Poeta, contista, cronista, romancista, memorialista e diarista. Membro da Academia Piauiense de Letras. Juiz de Direito aposentado. *AS MATÉRIAS ASSINADAS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, E NÃO TRADUZEM OBRIGATORIAMENTE A OPINIÃO DO TITULAR DESTE BLOG.
terça-feira, 31 de agosto de 2021
Andança Literária em Altos
segunda-feira, 30 de agosto de 2021
Cartas célebres
Carlos Rubem
Idealizado por Dagoberto Carvalho Júnior, o Instituto Histórico de Oeiras — IHO — foi criado no dia 06.01.1972. Raimundo da Costa Machado, Possidônio Queiroz, José Expedito Rêgo, Monsenhor Leopoldo Portela, Padre David Ângelo Leal, Desembargador Antônio Santana, Professora Alina Ferraz, dentre outros, foram os seus membros fundadores. No dia 24 de Janeiro daquele ano, foi solenemente instalada aludida instituição cultural.
Frangote, de tudo tomei conhecimento, inclusive através do jornal “O Cometa”, que circulou de 1971 a 1976. Importante mensário.
Passei, desde então, assistir às suas instrutivas sessões solenes. A começar pelas substanciosas conferências havida durante as celebrações do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972), no pátio interno da Escola Normal.
Nos seus albores, destaco três iniciativas forjadas no seu seio que tiveram reconhecimento público: a restauração da Casa da Pólvora, a adoção dos símbolos municipais (Bandeira, Brasão e Hino - Lei nº 900, de 30.10.1972) durante a gestão do prefeito Juarez Tapety e a instituição do dia da emancipação política de Oeiras — 26 de dezembro — em face da Lei nº 1.135, de 22.08.1979, sancionada por Waldemar Freitas, alcaide.
No próximo ano (2022), será comemorado o seu cinquentenário, condignamente. A atual Diretoria já se mobiliza no planejamento desta efeméride. Necessidade há do engajamento de todos seus sócios, apoio do setor público e privado. Não temos tempo a perder.
Fui levado ao IHO pelas mãos do seu citado idealizador, em 1981. Tornei-me Presidente deste Sodalício por dois mandatos consecutivos (2000 a 2003). Experiência exitosa, modéstia inclusa.
A sua Revista é uma publicação respeitável. A primeira edição — especial — versou sobre o centenário de nascimento do Sr. Dagoberto Ferreira de Carvalho (1876 - 1951), que foi Promotor Público de Oeiras por mais de 20 anos. Militou, também, na advocacia aqui e nas cidades vizinhas. Cumpriu-se vasta programação. Muitos oradores. Laudatórios discursos.
Com efeito, o General Abimael Carvalho, filho do homenageado, desejava que o Dr. Costa Machado, amigo de infância, fosse o orador quando da aposição do retrato seu pai na sede do IHO.
Acontece que, com a saúde abalada, Dr. Machado declinou do convite. Possidônio Queiroz, Presidente à época do IHO, no dia 14.07.1976, invocando Ruy Barbosa, escreveu-lhe uma carta para “fazer um apelo, um veemente, um dramático apelo para que o caro amigo não deixe de aceitar a alta incumbência de dizer a oração no ato da aposição do retrato do Major Dagoberto Carvalho na sede do Instituto Histórico de Oeiras.”
Alquebrado, no mesmo dia e de forma manuscrita, respondeu-lhe: “Como bom cristão que sempre tem sido, Você saberá compreender o meu tormento que tentei explicar acima, e desculpar caridosamente a descortesia e ingratidão, ou seja, a impossibilidade de mudança de resolução deste seu amigo e admirador
Raimundo da Costa Machado.”
Essas missivas revelam a grandeza humana desses dois literatos que muito contribuíram para o engrandecimento moral de Oeiras.
X - X - X - X - X
Oeiras, 14 de junho de 1976
Caríssimo Confrade
Compadre Machado
Nesta Cidade
Caríssimo
Alguns homens de pensamento acham que devemos, para obtenção das cousas, ser indormidos; que devamos insistir, persistir e não desistir. Parece, que noutras palavras, é esse também o pensamento do Apóstolo das Gentes.
