Escola em homenagem ao Prof. José de Lima Couto |
JOSÉ DE LIMA COUTO
Vitor de Athayde Couto
Prof. Dr. e escritor
Ler o “Romance d’a Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, fez-me lembrar meu pai, José de Lima Couto, o Professor Lima Couto, ou, simplesmente, Zezico. Não pelo conteúdo daquela obra que é referência de brasilidade, mas, ouso dizer, pela precisão do poeta Carlos Drummond de Andrade, que declarou, referindo-se ao romance e seu autor:
“Não é qualquer vida que gera obra desse calibre”.
Bem na veia! Por essa mesma razão, tomo emprestadas as palavras do poeta, e afirmo sem hesitar:
“Lima Couto não é qualquer vida”.
A sua obra? Numa só palavra: Educação... no sentido totalizante, mais completo do termo. Calibre forjado em mais de meio século dedicado ao ensino de jovens que até hoje ocupam os mais diversos postos de trabalho, em todas as regiões do Brasil, alguns até no exterior. Dedicou-se, também, à formação de professoras, cuja atividade prática já começava no estágio de aplicação, curso criado especialmente para o tirocínio docente.
Por ter atuado publicamente contra o nazi-fascismo[1], acolheu missões de cooperação aliada, principalmente no imediato pós-guerra. Fluente em inglês, compreendeu e logo aderiu às primeiras propostas do children’s garden early education, ou kinden garden, mais tarde conhecido como jardim de infância – algo que, no Brasil, só se praticava artesanalmente em algumas pequenas colônias dos Estados do Sul, sob a influência de imigrantes europeus, e, mais tarde, japoneses.
Lima Couto perseguia uma meta:
“A criança entra na escola aos cinco anos de idade, e sai formada professora, aos 17 anos”, assim resumia o ciclo completo da Educação, implantado definitivamente quando da separação física da Escola Normal Francisco Correia, que se tornou autônoma em relação ao Colégio Estadual Lima Rebelo, antigo Ginásio Parnaibano.
Em 1961, quando ouvi essa frase, eu tinha 13 anos de idade. Mas, conforme encontrei anotado no seu currículo, Lima Couto e sua equipe já tinham criado o Curso de Aplicação, desde 1950! Claro que ele não fez nada disso sozinho. Quando me refiro à equipe, destaco a sua capacidade de liderar pessoas e de incentivar o trabalho de grupo, em cooperação – uma das coisas mais difíceis de se fazer. Todavia, posso imaginar como dava gosto trabalhar ao lado de outros educadores do mesmo calibre, com o mesmo nível ético e compromisso social. Os parnaibanos conhecem essa geração de idealistas, portanto, é desnecessário citar nomes, até porque são tantos e eu vou acabar esquecendo alguns. Apenas permito-me registrar um dos nomes mais importantes, e muitas vezes esquecido, talvez por ela ser mulher, quem sabe, por ser negra. Mas asseguro que, sem ela, o modelo nunca teria sido montado. Trata-se da ilustre Professora Maria Celeste de Jesus, uma das pessoas mais cultas e bem educadas que conheci. Dona Maria Celeste, a “Dedé”, braço direito de Lima Couto, tanto no Ginásio Parnaibano, quanto na Escola Normal. Na sua escola uniclasse, a Escola “Santo Antônio”, de agradável lembrança, Dedé educou várias gerações, tendo ali completado a minha alfabetização, iniciada precocemente com ajuda de minha mãe.
Voltando no tempo, imagino-me uma criança que começa a ler fora de hora... Como qualquer criança, quer ler tudo que encontra pela frente. Certa vez, eu estava na Farmácia Iracema, comecei a ler tudo que via e perguntava a meu pai, bem alto, para que ele pudesse ouvir:
“Papai, o que é Modess?” Coitado do professor! Da minha pequenez, deu para perceber esse raro momento em que ele ficou sem jeito, diante do numeroso grupo de fregueses. Dava pena ouvi-lo falar baixinho, procurando desviar a minha atenção, mas eu atacava novamente, e mais alto ainda:
“E pra que serve Água Inglesa, Saúde da Mulher...?”
