quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Alguns microcontos

Fonte: Google/Revista Galileu


DIÁRIO

[Alguns microcontos]

Elmar Carvalho

10/02/2021

Nestes últimos dias resolvi escrever uns microcontos. Alguns já estavam ruminados em meu cérebro. Escrevi os primeiros, e dei uma parada, pois tive que cuidar de outros afazeres. Hoje, escrevi os últimos cinco. Desses cinco, um nasceu hoje, como subproduto de um deles. Surgiu como um insight ou estalo. Seguem abaixo, após a devida revisão gramatical e estilística.  

 

Encontro marcado

Foi se encontrar com a namorada virtual no local e no horário marcados. Ela não foi, isto é, não entrou em conexão. Foi o fim de um namoro que de fato nunca chegara a existir. Após, ambos, reciprocamente, se bloquearam.

 

Roleta russa

No spleen de uma tarde modorrenta, mormacenta, de um sábado pardo qualquer, convidou os amigos para uma rodada de roleta russa. Impôs ser o primeiro. O tiro lhe varou o crânio. A perícia constatou que o revólver estava com o tambor cheio de balas,  exceto apenas uma deflagrada.

 

O mágico

Foi anunciado na cidadezinha que o mágico faria uma inédita e magnífica mágica, em única apresentação. No número, repleto de gestos mirabolantes e de pirotecnias escalafobéticas, o mágico sumiu. Para sempre. Descobriu-se que ele estava cheio de dívidas e ocultava um amor nunca, jamais correspondido.

 

Circo mambembe

Circo pequeno, de lona esfarrapada. A principal atração era o magérrimo e famélico leão. Um dia foi anunciado que o pagamento poderia ser feito em gatos e cães. Foi a única maneira que o palhaço Engraçado, por sinal o dono do circo, encontrara de salvar o leão e o circo.

 

Propaganda enganosa

A propaganda volante do circo, pela boca de quatro amplificadoras, anunciou, como novidade, que o leão iria andar sobre uma corda bamba. Um macaco fez várias pulutricas e estripulias, entre as quais se equilibrar no arame estendido de um mastro a outro. Quando cobraram o anunciado número do leão, o palhaço esclareceu tudo. O leão era um mico; um mico-leão-dourado. E o respeitável público pagou; pagou o maior mico.

 

Vingança

Corneado, perpetrou a sua vingança. No mais prestigiado baile da cidade, literalmente vomitou na cara da traidora, e depois lhe proferiu os mais veementes e contundentes vitupérios e palavrões. E conseguiu se ir e se esvair sem olhar para trás. Não desejava correr o risco de se tornar uma estátua de sal.

 

A bengala do cego

O ceguinho seguia com a sua bengala, tateando, tenteando, pelas ruas escorregadias da cidade chuvosa. De repente, numa esquina, quando tentava passar para o outro lado da via, deixou o bastão escapar, ao perder o equilíbrio e o tato. O cajado caiu em profundo bueiro. Vários transeuntes tentaram ajudá-lo, em vão. Um gaiato não quis perder a blague que lhe ocorrera: – E agora, a vara do ceguinho sumiu no buraco fundo!... Todos riram. Não lhe restando outra opção, contrafeito e resignado, o cego também sorriu, desamparado, daquela graça tão sem graça. 

 

Rompimento

(Extraído de um poema)

A mulher, em voz suave, quase música em surdina:

– Desse jeito, é melhor a gente terminar.

O homem trovejou, em altos brados retumbantes:

– É melhor mesmo. Mas se lembre, você me lambia o cu!

Elegante e delicada, a bela moça retrucou:

– Lambi, mas não lambo mais...

O homem se quedou pesado, estátua fulminada.

A mulher se foi, leve e evanescente, anjo que se libertou.

 

Os retirantes

Os retirantes, exaustos, sol a pino, fizeram pousada debaixo de uma árvore. Naquele sertão adusto até aquela árvore esquálida, esgalhada, não dava sombra, muito menos flores ou frutos. A mulher retirou os seios murchos, magros, como odres vazios, e neles colocou a boca sequiosa da criança, que deles nada sugou. A segurar o menino, foi até uma carnaubeira próxima, de onde trouxe um talo. Sentou-se no mesmo lugar onde estivera antes. Com calma e determinação, retirou um espinho, com o qual furou o braço esquerdo. Colocou a boca da criança no pouco sangue que minava. Olhou para a imensidão azul, sem nuvens. Seus olhos eram secos, exauridos, e deles nenhuma lágrima brotava.

 

O cego, o frio e o calor

O ônibus parecia uma Sibéria, de tanto frio que fazia. O sistema de ar-condicionado estava a pleno vapor. O frio me incomodava, mas eu olhava pela janela, e me aquecia mentalmente, vendo a paisagem ensolarada. Perto de mim ia um cego, com uns emblemáticos óculos escuros. Muito falante, elétrico, serelepe, eletrizante. Vestia um casaco escuro, de mangas longas, de costura dupla, pespontada. Devia ser um violeiro e repentista. Quando o carro parou na cidadezinha, fomos fustigados por um bafo quente. Da estação rodoviária, de telhado baixo, de amianto, exalava um calor sufocante. O cego começou a reclamar em alto e bom som contra a temperatura. Loquaz e eloquente, alegou que poderia sofrer um choque térmico. O dono da venda de passagens não gostou, e o interpelou com severidade: De onde você vem, ceguinho? Este respondeu com orgulho, com certo prurido ufanista: Venho da Parnaíba. O outro resmungou, com certa dose de sarcasmo: Ah, bom; pensei que você vinha da Suécia... O cego sacudiu os ombros, e rosnou baixinho, entredentes, que mal deu para eu ouvir: Ora, bolas! E o que ele tem a ver com isso? E escondeu um sorriso, um tanto envergonhado.  

3 comentários:

  1. Mestre Elmar, já afirmei que a sua cabeça funciona como um dínamo, que talvez seja ela alimentada pela energia infinita,tal a produtividade que dela emerge. Só não disse que são deliciosos seus nanocontos, uma agradável maneira de acompanharmos as nossas fast hours.

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  2. Caro José Pedro, com essas suas generosas palavras fiquei com o ego quase inflado, mas me contive. Muito obrigado.

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  3. Elmar, vc é bom em tudo. Mas na prosa destes contetos, você se excedeu: É mesmo um gigante da prosa. Extraordinário. Lembrou-me mesmo o Humberto de Campos

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