Ontem, pouco depois das dez do dia, tivemos, o caro compadre, o Dr. Dagoberto e eu, uma conversa, na qual lhe fizemos, ao caríssimo Costa Machado, um apelo, um veemente, um dramático apelo para que o caro amigo não deixe de aceitar a alta incumbência de dizer a oração no ato da aposição do retrato do Major Dagoberto Carvalho na sede do Instituto Histórico de Oeiras.
Agora, rogando-lhe confiante, um pouco de atenção, e indulgência, quero voltar ao assunto. E o faço alinhando aqui, algumas razões, para as quais peço meditação.
Depois que o caro Compadre foi para casa, fiquei a pensar na cousa, algo ressabiado, muito pesaroso, porque a sua recusa vem alterar, ressentidamente, os planos de um ilustre e caro filho de nossa terra, a quem todos queremos, respeitamos, veneramos.
O general Abimael Carvalho quando escolheu a pessoa do caro compadre para proferir algumas palavras, no ato da aposição de retrato do seu ilustre pai (dele), o fez baseado em antiga amizade do velho companheiro de folguedos infantis, na amizade de cidadãos, cujas idades se bitolam quase pela mesma medida, e que, por isso mesmo, foram partícipes dos mesmos folguedos, foram aos mesmos banhos, passearam satisfeitos pelas mesmas ruas e arredores da velha Oeiras, nos seus carneiros possantes, etc.
Isso levou o nosso emitente conterrâneo a escolher o caríssimo Costa Machado, sem ocorrer, nunca, não era mesmo possível, ao nosso Caixas, a possibilidade de uma recusa por mais delicada que seja, a não ser se se tratasse de moléstia grave.
Pensei em tudo isso. À noite, antes da missa do nosso saudoso e sempre lembrado Ribamar Matos, estive com o nosso preclaro Diretor Dr. José Expedito, a quem expus tudo e a quem disse que voltaria à sua presença.
Depois da missa estive em cada do Des. Santana e conversei com a Professora Alina e com o nosso caro amigo Dagoberto, mais tarde estive com o Des. Santana, a quem achei muito abatido, com a atitude do caro Costa Machado.
Antes de conversar com o Dr. Expedito, Professora Alina, Dagoberto e com o Des. Santana, havia deliberado bater à porta do caro amigo para pedir-lhe uma cousa: que fosse VOCÊ quem desse ao General a notícia de sua recusa. Pensei que não teria muita coragem de fazê-lo, face à confiança com que o mesmo General indicou o seu nome. O General Abimael talvez nem acreditasse em tal notícia dada por outrem que não o caríssimo Costa Machado.
Bem. Dizia, estive com Dagoberto, e este deu-me a notícia pesarosa de que o Des. Santana quando soube da sua recusa, – da recusa do amigo –, teve o estado de saúde agravado, e ficou sem poder falar algum tempo.
Mais tarde, como disse atrás, estive com o Desembargador. Fomos encontrá-lo em casa do irmão “Seu Né”, pensativo, triste. Acertei com ele e Dagoberto que iria fazer ainda um apelo a VOCÊ, e hoje a gente teria uma notícia, talvez alvissareira.
Na conversa com a Professora Alina e Dagoberto (peço-lhe atentar nisso) discutimos uma cousa: VOCÊ aceitaria que seu nome figurasse no programa, por várias razões, que bem as surpreende pelo que não há mister discuti-las ou explaná-las aqui. Se no dia, por qualquer motivo não pudesse comparecer, então algum companheiro, dizendo da razão justa do seu não comparecimento, pronunciará algumas palavras no ato, para o qual estão convidadas poucas pessoas, de vez que não se trata de sessão solene. O que desejaríamos era que o seu nome não deixasse de figurar no programa.
Certamente não precisa um pronunciamento longo, em que poderia cansar-se, algumas palavras, a que agradecerá, em nome da família, o Dr. José Luiz, e teremos, realizado uma bela programação do nosso Instituto Histórico.
