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Alguns bares e botecos de Parnaíba
(um
pouco da vida boêmia parnaibana nos anos 70/80)
Elmar
Carvalho
Eu
e minha família fomos morar em Parnaíba em junho de 1975, sendo que meu pai
nela já se encontrava há alguns meses, quando assumira a chefia da
Empresa de Correios e Telégrafos nessa cidade. Em setembro desse ano fui morar
em Teresina, mas no início de 1977 retornei, para cursar Administração de
Empresas na UFPI – Campus Ministro Reis Velloso. Em agosto de 1982 voltei a
morar em Teresina, para assumir o cargo de fiscal na extinta SUNAB – Delegacia
do Piauí.
De
modo que este trabalho se refere sobretudo aos anos 1970 e 1980. Como em toda
relação ou lista, sempre alguém poderá dizer que houve alguma exclusão
indevida. Aqui haverá, mesmo porque não tive a pretensão de fazer um trabalho
longo, aprofundado ou exaustivo. Talvez algum universitário o faça, em
dissertação de mestrado ou em tese de doutorado. Estou apenas dando um fraco
pontapé inicial, para que outra pessoa faça mais e melhor.
Na
segunda metade da década de setenta, começou a decadência dos clubes sociais.
Em 1975 o Cassino já não existia. Em seu lugar foi construído o prédio da
TELEPISA. A Associação Atlética do Banco do Brasil - AABB, com as suas festas e
tertúlias, ainda funcionava na Praça da Graça, no local onde depois foi
construída a agência da Caixa Econômica Federal, mas pouco depois se mudou para
a Beira-Rio. O Igara Clube ainda resistiu por mais alguns anos. Existem (ou
existiam) ainda os clubes sociais do SESC, do BNB, dos Ferroviários e dos
Trabalhadores. Animavam essas festas dançantes Os Apaches, com os irmãos
Fonseca Júnior e Fernando Holanda na liderança, e os Atômicos, sob o comando de
Reginaldo Mendes, que também era locutor da Educadora, então a única rádio da
cidade.
Nos
anos 70 se tornaram moda as churrascarias. Pontificaram as churrascarias
Mangueira, que como o nome sugere, tinha mesas e redes colocadas debaixo de
frondosas fruteiras, tendo como piso macio areal. Era bucólica e acolhedora,
mormente para casais, que procuravam os locais mais escuros e mais distantes; a
Gabriela, cujo nome fora inspirado, sem dúvida, na telenovela Gabriela, de
1975, que se localizava, salvo engano, na rua Vera Cruz, a três ou quatro
quarteirões da Santa Casa de Misericórdia; a Cajueiro, do Antônio José Neves,
no final da avenida Nossa Senhora de Fátima, que tinha muitas mesas colocadas
debaixo de enorme e esgalhado cajueiro, que dava um tom de bucolismo e
rusticidade ao ambiente e a do Iran, que ficava do outro lado do Igaraçu, na
Ilha Grande de Santa Isabel, perto da ponte Simplício Dias.
Na
segunda metade dos anos 70, explodiu a moda das discotecas (discotheques) e da
dança solta. Geralmente havia um ambiente fechado para dança, com luzes
multicoloridas, piscantes e giratórias. Nesse embalo, serviu de inspiração,
talvez, o filme Os Embalos de Sábado à Noite, estrelado por John Travolta, no
início da carreira, e que foi exibido no Cine Gazeta, na Praça da Graça.
Músicas de letras simples, próprias para esse tipo de dança solta, livre, em
que os pares quase não se tocavam. Recordo que havia as discotheques Pioneer,
Barbarella e uma outra na Beira-Rio. Particularmente, em termos de música de
discoteca, eu gostava da Tina Charles, de timbre mais romântico e de voz aguda,
cuja melodia se espalhava na noite da cidade.
Por
essa época, o extrativismo econômico já estertorava. A navegabilidade do
Igaraçu e Parnaíba já começava a definhar, por causa do asfaltamento de muitas
estradas de rodagens. As grandes firmas das famílias tradicionais parnaibanas
já começavam a entrar em decadência. A poderosa Casa Inglesa, com filiais em várias
cidades do Estado, já encerrara suas atividades. Dessas grandes empresas, que
ainda conheci em atividade, todas entraram em bancarrota e terminaram falindo.
