Fonte: Portal Costa Norte |
ARCA DE NOÉ I
Vitor de Athayde Couto
Cronista e ensaísta
– Eu vim da Bahia contar… –
cantava o mico-leão-da-cara-dourada-da-mata-atlântica.
A assembleia dos bichos da
Amazônia permanecia em silêncio. Mais atrás, os barés infiltrados filmavam o
mico-leão, por determinação do Ministério do Desmatamento. O silêncio só foi
quebrado quando Ching, um chimpanzé manauara, perguntou:
– Ô parente, tu que é meu
primata, veio pra cá anunciar o quê? Quem te mandou de tão longe? Quem te
pagou? Tu é anjo? Trouxe banana? Cocada preta?
Demonstrando seriedade e
preocupação, o mico parou de cantar e anunciou:
– Quem me mandou aqui foi Mãe
Divina de Oxóssi dos Ilhéus. Ela recebeu mensagem do orixá caçador, e de Ya-cy,
protetora das plantas. O fim da Amazônia se aproxima. Bolas de fogo provocarão
uma sucessão de incêndios incontroláveis que podem atingir até o Pantanal. Tá
escrito no Apocalipse: quando a terça parte da floresta estiver queimando, o
calor será tão forte que nenhum ser vivo será capaz de suportar. A roça de Mãe
Divina já foi invadida, a mando dos zebuzeiros. Eles roubaram e drogaram o
rebanho. O gado foi confinado nos templos para ser vacinado contra todas as
vacinas. A matriz africana periga ser exterminada pela filial americana.
– E agora? E agora?!!! – gritaram
todos.
– Muita paz. Serenidade.
Confiança. Mãe Divina conhece e confia no irmão Ching. Ela mandou a gente se
unir a ele no Hospício de São Boaventura.
– No hospício? – perguntou a
assembleia, com surpresa.
– Sim. Lá, a Marinha Imperial
instalou um arsenal, com suítes confortáveis em frente à praia da baía, e sinal
de wifi. Só para os oficiais e suas famílias. Prontos para a guerra.
– Bah! Que guerra, tchê? –
perguntou o ratão do banhado, descendente de farroupilhas.
– Ora… aquela guerra… contra o…
o…
– Antônio Conselheiro?
– Não… não… a outra…
– Do Paraguai?
– Sim, isso mesmo! Obrigado,
ratão. Já não me lembrava. Vi isso no curso fundamental.
– Iaí? Vamos ter que invadir?
– Não precisa, os oficiais vão
fugir primeiro, abandonar tudo. Eles sabem que não vão conseguir controlar o
grande incêndio de outubro. Nós vamos só ocupar.
– E depois? Podemos morrer
queimados dentro do hospício e…
– Não, não é bem assim. Confiem na
Natureza. Isso é só briga de santo. Bilhões de mosquitos já se dirigem à
capital econômica do império. Faz um século, o hospício virou Arsenal da
Marinha. Agora, vai ser a nossa oficina. Mãe Divina mandou construir uma arca
bem grande que flutuará no rio largo durante 40 dias e 40 noites. Sobre as
águas, longe das margens, todos que embarcarem estarão a salvo do incêndio.
Levem redes, iscas, anzóis e abasteçam os porões com toda a mandioca
desidratada que puderem carregar. Quando a maré baixa, a água do rio fica doce.
Levem cabaças, pesos e cordas de cipó para puxar água. Ao fim dos 40 dias,
esperem mais 150, até subirem as águas de março, que apagarão os “raios de
abril”, e outras “causas naturais”, que “explicam” os focos de incêndio,
segundo o serviço de “inteligência” (sic) do governo.
Os barés protestaram:
– Não vamos cooperar porque agora
não há mais o que Temer – disseram.
Sempre se achando, os barés
acreditam que, no Arsenal da Marinha, os oficiais guardam um grande estoque de
glifosato e arminhas que protegerão os humanos do grande incêndio de outubro
que vem por aí. Sem mais diálogo, abandonaram a assembleia.
(Continua)
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