Fica ai mais uma vez, o apelo. Medite. Não será o pronunciamento que lhe pedimos em nome do Instituo, o seu canto de cisne. Você bem sabe. Ainda este ano terá de fazer, pelo menos, mais um, e talvez logo no próximo mês de julho.
Encerro esta carta com as seguintes palavras do Companheiro DANTAS, em 1879, a RUY BARBOSA. “Ruy, faze um dos teus milagres”. Tratava-se de responder a uma terrível interpelação do formidável SILVEIRA MARTINS. Ruy estava convalescendo de grave moléstia. Demos a palavra ao Des. Homero Pires:
“Ruy convalescia do tifo, ainda com um cáustico aberto no fígado, quando Conselheiro Dantas lhe exigiu que aceitasse a perigosa incumbência de responder a Silveira Martins. A célebre frase: ‘Ruy, faze um dos teus milagres’, esbarrava, porém, desta vez em dois escolhos: uma impossibilidade material, pela enfermidade, e uma impossibilidade moral, porque no íntimo Ruy estava desgostoso com a orientação de Sinimbu, não podendo atacar Silveira Martins em pontos em que estava no íntimo de acordo com ele.
Dantas colocou a questão no terreno da confiança partidária. Ruy teve de obedecer. Declarou, porém ao seu chefe que não entraria o merecimento do debate. Limitar-se-ia a mostrar que Silveira Martins com ou sem razão, não podia de modo algum atacar um gabinete de que saíra na véspera.”
Ao prezado Machado, em nome do Instituto Histórico de Oeiras, faço o apelo, tamando de empréstimo as palavras do Conselheiro Dantas, faço o apelo que em dias do Império, fez aquele grande político à Águia de Haia. Ali, foi um apelo em nome de uma entidade partidária. Aqui é um apelo em nome de uma entidade cultural, que você ajudou a criar e que conduziu galhardamente durante os três (3) primeiros anos de vida.
Não há cogitar de mais argumentos. Resta-nos, somente esperar, e esperar confiantemente.
Do confrade, amigo, admirador
Possidônio Queiroz
X - X - X - X - X
Oeiras, 14 de junho de 1976
Caro compadre Possidônio
Nesta cidade,
Acabo de receber uma gentilíssima carta.
Desde dezembro de 1974,venho falando a você a aos demais companheiros do IHO (cuja antiga amizade esta patriótica instituição avivou e robusteceu), venho falando do meu crescente mau estado de saúde. Dizia então que por isso, não me sentia estar presidindo bem, como desejava, o dito Instituto.
Vocês, excessivamente generosos, procuraram reanimar-me, e me persuadiram a prolongar o mandato por mais um ano. Submeti-me, mas ao novo período minha saúde continuou piorando, malgrado e incessante esforço próprio para me iludir, assim me mostrando imensamente forte aos confrades.
Em dezembro último consegui que nem mais de meu nome se cogitasse na eleição. E dessa maneira pude programar e realizar com todo prazer, em 24 de Janeiro, a posse solene dos que haviam sido eleitos a 26 de dezembro – certo de que estava segurando ou consolidado um futuro promissor ao passo arrojado que havíamos dado em 1972.
Supunha eu que, liberto das preocupações diretas, alcançasse a desejada melhora de saúde. Talvez meus nervos... Infelizmente ao contrario, acelerou-se meu mal-estar. Não foi possível por em dia minhas atividades particulares. Qualquer emoção me rebate. Já não controlo o plano de trabalho...
Tenho evitado sair à rua para que os conhecidos não percebam a minha frequente irritabilidade. E, o pior, irritabilidade desarrozoada. Aqui mesmo em casa já não sou o homem compreensivo que fingia não notar pequenas faltas, ou era demasiado paciente na hora de aconselhar.
Recentemente, quando Zé Barbosa veio me buscar para a justa homenagem que os Poderes Legislativo e Executivo Municipais prestavam a Você – veio em nome de Dr. Pedro; eu ignorava que seria naquela noite, eu não estava passando bem. Prontamente, porém, fiquei alegre; preparei-me às pressas e fui. Mas, lá chegando não me tardou a prostração...