Assim, percebe-se logo que Dedé era uma peça fundamental na educação das meninas, futuras normalistas-professoras, futuras mães e mestras. Isso porque meninas ficam menstruadas, apaixonam-se, e namoram – desde que não fiquem de farda pelos bancos das praças Santo Antônio e da Graça. Ainda bem que existia Dedé para orientar aquelas meninas misteriosas. Desde o curso ginasial, elas viviam acoitadas por trás de um muro alto que separava a nossa área de recreação. Terminadas as aulas:
“Direto para casa”, Dedé costumava recomendar, com elegância.
Candinho, um aluno muito moleque, retrucou:
“Fessora, isso é impossível!”
“E por quê, posso saber?”
“Porque... porque preu chegar em casa, não posso ir direto, tem que drobá beco”.
Nunca esqueci a infinita paciência de Dedé. Senti que, naquele momento, ela teve vontade de reativar a velha palmatória pendurada na parede, mas era apenas uma peça de museu. Em vez de palmadas, ela sorriu e começou a conjugar, tão escorreitamente quanto exigia o momento, o verbo dobrar, como se dobrou a sala inteira, diante de tanta altivez. Pacificamente, Dedé pairava, como pairam os espíritos superiores. Bastava um olhar e... pronto! Mas não era qualquer olhar. Tratava-se de um olhar de onde emanava uma energia cuja fonte era a sua prática de vida, a sua ética.
Foi essa repetida prática didática que forjou o conceito de Educação que Lima Couto repetia sempre:
“Educar é saber até onde vai o limite da paciência”.
Paciência... paz e ciência, afinal, ninguém é santo. Nem Lima Couto, graças a Deus. Como todo mundo, ele também perdia a paciência, mas só eventualmente. O perigo está em fazer da impaciência uma prática didática cotidiana.
No Ginásio Parnaibano encontrei professores que praticavam impaciência em tempo integral. Raríssimos, ainda bem. Eram os tais “explicadores” a que meu pai sempre se referia. Ele fazia questão de distinguir o explicador do educador, este, mais próximo da noção de Professor (com pê maiúsculo), passagem obrigatória dos seus discursos cheios de civismo:
“O Professor, quando professora, perde a sua individualidade. Não é ele quem fala, é a Pátria.”
Voltando às meninas, o fato é que algumas até ficavam grávidas. “Fugiam”, como se dizia na época, e eram praticamente obrigadas a abandonar os estudos para casar e constituir família. Todavia, esses casos precoces eram muito raros, graças à sólida formação que Dedé conseguia passar para aquele bando de adolescentes, hormônios à flor da pele, espinhas idem, vindas de tudo quanto era lugar do Estado do Piauí e de outros Estados vizinhos.
Para que esse modelo funcionasse em um único campus, outro curso ginasial teve de ser criado, completando o ciclo da Escola Normal Francisco Correia:
Jardim de infância > primário > ginasial > normal.
Dos cinco aos 17 anos! Era uma verdadeira “linha de montagem”, de tipo fordista, que acabava refletindo a admiração de Lima Couto pelo Henry:
“Ford dizia que os melhores operários para contar parafusos são os deficientes visuais”, porque prestam mais atenção, completava, comentando com mais detalhes as leituras que fazia diretamente de documentos estratégicos, todos em língua inglesa. É que o seu posto de encarregado da Defesa Pacífica Antiaérea dava-lhe o direito de receber, diretamente dos países aliados, particularmente Estados Unidos e Inglaterra, revistas com instruções que visavam à organização da defesa civil. Para o público brasileiro e hispano-americano, havia revistas escritas em português e espanhol. Ainda menino recém-alfabetizado, alcancei e cheguei a folhear vários números da famosa revista Em Guarda, destinada a informar os povos da América sobre os programas de defesa nacional e continental. Impressionavam-me as fotografias dos materiais de guerra, e, principalmente, dos incontáveis pára-quedistas que mais pareciam pontinhos no céu.
