara nem dormiu…
O dia seguinte amanheceu radiante
e, quando acordamos, a delegação dos índios já estava presente. Era composta
por jovens líderes de várias aldeias, uma geração que se viu obrigada a assumir
precocemente o comando do seu povo após a dizimação da geração dos seus país
pela guerra do contato. Eles estavam lindos: pintados, paramentados e...
armados!
A conversa aconteceu numa espécie
de quiosque, redondo, coberto de palha, que fica no jardim aos fundos do
alojamento do posto. Havia uma longa mesa de madeira dividindo o quiosque ao
meio, com um semicírculo de cadeiras de um lado e, do outro, um alongado banco
de madeira. Antes que a reunião começasse, enquanto as pessoas se apresentavam
e conversavam do lado de fora, dois índios entraram no quiosque e, com gestos
casados, fincaram duas lanças cruzadas sobre a mesa de madeira, que vibraram
vigorosamente por alguns segundos, completando o cenário.
Carvalho abriu a conversa dizendo
que o assunto era a pavimentação da estrada e a proposta de plano de
vigilância, passando, a seguir, à apresentação de cada um dos representantes
indígenas presentes. Passou-me a palavra para apresentar cada um dos visitantes
e dar boas vindas a todos em nome da Funai. O representante do Ministério dos
Transportes explicou sobre o que seria a obra e as condições da sua execução,
sem a permanência na área de operários durante a noite e também trazendo de
fora os insumos necessários, como cascalho, terra, asfalto, etc. Carvalho expôs
detalhes do plano de fiscalização. O representante do Meio Ambiente informou
que o licenciamento da obra não havia considerado a ampliação da estrutura de
fiscalização do trecho em terra indígena, mas que estava bem impressionado com
a integridade ambiental da área e que estava convencido da pertinência da
reivindicação dos índios, o que aproximaria a condição objetiva daquele trecho
da estrada à de uma estrada-parque. O representante da Justiça limitou-se a
dizer que ali estava como testemunha, para relatar ao seu ministro o andamento
da negociação e seus resultados. O de Roraima relatou a preocupação da
população do estado com o impasse e ressaltou a importância da obra. Já o
representante do Amazonas foi além, relatou telefonema recebido naquela manhã
do próprio governador, Amazonino Mendes, colocando o estado à disposição para
qualquer operação que ajudasse a viabilizar um acordo para o prosseguimento da
obra.
Só que todos estes estavam em
posição cômoda para embromar ou concordar com a reivindicação dos índios, pois
não lhes caberia pagar a conta do plano de fiscalização, de pouco mais de R$ 4
milhões em valores da época, que nem era tão salgada se considerados os 10 anos
de execução. A fala verdadeiramente esperada era a do representante do
Planejamento, o dono do cofre.
Antes, porém, eu usei novamente
da palavra para pedir um esclarecimento aos índios. Carvalho e eu sabíamos que
na língua dos Waimiri-Atroari inexiste o número 10. Existe um, dois e...
muitos. Perguntei a eles, então, porque queriam o dinheiro adiantado para os
próximos 10 anos, e não 3 ou 20. A pergunta produziu irritação e os índios
começaram a falar agitadamente entre eles, na própria língua, até que um deles
respondeu em português, em alto e bom som:
- Porque nós não confiamos em
vocês!
Por óbvio, o dono do cofre ficou
por último. Assim que lhe passei a palavra, ele jogou a toalha e nem falou em
"impossibilidade". Também se disse bem impressionado com tudo o que
viu e ouviu, que estava convencido da necessidade do plano de fiscalização e
que os recursos seriam, ali, melhor geridos do que através de qualquer órgão
público. Finalizou dizendo que, no seu retorno a Brasília, providenciaria a
solução técnica adequada para que os recursos necessários à sua implantação e à
sua operação nos próximos 10 anos chegassem rapidamente às mãos do PWA, de modo
que a obra fosse, da mesma forma, retomada e concluída. Depois eu soube que o
dinheiro passou pelo governo do Amazonas, mas chegou, com presteza, ao seu
destino. Ignoro qualquer mutreta que tenha sido feita com o dinheiro neste
caminho. Concluída a sua fala, vivamente emocionada, eu retomei a palavra:
"Carvalho, por favor, lavre a ata da reunião!"
Fica difícil descrever a cena da
lavratura da ata. Não havia, então, celulares, computadores ou coisas do
gênero. Nem mesmo uma máquina de escrever elétrica. Carvalho tirou de uma caixa
uma velha máquina Olivetti manual, objeto este que eu imagino que os escribas
atuais não imaginam. Além disso, faltava-lhe a letra "n", de modo que
o texto que ia sendo produzido ficava truncado por espaços nos lugares dos
enes. Além da via original da ata, iam sendo produzidas outras sete cópias em
papel carbono. Todos os presentes assinaram as oito vias da ata: os índios com
as suas impressões digitais e eu e o Carvalho como testemunhas. A primeira via
ficou comigo, para que eu a levasse oficialmente ao governo, por meio do
ministro da Justiça, de modo que o seu representante ficou com a última via,
quase apagada, apenas a título de registro. O PWA se incumbiu de guardar e
conservar a primeira cópia, dos índios.
Assim, chegaram a um acordo os
Waimiri-Atroari e os governos, em pouco mais de uma hora de negociação. A
natureza da reivindicação indígena, dado o apoio efetivo do PWA, simplificou
tudo, pois não se tratava de exigir que o governo fizesse isto ou aquilo, mas
que liberasse os recursos para que eles próprios fizessem o que cabia fazer, de
forma autônoma e por longo tempo. Seis anos depois, voltei à terra dos
Waimiri-Atroari para consultá-los sobre a inclusão do seu território num
projeto de corredor ecológico. O plano de fiscalização estava sendo plenamente
executado - como vem sendo até hoje - e havia se desdobrado em vários outros
projetos, com outras fontes de recursos. Pude conhecer até os resultados do
monitoramento do impacto da estrada sobre a fauna durante aqueles anos.
O PWA é o mais bem sucedido
programa oficial de ação indigenista que conheço. Melhor, inclusive, que o seu
irmão, o Programa Parakanã, também resultante de um convênio entre a
Eletronorte e a Funai. Há quem critique o PWA por manter os índios em
isolamento supostamente excessivo, distanciando-os de outros potenciais
apoiadores e do próprio movimento indígena. Mas, mais importante que tudo, é
registrar que, antes dele, os Waimiri-Atroari haviam sido reduzidos a 374
pessoas, em 1987, em consequência do desastroso contato. Trinta anos depois,
eles são agora 1.935 indivíduos, vivendo em território demarcado em expressiva
extensão e que permanece ambientalmente íntegro, distribuídos em dezenas de
aldeias e, por toda a área, falando sua língua e praticando todas as suas
atividades tradicionais e culturais, com saúde e se reproduzindo física e
culturalmente.
Certamente cabe aos
Waimiri-Atroari, com o seu heroísmo, disposição de luta e persistência, grandes
méritos no sucesso do PWA. Muitas pessoas, indigenistas e profissionais de
várias especialidades, também contribuíram decisivamente para isso. Mas todos
os envolvidos serão unânimes em reconhecer o mérito principal de Porfírio
Carvalho, a quem agradeço.
(*) Fonte do texto e da fotografia: Instituto Socioambiental
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