(Lembre-se de que, na Secretaria, você me falara dias antes. Sem ter ouvido bem, compreendi que era a respeito da solenidade, e que a data seria marcada posteriormente. Pus lá e "ciente" e trouxe o ofício, mas só depois; lendo-o, verifiquei que ele versava sobre outro assunto).
Na solenidade, quando franqueada a palavra, embora deveras emocionado, tentei cumprir o dever da amizade. Considerando temerário qualquer improviso, recitei um soneto e só no fim percebi que fora declamado, não o minuto antes, digo, o que dois minutos antes escolhera, mas outro. Estive prostrado toda a semana seguinte. Noutra ocasião parecida, minha presença seria ainda pior.
É esta a minha penosa situação. Estou me externando, como sempre, com toda a sinceridade. Dizem-me raramente se acredita na plena sinceridade do próximo. É doloroso isto. E eu lhe digo, Compadre, que sempre falei assim, e como seu amigo sempre procurei respeitar sua vontade. Agora, deploravelmente, me sinto esgotado. Embora o nosso Dr. Expedito assevere que continua normal meu coração já não possuo coragem para nada, já sou um homem de nada. Quase de tudo sem ânimo para ler e escrever, mesmo as cartas de meus bons amigos e parentes. Já passo dias sem me aproximar da Pioneira, da Voz do Brasil e da Voz da América que tanto me vinha divertindo.
Eu não saberia dizer a outra pessoa o que estou garatujando nestas linhas, num enorme esforço.
Meu desejo é um desejo covarde como eu consideraria outrora – isto é, evitar a tortura de assumir qualquer espécie de compromisso mental, e assim aguarda a hora do eterno descanso, que já não haverá tardar muito.
Esquisito: tudo isso foi chegando sem que eu tenha mágoa ou ódio de alguém ou que tenha deixado de venerar e amar as pessoas a quem sempre amei e respeitei. Creio em Deus e continuo bendizendo a vida, e recebo ou curto os pesares com meios eficazes de aperfeiçoamento espiritual.
Como bom cristão que sempre tem sido, Você saberá compreender o meu tormento no que tentei explicar acima, e desculpar caridosamente a descortesia e ingratidão, ou seja, a impossibilidade de mudança de resolução deste seu amigo e admirador
Raimundo da Costa Machado
domingo, 29 de agosto de 2021
A MORTE DO CÃOZINHO
Fonte: Google |
A MORTE DO CÃOZINHO
Elmar Carvalho
Sob a roda do carro
o cãozinho teve seu
movimento
violentamente congelado
com seus dentes expostos
e seus olhos saltados
na perplexidade da morte
inesperada
com sua cauda projetada
como ponto de exclamação.
Suas vísceras eram pontos
de
interrogação espalhados no
asfalto.
Na morte do cachorrinho
eu vi a vida esvaída
no seu gesto perdulário.
sábado, 28 de agosto de 2021
Crônica para Nildomar
Crônica para Nildomar
Humberto
Guimarães (*)
Foi por volta de um pouco mais de
duas décadas, o que significa no século passado, que eu o conheci – sem saber
da sua identidade, do seu perfil físico, do seu semblante, da sua sombra; sabia
apenas isto: que era um ente humano no sentido maior da raridade do que deveria
ser frequente nos indivíduos do reino animália que falam, que pensam e que
odeiam ser chamados de primatas, embora sendo; era o benfeitor invisível de
alguém que necessitava de tratamento especializado para o estado combalido da
saúde. A consulta era paga, a medicação era cara, tinha que ser mesmo a melhor,
e o que é melhor é caro. Foi um tratamento demorado e custoso.
Um certo dia, anos à frente,
começo de século novo, o já ex-cliente procurou-me, disse que queria fazer-me
um pedido: queria meu voto. Eu ri, perguntei-lhe se ele iria candidatar-se a
vereador, respondeu que não era para ele, era para o Dr. Nildomar da Silveira
Soares, que se inscrevera na vaga do Dr. Gerardo Vasconcelos. Era o ano dois
mil. Eu fui à APL conferir, tomei conhecimento, não tive dúvida, votei.