Como
consequência da problemática econômica, mas sobretudo da mudança de costumes,
do surgimento das “moças de programa” e do uso massivo dos contraceptivos, os
cabarés começaram a ser extintos. Todavia, ainda alcancei em funcionamento,
entre outros, os seguintes: os da Munguba, o da Maria das Neves (na Guarita), o
Cabeça de Porco, nas cercanias da Lagoa do Bebedouro, o Rio-Chic e os da Coroa.
Outros surgiram nessa época, e tiveram vida efêmera: a Velha Debaixo da Cama
(na avenida São Sebastião), Beleza da Rosa e o Dallas, que ficava num banco de
areia, perto do Campus da UFPI.
Da
Beleza da Rosa era frequentador assíduo um boêmio, de enorme força física, um
verdadeiro Hércules ou Maciste. Ao dançar, em dado momento, como um guindaste,
suspendia a rapariga, segurando-a em uma das coxas e em um dos braços, e a
levantava acima da cabeça; girava-a em sua dança exótica e aloprada, a se
deslocar pelo salão.
Nesse
mesmo lupanar, segundo uma das envolvidas confessou a um conhecido meu, duas
prostitutas se apaixonaram, uma pela outra. A confidente disse ao meu colega
que não sabia mais o que fizesse, pois a sua amante a estava consumindo, e ela
já se encontrava exaurida, sua energia sugada pela outra, de forma que não
tinha força para nada, e mesmo já não suportava esse tipo de relação. O
interlocutor a aconselhou a fugir, já que ela não tinha coragem para romper com
a sua amante. Não sei se ela lhe seguiu o conselho.
Curiosamente,
fora as barracas e restaurantes da praia, poucos bares comercializavam o
caranguejo cozido na cidade de Parnaíba. Lembro que, entre esses poucos, se
destacavam o do Cornélio, perto do Igaraçu, no final da Rua Coronel Pacífico, e
o do Mário, na Beira-Rio. Os restaurantes mais chiques só vendiam o crustáceo
em casquinha.
A
limpeza do caranguejo era precária, de modo que ele vinha com um pouco de lama
do mangue, o que lhe dava um exotismo e um sabor adicional. Era quebrado diretamente
na mesa de madeira, com porretes rústicos. Muito diferente de hoje, em que se
fornecem tábuas e martelos bem trabalhados para o desmonte da iguaria. Também
hoje são servidos acompanhamentos de arroz e molhos, além de que os caranguejos
são bem limpos e cozidos em águas com temperos.
Acrescento
que eles eram vendidos, em corda de 4 unidades, debaixo da ponte Simplício
Dias, nos anos 1977/1978, por um preço inferior a uma garrafa de cerveja. Com o
crescimento da “exportação” para Teresina e Fortaleza, o preço começou a subir
em escala rápida. Basta que se faça uma comparação hoje entre o preço de uma
garrafa de cerveja (600 ml) e uma corda de quatro caranguejos.
Mas
voltemos ao trilho de nosso tema.
Na
Beira-Rio (Avenida Nações Unidas) ficavam os bares e restaurantes frequentados
pela elite, entre os quais se destacavam: o Veleiro, o Cabana e o Navegante.
Deles se contemplava a beleza do Igaraçu e da Ilha Grande de Santa Isabel.
Desde
1977 conheci o Bar do Augusto, situado na Munguba, perto da vala da Quarenta,
que desaguava no Igaraçu, que passava ali perto. Instalado em um pitoresco
prédio de taipa, mas bem conservado, rebocado, pintado de branco. Graças ao
zelo do Augusto, sua brancura era quase sempre imaculada. Nele, outrora,
funcionara um cabaré, no qual eram realizados alguns famosos bailes. De um velho
texto, entre vários, que escrevi sobre ele, pinço o seguinte:
“O
Recanto da Saudade não tinha esse nome, não. Era tão-somente o bar do Augusto.
Eu o conhecia fazia muito tempo, desde o ocaso melancólico da Munguba, quando
ali aportava em companhia de meus amigos Reginaldo Costa e Jonas Carvalho, para
tomarmos uns bons goles de cerveja, tendo como tira-gosto saudosas músicas dos
velhos tempos que não voltam mais.