As revistas ensinavam como escolher abrigos antiaéreos seguros, como fazer suprimento de água e comida, dentre outras providências. Ao soar o alarme, deve-se desligar imediatamente a energia elétrica da usina, em caso de ataque aéreo noturno – é que, nas cidades, o clarão permanece durante algum tempo, mesmo depois de apagadas as luzes. Em Parnaíba havia muitas casas sólidas, com porões, algumas delas já mapeadas, e seus proprietários já estavam cientes quanto aos procedimentos a serem adotados. Os maiores porões localizavam-se em prédios públicos, particularmente estabelecimentos de ensino, a exemplo do Ginásio Parnaibano – principal local de treinamento dos grupos de apoio que eram constituídos, na maioria, por estudantes. Depois vim saber que foi a pressão dos estudantes brasileiros que levou Getúlio Vargas a se afastar do eixo e a ter coragem de aderir à luta pela liberdade, ao lado dos países aliados. Em Parnaíba, os estudantes chegaram a apedrejar o Vice-Consulado alemão. Essas palavras “eixo” e “aliados” sempre fizeram parte do meu vocabulário de menino. O velho e potente rádio Zenith que, durante a guerra, ficava eternamente ligado, prosseguiu ativo durante os anos dourados da minha infância. As notícias da reconstrução do pós-guerra eram entremeadas por marchas belíssimas, compostas por John Philip Sousa, um americano filho de português. Ainda bem que era tudo instrumental, sem aquelas letras horríveis de hinos que incitam à matança, como o hino da França (gosto da Marselhesa, desde que sem letra). Até hoje encantam-me os clássicos instrumentais de Sousa, como Stars and Stripes Forever, e o Hino da Marinha.
Dizem que o torpedeamento de navios na costa brasileira foi fundamental para que o nosso País declarasse guerra ao eixo. Não se sabe direito de onde vieram esses torpedos, mas um tal Guggenberger, comandante de submarino alemão, andou afundando vários navios mercantes brasileiros, entre eles, o “Tutoya”, provavelmente no litoral paulista, nas proximidades do porto de Santos. Tutoya era também como se chamava um porto muito ativo, próximo a Parnaíba; daí, o imaginário encarregou-se de criar lendas urbanas, até hoje não confirmadas, de que o “Tutoya” teria naufragado perto da praia da Pedra do Sal, e que, logo em seguida, um piloto parnaibano encarregou-se de bombardear o submarino do Guggenberger. Encontrei registros indicando que o submarino teria sido destruído, sim, mas por um piloto americano, de nome Whitcomb, no litoral Sul do Brasil.
Bastante honrado e ainda profundamente emocionado com o convite formulado pelos fundadores do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Parnaíba, tremo só de pensar na responsabilidade de elaborar uma monografia que possa registrar minimamente uma vida tão rica de múltiplas determinações. Em outras palavras, uma vida-não-qualquer. Logo eu, que passo a vida a orientar monografias, dissertações e teses de pós-graduação acadêmica, “amarelei”, como se costuma dizer.
Sem saber por onde começar, apelo para o método, e, com ele, para o caminho mais fácil: começar do início. De onde veio Lima Couto? Bem no espírito do nosso Instituto, começo pela química: sangue português, gaúcho, e, principalmente, maranhense, do Brejo, antigo aldeamento dos índios Anapurus. Assim resume-se a sua despretensiosa genealogia que tem, no topo, simples comerciantes de interior.
No início dos anos 50, eu viajava, de avião, com apenas cinco anos de idade. Para os meus olhos de menino curioso que brigava por uma janela no DC-3 da Cruzeiro, o Brejo era um campo de pouso, onde o sólido “jipe voador” testado na guerra fazia uma escala, indo para Teresina. Descíamos até a modesta estação de passageiros onde meus pais compravam doce de bacuri, em calda. O doce, que era artesanal, vinha acondicionado numa lata reaproveitada de leite em pó, esterilizada na fervura, cuja tampa era lacrada com solda. Meu pai gostava tanto do Brejo que dizia ser aquele o melhor doce do mundo. Sim, ele tinha muito boas lembranças de lá, lembranças de uma infância cheia de momentos felizes alternados com puxões de orelha, quando ele implorava ao meu avô, enquanto era literalmente arrastado até sua casa:
“Papai, agora puxe a outra orelha que é pra uma não ficar maior do que a outra!”
Eu não conheci meu avô, ele morreu exatos três anos antes do meu nascimento, no mesmo dia e mês. Por conta disso, meu aniversário quase nunca era festejado. Mas ouvi falar que o “vovô Couto” era comerciante, pai de trinta filhos nascidos de dois casamentos (dez mais vinte). Lima Couto era um dos filhos mais jovens, o penúltimo, talvez. De tão grande que era a casa do vovô Couto, tornou-se um colégio. Dizem que tem lá, no Brejo, uma praça com o nome dele, numa placa onde se lê “Praça Coronel Couto”.