Eleito, Nildomar tomou posse da
titularidade da cadeira 22 no dia 27 de setembro do ano 2000, tornamo-nos
amigos, conversamos bastante quando das reuniões aos sábados, falamos um pouco
das nossas biografias, eu lhe disse ter estudado no Ginásio Leão XIII, turma de
1960 a 1964, ele disse ah, então foste colega do meu cunhado Pedro. Sim, fui,
ele era um cara engraçado, contador de piadas e gostava muito de rir; uma
companhia agradabilíssima, ninguém ficava de cara fechada em sua presença. O
que é feito dele? Ele já morreu, coitado, ainda muito novo – e disse da
enfermidade e onde foi que o Pedro morreu.
E foi assim que conheci o
desembargador Nildomar da Silveira Soares, um homem de estatura brevilínea,
cabeça braquicéfala, semblante aberto pela satisfação de viver; simples, jamais
simplório; humilde na aparência, econômico nas palavras, emitindo mensagens com
boa síntese do pensamento; não recuava de tarefas que requeriam minuciosas
pesquisas em alfarrábios. Jamais o vi antepor uma dificuldade, mesmo tendo seus
quefazeres no tribunal – e surpreendia pela perfeição do trabalho, fosse um
parecer jurídico, fosse uma realização enciclopédica, o que fosse; fazia-o com
a mesma singela grandeza. Nunca lhe vislumbrei ares de vaidade ou lordóticas
poses – nem no discurso, nem no gesto; e o seu silêncio à mesa das reuniões,
entretanto, surpreendia pela tenacidade da atenção de começo a fim, sem o
pestanejo do famoso cochilo acadêmico, sendo ele um verdadeiro acadêmico.
Conviveu conosco desde o dia da posse até… 22 de agosto de 2021, e deixou a
lembrança e os sinais de sua passagem na história desta casa.
Do que mais gostei no seu
discurso de posse, foi da defesa da língua portuguesa, que está a cada dia
sendo estuprada por uma enxurrada de palavras-clichês, locuções,
lugares-comuns, estereótipos, maneirismos, corruptelas ou gírias estrangeiras.
Não se trata de xenofobia; o problema é que chegam, assumem o lugar da nossa e
permanecem absolutas com a maior cara-de-pau: aí estão as lives que
escorraçaram as palestras, aulas ou conferências; as deliverys ou deliveres
(que lembram a délivrace francesa dirigida à expulsão da placenta e anexos após
o parto propriamente dito, e a livrança portuguesa do livrar-se ou ver-se
livre) que expulsaram as entregas em domicílio; os drive thrus americanos
(corruptela ou malformação da palavra throug)ou drive-ins aplicada na Europa
estendendo o sentido para outros serviços além das comidas recebidas através do
carro e por aí vai, enquanto as nossas se atrofiam e desaparecem por falta de
uso. Estas coisas lembram-me as abelhas italianas e as africanas que invadiram
a nossa flora, mataram as nossas abelhas nativas e se impuseram com rainha,
zangão e tudo.
Nildomar, naquele discurso,
reavivou a batalha inacabada do professor A.Tito Filho, e foi depois dele que
eu mandei fazer um quadro grande com o soneto de Olavo Bilac, Língua
Portuguesa, que doei à nossa Academia.
Mas, voltando ao ex-paciente que
me apareceu para pedir voto para Nildomar, na eleição acadêmica, citado no
começo destas linhas: “Você é amigo dele?” – perguntei. “Sou, doutor, ele é que
pagou meu tratamento”.
Era este o Nildomar da Silveira
Soares que admirávamos e que acabamos de perder!
________
(*) Psiquiatra e membro da
Academia Piauiense de Letras, onde ocupa a Cadeira 7.
sexta-feira, 27 de agosto de 2021
UM DESESTRESSANTE ATO DE VANDALISMO
Fonte: Google |
UM DESESTRESSANTE ATO DE VANDALISMO
Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)
Já à vontade, Sandoval me falou
sobre os episódios com os quais interagiu, no trânsito teresinense, em uma
tranquila tarde de sábado, entre dezesseis e dezoito horas, quando saía de casa
para assistir à tradicional peladinha sabática de velhos amigos – atualmente,
sem resenha, cassada, temporariamente, pela pandemia -, e no retorno, logo depois
do joguinho.