Mesmo
naquele tempo, era um ambiente familiar e de muito respeito, pois o Augusto é
um cordial cavalheiro de ar sério, embora não carrancudo, que sabe imprimir
ordem na casa. A sua característica principal é o proprietário ter mantido o
estilo rústico do prédio e não ter aderido à moda avassaladora dos CDs,
continuando fiel à sua velha radiola e aos seus antigos discos de vinil, alguns
dos quais valiosas raridades e verdadeiras relíquias.
É
no Recanto da Saudade, que enternecidas lembranças me traz, que ainda encontro
velhos amigos do tempo de outrora e de agora, como meu compadre Airton Meneses
e os radialistas e jornalistas Bernardo Silva, João Câncio, prof. Antônio
Gallas, que tive a satisfação de introduzir na confraria dos saudosistas, e que
hoje é um de seus mais dedicados adeptos.
O
Recanto é o reduto irredutível do Dourado, misto de boêmio, músico,
carnavalesco e humorista, que por ali circula desfiando suas estórias e tiradas
e desfilando, a caráter, suas personagens momescas, como PC Farias e outras
personalidades de uma fauna nem sempre recomendável.
O
bar teve alguns pequenos e sutis melhoramentos, mas exclusivamente para o
conforto da clientela, que aumentou muito nos últimos tempos, sendo comum, no
final de uma tarde de sábado ou domingo, vários amigos e casais da chamada
terceira idade ali aparecerem para ouvir uma música daquele tempo d’antanho,
que tantas recordações e saudades deflagram na alma do ouvinte sensível.
O
cliente escolhe sua música predileta, mas somente o comandante Augusto pode
manipular os velhos discos de vinil, com a habilidade toda sua e insuperável
cuidado. Quando deseja limpá-los, faz uso de uma longa flanela vermelha, que
mais parece uma bandeira ou uma toalha.
No
Recanto da Saudade é fácil recordar uma época que não presenciamos, mas que
teima em se manter viva; um passado de que só temos notícia através das
conversas e do Almanaque da Parnaíba, ou mergulhando nas páginas dos Vareiros
do Parnaíba e outras estórias, do saudoso jornalista e escritor Souza Lima, que
ainda conheci. Aliás, cheguei a ver o deputado Olavo Rebelo, debruçado sobre
uma enferrujada máquina de escrever, datilografando esse precioso livro, como
uma prova de reconhecimento de seu valor. Ali, ainda parecem navegar as velhas
alvarengas, acaso egressas de algum poema do Alcenor Candeira Filho; ali, ainda
parecem desfilar os entroncados porcos d’água e vareiros; ali, até parecem
ressuscitados os antigos Bailes Azuis e as respeitadas e respeitadoras
meretrizes de antigamente, bem mais respeitáveis que as moças de programa de
hoje em dia. E tudo isso perpassa no romance Beira Rio Beira Vida, do
insuperável mestre Assis Brasil.”
Vez
ou outra, apareciam no Recanto da Saudade os saudosos cego Uchoa e o Balula. O
Uchoa, sempre bem-humorado, desfiava suas anedotas e “causos” jocosos, ou
engendrava suas tiradas, ao sabor do improviso, conforme o ensejo da conversa.
O Balula, alourado, de olhos claros, com a sua bela voz, algo tonitruante e
levemente de timbre metálico, interpretava, como um verdadeiro ator, os poemas
que decorava. Antes fazia um preâmbulo, à guisa de suspense, depois, executava
sua mise-en-scène, como se estivesse em um palco. Numa de suas declamações
preferidas, ele dizia que iria quebrar a taça da amargura. E diz a lenda que,
algumas vezes, ele chegou a literalmente quebrar, no calor de sua emotiva
interpretação, algumas valiosas taças de cristal.
O
Recanto da Saudade sucumbiu, pode-se dizer, literalmente, com a morte de Dom
Augusto da Munguba. Dele só restam ruínas e saudades. Talvez nem mesmo as
ruínas ainda existam. Um boêmio saudosista (*), cujo nome infelizmente não
guardei, e isso lamento muito, me falou que, instigado por um texto meu,
plantou uma semente da vistosa mungubeira, que havia perto dele, na Praça da
Graça, no entorno da Banca do Louro. E a semente já se transformara em bela
árvore, que bem poderia ter uma placa em lembrança do Augusto e de seu
legendário bar. Me restou também um soneto, do qual desentranho os tercetos:
Onde, agora, o Augusto?
Onde, agora, a vitrola, a música e o bar?
Como nos versos sublimes de Bandeira,
ficaram de pé, suspensos no ar. . .