Conheci minha avó, Joanna Angélica, com quem ainda convivi por uns dez anos. Apesar da catarata bastante avançada, “vovó Joaninha” percebia bem os netos, contava histórias, cantava com muita alegria e andava sempre perfumada. Eram perfumes fortíssimos, que naquele tempo ainda não me incomodavam. Mesmo sem gostar de perfumes fortes, sinto tanta saudade, uma vontade de ver tudo de novo, sentir novamente os extratos, ganhar balas, mariolas e alfenins – que ela chamava de “puxa” – era puro açúcar, e eu, pura saúde, pouco ligava para essas coisas. Quem sabe, eu voltaria a ouvir “Os Lusíadas” e outros clássicos, que ela recitava decoração[2]. Ora, se ela era capaz de memorizar aquele gigantesco épico, senti-me encorajado a encarar os quarenta versos de Olavo Bilac, que recitei, de cor, no dia do seu aniversário:
“A avó que tem oitenta anos...”, que meu pai cuidou logo de ajustar para noventa, tal era a sua idade celebrada naquele dia, embaixo de um enorme puçazeiro que existia no quintal da casa de tia Noquinha.
Lima Couto era muito comunicativo. Além da habitual simpatia, revelava uma rara capacidade de conversar através de gestos, atitudes, desenhos, e até em várias línguas estrangeiras, particularmente o inglês. Certa vez, um americano de origem judaica comentou com ele, no balcão do café de algum aeroporto:
“Se eu pudesse reunir e vender todo o açúcar que os brasileiros deixam no fundo da xícara de café, eu seria o homem mais rico do mundo”.
Embora seja mais conhecido como educador, diretor de estabelecimentos de ensino e pioneiro na criação de novos cursos[3], Lima Couto era um homem pluriativo. Na adolescência, foi garçom, em São Luís, quando precisou custear os próprios estudos. Em Aracaju, enquanto estudava na Escola Técnica de Comércio “Conselheiro Orlando”, trabalhou com um tio, como despachante de navios. Essa atividade rendeu-lhe o aprendizado de línguas estrangeiras, com facilidade. Autodidata, ainda estudante, já dava aulas particulares de Inglês em Aracaju.
Em 1929, pegou um “Ita” e foi visitar a família, no Brejo. Não podendo regressar a Aracaju, devido às perturbações políticas de 1930, quando foi suspensa a navegação de cabotagem, ficou retido em Parnaíba. Enquanto aguardava o desenrolar dos acontecimentos, abriu o “Café Globo”, no centro da cidade, e incentivou sua irmã, a tia Noquinha, a fazer pastéis que passaram a ser vendidos no café. Esses pastéis ficaram tão famosos que podiam ser encontrados até nos bailes do Cassino, acompanhados do guaraná “Globo” – e, também, “Soberano”, para quem tem boa memória.
Nas horas vagas, Lima Couto dava aulas particulares de Inglês, quando teve, como aluno, ninguém menos do que o Dr. Raul Bacellar. Foi quando lhe chegaram dois convites: um, para abrir um colégio no Mato Grosso, em sociedade com dois irmãos que moravam em Campo Grande, onde se encontravam bem situados nas suas fazendas de gado e casas de comércio; outro convite veio da parte do Professor Lima Rebelo, para ensinar Inglês no Ginásio Parnaibano. Quando ele já estava quase decidido a viajar para Campo Grande[4], conheceu Dalva, com quem se casou oito anos depois. Pode-se dizer que, em 1930, Lima Couto experimentou duas revoluções que o retiveram em Parnaíba: a Revolução de 30, e o fato de ter conhecido minha mãe, que revolucionou o seu coração logo à primeira vista.
A sua segunda experiência no comércio foi a abertura da livraria “A Escolar”, que tinha como slogan: “a casa pequena que faz grande benefício”. Leia-se: benefício aos estudantes, que passaram a ter onde comprar seus livros e outros materiais escolares. No início das aulas, ele organizava kits escolares que eram presenteados, em segredo, para alunos reconhecidamente carentes, mediante o compromisso de estudarem com seriedade. Caridade cristã? Idealismo? Nunca se saberá. Aquele “olho no olho”, sempre na presença dos pais, parece ter funcionado. Benefício público.
Como merecida homenagem, a cidade deu seu nome a um centro de ensino de línguas estrangeiras, pioneiro na política pública conhecida como “inclusão digital” – para que os jovens também aprendessem informática. Lembro que fui, com minha mãezinha, já idosa, assistir à inauguração daquele estabelecimento. Daqui de longe, onde moro, soube, com muita tristeza, que o centro foi fechado... Tomara que isso não seja verdade.
