DIÁRIO
[A fuga dos jesuítas – do Brejo de Santo Inácio a Pedra do Sal]
Elmar Carvalho
04/12/2020
Após uma demorada e saborosa conversa telefônica com o amigo
Homero Castelo Branco, sobre Santo Inácio do Piauí e sobre o colossal patrimônio
da Companhia de Jesus no Piauí, lhe anunciei que irei escrever uma espécie de
conto histórico diferente, em que mesclaria fatos da história, estórias da
tradição, lendas, relatos da história oral, e enredos criados pela minha
imaginação.
Após isso, fui buscar em minha biblioteca a monumental Obra Reunida,
de Pe. Cláudio Melo, de que tive a honra de ser o prefaciador. O livro tem 858
páginas e foi publicado pela Academia Piauiense de Letras, em 2019, integrando
a Coleção Centenário. Como o meu conto se referia ao patrimônio da Companhia de
Jesus e à suposta ou verdadeira fuga de jesuítas do Piauí, utilizei o seu livro
Fé e Civilização, capítulo XIV – Os Jesuítas no Piauí.
Mas paremos de encompridar conversa e passemos direto ao
conto, que segue abaixo.
A fuga dos jesuítas – do Brejo de Santo Inácio a Pedra do Sal (*)
O malfeito tem que
ser bem-feito.
Alcides do Rego Lages
O último coronel de
Barras
I
No cimo de um morro, sobranceiro a todo o vale em derredor, por onde corriam o pequeno regato, nascido de um olho-d’água perene, que havia perto, e o Canindé, mais além, ficava a sede da Inspeção do Brejo de Santo Inácio. O cume do outeiro era plano e formava uma espécie de mirante de onde se contemplavam grandes faixas de terras, pertencentes às sesmarias e fazendas, que a Companhia de Jesus havia herdado de Domingos Afonso Mafrense, falecido em 20 de agosto de 1711.
Ali estavam a casa dos padres e a pequena ermida, sob a
invocação de Santo Inácio de Loiola, além de poucas e rústicas casas de taipa,
em que moravam escravos e uns poucos ajudantes dos jesuítas. Perto, a cerca de
trezentos metros, na verdejante várzea, pontilhada de soberbas palmeiras,
sobretudo buritis, ficava o chamado banheiro dos padres, feito de pedras, em
forma de caracol, que dava acesso ao córrego e lhes resguardava a intimidade.
A companhia enfrentara um processo de inventário, ao longo de
cinco anos, em que os bastardos e supostos bastardos de Domingos Afonso
Mafrense questionaram na Justiça os seus alegados direitos. Somente em 1730, a
Companhia dos Jesuítas teve a plena posse de todas as fazendas e retiros em
território piauiense. O ouvidor José Marques da Fonseca chegara a considerar
devolutas essas terras jesuíticas.
No período de 1712 a 1718 os indígenas que percorriam esse
descomunal latifúndio, nas palavras de Pe. Cláudio Melo, “Só nas fazendas Santo
Antônio e Cachoeira (...) mataram ‘a metade das éguas, e dos gados não se
averiguou a conta’”. As fazendas, para melhor cumprimento das disposições
testamentárias, haviam sido divididas em três grupos denominados Capelas, que
depois passaram a ser chamadas de Inspeções de Nazaré, Brejo de Santo Inácio e Canindé.
Conquanto os jesuítas no Piauí não tenham estabelecido
nenhuma paróquia, colégio ou missão, ou seja, não tenham tido função
essencialmente sacerdotal ou de evangelização, uma vez que a sua preocupação
precípua era a conservação e a administração da grande herança de terras e
reses, no entanto, ainda me louvando em Pe. Cláudio Melo, cuidaram da formação
espiritual, moral e religiosa de seus quase duzentos escravos, de seus
vaqueiros e vizinhos, bem como construíram as capelas das três residências.
Segundo esse notável historiador, “Por falta de sacerdotes não puderam aceitar
o convite que lhes fez o Vigário Pe. Tomé de Carvalho para fundarem um Hospício
(educandário) em Mocha”.
Ainda no ano de 1758 começaram a se ouvir rumores de que o
poderoso ministro Marquês de Pombal estaria tramando para confiscar a fabulosa
riqueza da Companhia de Jesus na colônia, e dessa forma tirar a metrópole da
grande crise econômica que lhe assolava. Por fim, mais precisamente em fins de
maio de 1759, chegou à Bahia a notícia de que o rei decretara a expulsão dos
jesuítas do Brasil e de que seus bens seriam confiscados em prol da fazenda
real.