Encantados no destempo de um tempo
sem passado, sem futuro, sem presente.
Na
Praça da Graça e no seu entorno existiam famosos bares, frequentados por bravos
boêmios, dos quais posso citar: Bar Parnaíba e o seu espaçoso salão das mesas
de sinuca, Bar do Pimpão, o bar e restaurante Acadêmico e o Bar Fortaleza,
muito frequentado, no início da Rua Riachuelo.
Antes
da destruição da antiga Praça da Graça havia o abrigo, no qual funcionava o
conhecido Bar do Gago. No novo formato da Praça, não tão belo quanto o modelo
do logradouro anterior, surgiu o Bar Carnaúba, construído com os troncos dessa
árvore e coberto com as palhas dessa linda palmeira, símbolo do Piauí. Foi
arrendatário dele, durante vários anos, o Osmar Linhares, famoso pelo seu “boa
noite”, mesmo que fosse durante um bom e belo dia.
No
bairro Coroa, mais ou menos entre a Rio-Chic e a Beira-Rio, costumava ver o Bar
Corujão da Meia Noite. Como o seu nome indica, funcionava até tarde da noite.
Ficava perto dos pequenos cabarés que funcionavam em seus arredores. Era um
típico e pequeno boteco, pitoresco por ser todo de tábuas. Os clientes ficavam
ao relento, a céu aberto, a ver estrelas. Se chovesse, os fregueses tinham que
suportar os pingos d’água. Só havia lá fora; lá dentro só ficavam os
utensílios, os tira-gostos e os litros de bebida. Embora o achasse
interessante, nunca fui seu freguês. Assim como não o fui de um bar, que havia
perto de um bueiro, nas imediações da capela da Avenida Nossa Senhora de
Fátima. Este tinha uma grande clientela, que ficava ao pé do balcão, ou num
pequeno alpendre que dava para a avenida.
Durante
um ano ou dois, eu e o jornalista B. Silva, aos sábados, gostávamos de tomar
três ou quatro cervejas no Bar do Cajueiro, localizado na Avenida Piauí.
Praticamente o bar era o próprio cajueiro, pois a mesa ficava debaixo dessa
frondosa fruteira, que dava uma refrescante sombra, que mais se tornava
refrescante pela brisa, que sempre havia. Desse bar, disse o historiador e
escritor Vicente Araújo (Potência), numa de suas tiradas, que era nele que o
vento fazia a curva.
No
final dos anos 70 e começo dos oitenta, frequentei algumas vezes o bar do
senhor Raimundo ou Raimundão, por causa de sua altura, que ficava na beira da
Lagoa do Bebedouro, à margem da estrada que vai para Rosápolis. Na época a
lagoa não fora urbanizada e havia poucas casas no seu entorno. Os conjuntos
habitacionais ainda não haviam sido construídos. De lá se tinha uma bela vista
da lagoa. O boteco era rústico, mas o dono era acolhedor. No quintal havia umas
palmeiras e uma enorme e frondosa amendoeira, que nos deu sombra e beleza, no
dia em que debaixo dela comemorei a conclusão do meu curso de Administração de
Empresas.
Quando
meus pais moraram perto da Praça da Santa Casa, fui algumas vezes ao bar dos
irmãos Vasconcelos, que ficava no início da Avenida Capitão Claro. Ficava quase
colado à antiga agência da empresa Marimbá, em cujos ônibus viajei tantas vezes
para Teresina ou vice-versa. Na realidade um dos irmãos era o dono e o outro,
seu empregado e hóspede, posto que morava na casa do primeiro. Já eram idosos
nessa época. Eram dos Vasconcelos da Ibiapaba, de Ubajara ou Tianguá. Quando um
morreu, logo em seguida morreu o outro.
Defronte
ficava um posto de combustível, em cuja dependência lateral funcionava um outro
barzinho, de propriedade de um irmão do Raimundo (da Lagoa do Bebedouro),
bastante frequentado no final dos anos 70. Próximo dali, mais precisamente
perto do Mercado Central, havia o bar e lanchonete Cascatinha, aberto a noite
toda. Nesse estabelecimento, tanto os boêmios bebiam, como tentavam matar a
ressaca com caldo de carne ou outras comidas mais substanciosas.