“Quem tem um ideal, vive dele” era sua frase predileta. Lima Couto também foi um educador de gerações. “Já tenho alunos que são netos de meus ex-alunos”, gostava de lembrar, bem-humorado. Ele sempre lutou pelo ensino público, e pela socialização da educação como prática democrática. Nunca fez dela um negócio lucrativo, no sentido pecuniário do termo. Ao contrário, foi precursor do que hoje se define como “inclusão social”, ao conseguir, junto a ex-alunos que tiveram oportunidade de assumir cargos públicos, a estadualização simultânea do ginásio, científico e do curso normal. O ensino gratuito somava-se aos materiais escolares de boa qualidade, conseguidos junto à Campanha Nacional de Material Escolar, do Ministério da Educação. Lápis, borrachas, réguas, cadernos, livros, Atlas histórico e geográfico, dicionários de português, inglês, francês, latim, e belíssimas coleções de Ciências eram vendidos por um preço apenas simbólico – nunca foram distribuídos “de graça”. Ele mesmo encarregava-se de entregar os materiais, com recomendações para pais e alunos, olhando cada um, bem nos olhos:
“Estude e cuide bem dos livros, eles vão servir para os seus irmãos!”
Parece que, hoje em dia, por muito menos serviço prestado e nenhum carisma, tem gente construindo outras “linhas de montagem”, mas em seu próprio benefício, seja nas escolas, nas igrejas ou na política partidária dos poderezinhos locais e efêmeros. Benefício privado.
Com as economias que minha mãe fazia, foi possível enviar quatro dos cinco filhos para “estudar fora”, como se dizia na época. Felizmente, meu irmão mais novo já pôde estudar em Parnaíba, na Faculdade de Administração, que Lima Couto ajudou a criar, sob a liderança de Cândido Athayde e Lauro Correia. As famílias parnaibanas sabiam muito bem o quanto custava ter um filho estudando fora, mas até esse problema já estava superado, graças ao trabalho daqueles idealistas. Com o ensino superior público, ir à Universidade deixou de ser um privilégio dos ricos e das camadas médias da sociedade.
Dentre outras atividades, Lima Couto praticava esportes, com destaque para corridas, remo e natação, bem como ginástica sueca, muito em voga na década de 30. Nunca bebeu, nunca fumou, nunca quis comprar automóvel – principal objeto de desejo no imediato pós-guerra – preferia sempre caminhar, caminhar... Na juventude, participou de competições de corrida e natação que ele mesmo organizava com seus sobrinhos e outros amigos. Além de atleta, professor de ginástica e fotógrafo amador premiado, ele foi jornalista profissional, de carteira, e tinha, como confrades, ninguém menos do que Bembém, Fonseca Mendes, e Moacyr Cunha.
Lima Couto talvez tenha sido, na sua época, um dos raríssimos tradutores juramentados, cadastrados na Junta Comercial. Parnaíba chegou a contar com vice-consulados, consulados honorários ou câmaras de comércio de vários países. Ele era encarregado de traduzir documentos de firmas comerciais, além de notas fiscais que acompanhavam mercadorias vindas do exterior. No entanto, o trabalho do tradutor não se restringiu a frios documentos comerciais. O seu entusiasmo maior concentrava-se na difícil arte de traduzir poemas originalmente escritos em língua inglesa, a exemplo do “Salmo da Vida” The Psalm of Life, de Henry Wadsworth Longfellow, e “O Arco-íris” The Rainbow, de William Wordsworth, este último, dedicado às crianças que ele tanto amava. Pluriativo incurável, sempre arranjava um tempinho para ser o melhor pai do mundo.
[1] O que lhe rendeu muitas oposições, e, com elas, tantas dificuldades que ele sempre soube superar.
[2] Decoração, decorado, de cor e salteado – assim era a sua vasta memória, intensificada pela cegueira. Ela já não podia ler nos livros, só na saudade, essa incrível “asa de dor do pensamento”.
[3] A criação do primeiro curso superior, de Administração, que deu origem ao atual campus parnaibano, da Universidade Federal do Piauí, contou com sua fundamental participação.
[4] A carta-convite, assinada por Almir de Lima Couto, ainda existe, guardada no seu gabinete de trabalho.
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