O superior da Companhia na Bahia logo determinou que os
jesuítas do Piauí fossem informados dessas disposições de El-Rei.
Antes mesmo de o Piauí se tornar capitania autônoma, o
ouvidor da Vila de Mocha, José Luís Duarte Freire, deixando para segundo plano
a sua atribuição principal de aplicar a Justiça, iniciou o processo de
levantamento do patrimônio da Companhia, para lhe executar o sequestro. Esse
patrimônio foi o maior latifúndio da História do Piauí, constituído por 277
léguas de sesmaria ou 12.000 km², mais de 32.000 cabeças de gado bovino, 1.600
cavalos e quase 200 escravos.
Quando, em 20 de setembro de 1759, tomou posse o primeiro
governador da Capitania do Piauí, que certamente teria como uma de suas
principais medidas expulsar e confiscar os bens da Companhia, os jesuítas
estabelecidos nas terras que foram de Mafrense resolveram deliberar sobre o que
deveriam fazer.
Os padres Francisco Sampaio, João de Sampaio, Manuel Cardoso
e José de Figueiredo e o Irmão coadjutor Jacinto Fernandes, considerado
excelente curraleiro, resolveram ficar até o fim, ainda que viessem a ser
presos ou mortos. A prisão deles veio a acontecer em 10 de março de 1760. Dez
dias após foram enviados para a Bahia, debaixo de forte escolta.
Fechando o Capítulo XIV – Os Jesuítas no Piauí, com que
encerra o seu livro Fé e Civilização, disse o Pe. Cláudio Melo essas melancólicas
palavras : “Mal administrada, cedo aquela riqueza
definhou a ponto de sua importância ficar reduzida às terras que não puderam
ser destruídas.”
II
Os demais padres e coadjutores tomaram a decisão de fugir,
levando grande quantidade de objetos sagrados e moedas de ouro e prata, para
custear eventuais despesas e para enterrá-los em locais ermos e seguros, mas
localizáveis, quando surgisse o momento propício.
Saíram de Santo Inácio em algum dia de novembro de 1759, por
atalhos e veredas, tendo por destino o litoral piauiense. Iam a cavalo, em
confortáveis e acolchoadas selas, enquanto os bens e mantimentos foram
acondicionados em baús e surrões, colocados sobre o lombo de possantes burros.
Às vezes seguiam pela chamada estrada real, mas quando
pressentiam a possibilidade de encontrar eventuais viajantes, preferiam
adentrar a mata, e seguir paralelamente à estrada, temendo a perseguição de
soldados, acaso vindos em seu encalço.
Em certo anoitecer de uma bela noite de plenilúnio, chegaram
à Capela de Nossa Senhora do Ó da Lagoa Seca, que ainda hoje pode ser vista nas
cercanias da cidade de Valença do Piauí. Perto dela acamparam e fizeram suas
orações. Em seu pátio, de madrugada, celebraram uma missa apenas para eles
mesmos, e seguiram em demanda do arraial velho de Santo Antônio do Surubim.
Em Lagoa Seca não enterraram nenhuma porção do tesouro, que
pudessem despertar o imaginário popular, ao longo dos séculos. Todavia, reza a
lenda que na pequena ermida dessa localidade se encontra enterrado um imenso
jacaré encantado, em profundo sonho. E que no dia em que ele acordar uma grande
catástrofe irá se abater sobre esse templo e vizinhança.
Passaram perto de onde hoje se ergue a cidade de Alto Longá,
mais ou menos perlongando o rio que nomeia essa cidade. Pernoitaram perto de
uma cascata, que mais tarde teria o nome de Cachoeira do Frade. Cruzaram a região que muitos anos depois tomaria o nome de
Ladino, provavelmente em lembrança do bravo índio Mandu Ladino. Após
ultrapassarem Coivaras, avistaram, azulando ao longe, os morros encantados, que
nos dias atuais muitos chamam de Serra Grande de Campo Maior, Serra Azul ou
morros isolados de Santo Antônio.
Já então os padres haviam concordado de que fariam um atalho,
fugindo da estrada real, para não passarem pelo Arraial Velho de Santo Antônio
do Surubim, pois ali já poderia ter chegado ordem expressa de Oeiras para que
se efetuasse a prisão dos fugitivos, através de mensageiro expresso, com a
utilização de um ou mais cavalos velozes e sobressalentes.
Ao sopé de um dos morros, bem delineado e gravado na memória,
enterraram boa parte do tesouro. Ainda nos dias de agora a tradição conservou a
memória de que uns padres jesuítas em fuga deixaram para trás, sepultados nas
faldas da serra, castiçais, crucifixos, cálices e moedas, tudo em ouro maciço
do mais alto quilate. Um poeta, lembrando-se dessas histórias lendárias, que a
sua mãe lhe contara em sua infância, relatou em versos:
(...)