No
final da década de 70, a Lagoa do Portinho era pouco frequentada. Existia uma
rústica churrascaria e as margens da lagoa ostentavam uma densa floresta de
cajueiros. Debaixo deles, na companhia de familiares e alguns bons amigos,
comemorei minha aprovação para fiscal da SUNAB, hoje extinta. Certo dia,
voltando da praia, estive nessa churrascaria. A natureza se mostrou muito
caprichosa nessa tarde inesquecível; em momentos chovia, em outros fazia sol,
tornando as cores cambiantes; ora fazia frio, ora calor. Tarde mágica, em que
ainda havia uma belle de jour, que me inspirou o poema “Mulher na Lagoa do
Portinho”, do qual estampo os seguintes versos:
Na tarde antiga
de sol e bruma
de luz e penumbra
as dunas mudaram
de cores e formas.
Os belos olhos esplendentes –
pálidas cálidas opalas ou
esmeradas esmeriladas esmeraldas –
da mulher bonita
de sinuosas dunas e viagens
furta-cores furtaram
outros tons e sobretons.
Perto
(e no lado esquerdo) da ponte que antecede o antigo povoado de Morros da
Mariana ficava o barzinho de dona Maria, companheira do senhor Raimundo,
parente do Reginaldo Costa, do jornal Inovação. O senhor Raimundo gostava de
tomar uma cachaça, muito forte, uma verdadeira “serrana”, por ele fabricada,
num alambique instalado numa propriedade sua, vizinha. Em momentos agradáveis
de minha juventude estive nesse boteco algumas vezes, em companhia do Canindé
Correia, do Vicente Araújo (Potência), do Reginaldo Costa e do B. Silva.
Em
minha crônica evocativa de meu saudoso amigo Canindé Correia, recordei esse
tempo de música, poesia e alegria: “Num barzinho, que ainda existe, quase
debaixo da ponte, imediatamente antes do então povoado de Morros da Mariana,
degustávamos saborosos caranguejos, que chegavam fresquinhos, ainda cobertos
pelas belas e grandes folhagens do mangue; o igarapé, por onde os crustáceos
chegavam, em pequenas canoas, passava em frente ao boteco, e aumentava a
sedução e a beleza da paisagem.”
Na
rua 19 de Outubro, perto do Bar do Cornélio, localizado no final da Rua Coronel
Pacífico, ficava (ou fica) o Bar do Cheira Mijo. Boteco rústico. O cliente tomava
sua bebida quase sempre em pé, ao redor do balcão. Ali perto fica o Porto dos
Tucuns, onde, outrora, atracavam muitos barcos, procedentes das ilhas e
povoados do Delta do Parnaíba. Os porcos d’água ou embarcadiços urinavam nessa
rua ou nas adjacentes, de modo que passaram a chamar a artéria de “rua do
cheira mijo”, donde se originou o pitoresco nome do bar. Perto ficavam alguns
casebres e cabarés. Os moradores, nessa época, faziam suas necessidades dentro
de casa, e depois jogavam os dejetos na rua. De modo que nessa região da
Munguba também ficava uma via, que era denominada como “rua da bosta”.
Ainda
na Munguba, entre o saudoso Recanto da Saudade e o Bar do Cornélio, à margem do
Igaraçu, fica a metalúrgica do senhor Pereira, em cujo local, em determinado
dia da semana, se reunia a confraria A Forja. Cada “confrade” levava
determinada quantidade de cerveja e de carne para tira-gosto. Os membros d’A
Forja eram pessoas bem situadas, como se diz, empresários e profissionais
liberais, como médicos, engenheiros e advogados, além de graduados funcionários
públicos. Funcionava com ordem e regularidade, talvez porque não tivesse
estatuto e nem regimento escrito.
Alguns
botecos, sobretudo os frequentados pelos “profissionais papudinhos", tinham a
(má) fama de vender cachaça “desdobrada” ou “manipulada”, isto é, adulterada.
Para simplificar, misturada a outras substâncias, inclusive água, em menor ou
maior quantidade, conforme o proprietário do botequim fosse mais ou menos desonesto,
para obtenção de maior lucratividade. Também alguns vendiam tira-gostos
indigestos, alguns requentados uma ou mais vezes, que segundo diziam ou matavam
ou adoeciam o cliente. A esses poderíamos aplicar os versos epigramáticos de Oswald
de Andrade:
No baile da corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí
Os
remanescentes dessa velha guarda costumam curar sua ressaca na lanchonete do
senhor José dos Santos, que vende um saboroso e substancioso caldo de carne.