Dizem que nela vagam os
fantasmas de uns padres que em
suas entranhas enterraram ouro.
É por isso que nas noites negras em
suas encostas acendem-se fogueiras:
é meu povo pobre procurando
o (tes)ouro vigiado pelos
fantasmas dos padres.
III
Seguindo o roteiro planejado, que era a rota mais segura e
mais curta, dentro do possível, partiram em busca de nosso litoral. Iriam
atravessar e mais ou menos perlongar o rio Piracuruca.
Nesse objetivo passaram pelas formações rochosas, hoje
chamadas de Sete Cidades, em que a própria escultura caprichosa dessas pedras e
serras, esculpidas pelo cinzel das chuvas, do vento e do tempo, deram origem a
muitas lendas e especulações, em que a imaginação parece extrapolar todos os
limites, como as que dizem que ali seria um reduto dos fenícios, grandes
navegadores, desde tempos muito antigos, segundo nos afirma o austríaco Ludwig Schwennhagen,
cujo nome “enrolado” as pessoas simples pronunciavam “Chovenágua”, ou de que
ali teriam pousado “deuses astronautas”, na especulação de Däniken.
Consta que, quando as Sete Cidades forem desencantadas, por
ali voltarão a correr bigas e carruagens, o castelo passará a ter vigilantes em
suas ameias e os Três Reis Magos se dedicarão a adorar o menino num presépio de
paz e beatitude. A biblioteca descerrará suas páginas de pedra, e as letras
enigmáticas serão enfim decifradas.
Na proximidade de uma das formações pétreas mais
características e belas, à sombra de um imponente ipê ou pau-d’arco, os
jesuítas inumaram considerável parte do tesouro. A localização da botija seria
fácil de ser encontrada, através do mapa que eles traçaram na memória.
O mesmo poeta que cantara a serra de Bitorocara, de tantos
encantos e louçanias, e cujos ancestrais maternos são de Piracuruca, também
louvou as Sete Cidades encantadas:
Sete Cidades
de sete vezes sete
véus de encantamento.
Cidade encantada
sempre desencantada
para novos e mais
deslumbrantes encantos.
(...)
Ó formas sinuosas
de góticas catedrais,
barrocas formas suntuosas
que se excedem e se superam
no além e no demais.
Formas de pétalas pétreas
em volteios e volutas sem iguais.
IV
Seguiram em direção a Buriti dos Lopes, por um percurso que
então era muito deserto, vencendo chapadas, cerrados e carrascais. Contornaram
a pequena povoação, mas viram ao longe o seminário que jesuítas ali
construíram. Sua meta agora era atingir a barra do Longá, de onde prosseguiriam
pela picada que seguia pela margem direita do Parnaíba.
Ultrapassaram a região conhecida hoje como Várzea do Simão,
até alcançarem o curso d’água Igaraçu. Não pretendiam chegar até a povoação, situada
onde fica o Porto Salgado, e muito menos alcançar o arraial Testa Branca. Cerca
de um quarto de légua depois, havia uma fazenda, que dispunha de uma grande
canoa, na qual passaram para a margem esquerda. Estavam, pois, na Ilha Grande
de Santa Isabel.
Pretendiam dormir em Pedra do Sal. Chegaram ao entardecer, e
puderam contemplar um belo pôr-do-sol, que tingia, levemente, de róseo as águas
mansas da enseada. Viam-se ao longe as dunas, os coqueiros e uns poucos
casebres.
Fizeram uma batida de reconhecimento, logo ao chegar, e
escalaram algumas pedras, do aglomerado conhecido como Pedra do Sal. Escolheram
uma delas para servir de marco ao que pretendiam fazer, ainda na sombra
friorenta da madrugada.
A pedra escolhida como marcação era uma das maiores e mais
pitorescas. Ao baterem nela, por acaso, com uma pedra pequena, perceberam que
emitia um som metálico e abafado, algo parecido com um sino um tanto rouco. Ao
começarem a escavação, descobriram, perplexos, que ali existia uma gruta, que
parecia formar um longo túnel.
No futuro Schwennhagen e outras pessoas de imaginação fértil,
passaram a defender a hipótese de que Pedra do Sal seria um porto fenício, por
causa do aspecto arredondado e marcante de suas rochas, e que ali existiria uma
gruta com um túnel que chegaria a Sete Cidades ou até mesmo além; alguns
chegavam a dizer que esse canal se conectaria com a deslumbrante gruta de
Ubajara, na Ibiapaba.
Por causa da pressa que tinham, não fizeram nenhum trabalho
de exploração. Cavaram um buraco um tanto profundo, e esconderam parte do ouro
e prata que conduziam na parte inferior do túnel. Logo trataram de deixar tudo
como se encontrava antes. Desde que chegaram até esse momento não avistaram
nenhum morador do lugar, o que lhes era propício. Quando o dia amanheceu foram
à procura de moradores da localidade, para concluírem o plano que tinham em
mente.
Contrataram os préstimos de dois pescadores, que possuíam os
maiores e melhores barcos a vela, e partiram para local ignorado, no rumo do
Ceará. Deles nunca mais se teve notícia, e até seus nomes se perderam, para
sempre incógnitos, nas brumas do tempo.
Epílogo
Até o início dos anos 60 do século passado, a igreja de Santo
Inácio ainda ostentava as linhas puras de sua arquitetura colonial, assim como
a vetusta casa dos padres se mantinha incólume e inalterada. O regato ainda
corria manso e perene no vale próximo e o buritizal continuava a enfeitar a
paisagem bucólica. O banheiro dos jesuítas, no meio da verdejante várzea,
também ainda formava o seu belo e rústico caracol, de onde a história colonial
do Piauí ecoava, como soprada daquele enorme shofar, perdido naquele rincão.
Foi por essa época, que não desejo precisar, que um dos
administradores desse patrimônio, sob o pretexto de que a ermida precisava de
reforma, e achando ele que na capela e no caracol se encontravam enterradas
ricas botijas, contendo peças de ouro e prata, botou abaixo o templo e o
banheiro, que bem simbolizavam a história e o patrimônio colonial piauiense.
Foi construído novo templo, que nada guarda do patrimônio arquitetônico demolido.
Ainda resta ao menos a imagem do Santo Inácio original, como
uma denúncia contra a incúria do Poder Público e da desídia de administradores
inescrupulosos ou lenientes.
Por aquelas ermas paragens, ainda se veem pequenos cemitérios,
que a lenda afirma serem apenas simulacros, em que esses administradores e
apaniguados, no auge econômico da cera de carnaúba, escondiam as ricas palmas
das carnaubeiras de eventuais vistorias e fiscalizações.
A tradição da história oral, talvez um tanto mistificada, diz
que um certo Rodrigues, que ouvira falar do tesouro dos jesuítas em Pedra do
Sal, sonhou com o local exato onde ele se encontrava. Acreditou ser verdadeiro
o que seu sonho lhe acenara. Contratou uns trabalhadores da localidade, e os
mandou escavarem no local que lhes indicou, perto da Pedra do Sino. Os nativos
lhe disseram haver encontrado uma espécie de túnel, que acabava numa porta
rústica ou tapume.
Nesse ponto Rodrigues pagou os trabalhadores, em montante bem
acima do combinado, e os dispensou do serviço. Sem uma única testemunha,
concluiu o serviço na forma indicada no sonho, e de fato encontrou uma grande fortuna,
com várias peças e moedas de ouro e prata, e até algumas pedras preciosas,
cravejadas em castiçais, cálices e custódia. Consta que se mudou para
Fortaleza, onde se tornou opulento comerciante.
Ao menos neste último caso, contrapondo-se às palavras de Pe.
Cláudio Melo, a riqueza dos jesuítas não definhou, ao contrário do que acontecera
nas mãos de quem devia zelar por ela, desde quando passou a pertencer ao erário; ao
contrário, repito, floresceu.
(*) É um conto diferente, em que me fundamentei na História, sobretudo no livro Fé e Civilização, de Pe. Cláudio Melo, incluído em sua Obra Reunida (2019), publicada pela Academia Piauiense de Letras, que tive a honra de prefaciar, na tradição oral e em lendas, e em minha própria imaginação. As estórias lendárias e certos fatos registrados pela história oral me foram transmitidos pelo ilustre historiador e escritor Homero Castelo Branco, membro da Academia Piauiense de Letras. Os versos são de minha lavra.
Cresci ouvindo essa história. Parabéns por essa pesquisa histórica.👏👏
ResponderExcluir👏👏👏👏👏
ResponderExcluirAprecio demais seus escritos e uma leitura sobre a colonização do território piauiense, é sempre atraente, pois envolve questões de diversos interesses, que enriquecem a história, como a política oficial da Coroa Portuguesa de controle sobre essa região, sob a inspiração do Marquês de Pombal, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Outro dado positivo: é a abordagem das terras de Mafrense, que transcederam os tempos e se constituiram em cidades do suldoeste piauiense.
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