Alguns boêmios preferem continuar ou começar a farra nessa lanchonete, posto
que ela também vende bebidas. Fica ao lado do Mercado de Fátima. Nesse mercado
fica a lanchonete/restaurante da Maria, que comercializa um igualmente
delicioso caldo de carne.
Reconheço
que cada boêmio tem o seu boteco preferido, o boteco de sua memória, afeição e
bem-querer. Por conseguinte, em cada canto da cidade existe um “recanto da
saudade”, um barzinho bucólico, rústico, intimista, aconchegante ou
inesquecível. Como diria Patativa do Assaré: cante o seu, que eu canto o meu.
(*) Precisamente hoje (15/06/2021), alguns dias após eu haver escrito esta crônica, o fotógrafo e bibliófilo Jairo Leocádio, por WhatsApp, me comunicou haver encontrado na Praça da Graça o cidadão que plantara a munguba. Estava com o meu texto em seu celular e disse se chamar João Lucas. Portanto, tem o nome de dois evangelistas. Jairo me prometeu enviar uma fotografia dessa árvore, que fica perto da famosa Banca do Louro.
O Patrimônio material ficou na memória, mas, o Patrimônio imaterial (os fazeres e os saberes), como a gastronomia é referência ainda nos lares e casas de A&B. Como o nosso caldo de carne, buchada, Maria Isabel, panelada, galinha com arroz, sarapatel, assado de panela, paçoca, manjuba frita, peixe frito, coalhada, bolo de goma, bolo de caroço, sequilhos, tapioca e tantas guloseimas que foram passadas de mães para filhas como prendas domésticas.
ResponderExcluirPrezado amigo Elmar,
ResponderExcluirParabéns por retratar tão bem os botecos e alguns costumes que reinavam em Parnaíba nas décadas 70/80, resgatando fatos que marcaram fortemente nossa geração.
Graças à sua crônica, viajei no tempo e pude relembrar momentos da minha juventude.
Cordialmente,
Ben-Hur Sampaio
Maravilha!! Viajei no tempo. Comidas típicas,fatos, locais de encontro, musicas, botecos, amigos, o Viver em Parnaiba.Obrigada Elmar.
ResponderExcluirComo disse a Francisca Porto, viajamos no tempo, revivendo cada lugar que ficara escondidos eemnossas mentes. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado digo eu, prezados amigos, por suas amáveis palavras.
ResponderExcluirCaro Elmar Carvalho, impecável seu texto. Saudades do tempo que não volta mais. Na Beira-Rio de 1976 a 1980, relembro-me que uma tia minha trabalhava em um bar denominado PSIU que se situava ao lado do Bar dos Navegantes. Era muito animado naquela época, um novo point da cidade. Quando se retornava do banho de mar tinha que passar pela Beira-Rio. O Psiu era muito frequentado pela classe alta e média. Os finais de semanas eram programados, começava na sexta e terminava aos domingos. Era tradicional também quando se comprava um carro novo ir exibi-lo na Beira-Rio, propositadamente baixava-se o vidro do carro com o braço para fora...
ResponderExcluirAbraços,
Everardo Oliveira-Parnaibano
Elmar Carvalho é um memorialista tão lírico que o texto nos prende os olhos e o tempo entra em suspensão. Mesmo no exercício da crônica, Elmar Carvalho continua poeta e lírico. Abraço afetuoso. Weliton Carvalho. Sim, somos aparentados por parte da poesia.
ResponderExcluirComo fiquei contente com o seu abalizado comentário, em que o amigo citou os principais aspectos de meu texto. Obrigado. Abraço.
ResponderExcluirElmar, boa tarde, os cabarés Cabeça de Porco e da Portelinha ficavam nos fundos do quintal de uma prima minha na antiga rua São Paulo (atual rua Campo Maior).
ResponderExcluirAbraços
Everardo
Bom dia, Elmar! Falando dos cabarés em Parnaiba na década de 70 a 80, você esqueceu de citar famoso "cala boca" que ficava perto do Campus Ministro Reis Veloso, o cabaré da Erminda e do Guarani, ambos no Bairro Nova Parnaiba.
ResponderExcluirExcelente! Fiz uma verdadeira viagem para o passado! Parabéns pelo texto memorável!
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