Seguia na via, no sentido leste
oeste quando o primeiro semáforo do percurso se abrira para ele. A quem vinha
em sentido contrário, naquele sinal, não era permitido entrar para a esquerda.
Quer dizer, a algumas pessoas, porque para motoqueiro, como aquele, a regra não
valia. A propósito, é possível que existam, dentre os que trabalham com
aplicativo, quem obedeça à sinalização de trânsito; confessou-me Sandoval,
porém, que, enquanto e, por onde tem transitado, não encontrou um só que
fizesse isso; até parece que são instruídos a arrepiá-la. O sujeito querendo
cruzar a via, perpendicularmente, a fim de entrar na outra avenida, cometeu o
acinte de sinalizar querendo avisá-lo de que sua intenção era cometer a irregular
conversão antes que Sandoval ultrapassasse, corretamente, o sinal. Como não
estava disposto a contribuir com tão irresponsável ato, piscou, alertando-o de que
não iria permitir que fizesse o que estava imaginando: ele iria, como fez,
completar seu deslocamento aproveitando o sinal aberto; do mesmo modo que o
motoqueiro, também estava com pressa. Por que o bonito não procurava o primeiro
retorno que lhe permitisse voltar e fazer a conversão correta? Após cruzar o
semáforo, viu que o teimoso, esquivando-se de um ou outro veículo,
ziguezagueando, fumaçando, correndo o risco de provocar perigoso acidente,
conseguiu seu intento: furou o sinal, invadiu as pistas contrárias e migrou
para a via na qual desejava prosseguir, sem nem olhar para trás. Afirmar-me-ia
Sandoval que até torcera para que a figura levasse um bom tombo e se arranhasse
um bocado; como o desejo não foi tão sincero, pelo menos naquele instante a
queda não aconteceu.
No retorno para casa, um
movimento executado também por um motoqueiro – para ele, motociclista é o que
costuma transitar obedecendo regras de trânsito válidas para todos -, e de
aplicativo – será que não são multados, já que não se preocupam em avançar
sinal vermelho, passar sobre canteiro ou meio-fio, circular entre veículos com
seus bagageiros riscando as latarias de alguns? -, apenas um pouco diferente do
primeiro, mas não menos irresponsável, deixou-o deveras irritado. Aos que pretendiam
continuar na via ou convergir, perpendicularmente, como era o caso de Sandoval,
para a outra, na qual circulava o sujeito, o sinal estava aberto; ainda que
fechado para ele, assim mesmo o apressadinho queria seguir em frente, de modo
que, sem parar, ficou se equilibrando na motocicleta, até que meu velho amigo fez
a conversão desejada; ato contínuo, o indivíduo, em meio a buzinaços e
palavrões, tanto dos que gostariam de fazer o mesmo que Sandoval, quanto dos
que pretendiam continuar na primeira transitando, invadiu o sinal, cruzou as
pistas contrárias, e se mandou com os produtos, certamente, quentes os que
precisavam estar frios, e frios os que deveria entregar quentes, ou não haveria
motivo para tanta pressa. Cria que, também dito motoqueiro, não fora vítima, na
ocasião, de uma educativa e merecida queda. Mas como diz aquele ditado: quem
procura, termina achando; portanto, melhor não abusar da sorte: vai que praga
rogada pegue.
Como a tarde se mostrasse
repleta de péssimos exemplos no trânsito, a mais um Sandoval assistiu; só que,
desse, finda sua paciência, participou, ativamente. Estava a uns três
quilômetros de sua residência; em certo momento, decidiu mudar da pista direita
em que circulavam, muito lentamente, alguns veículos, para a esquerda, na qual
deveria permanecer alguns segundos, tempo suficiente para ultrapassar os modorrentos
companheiros de banda de rodagem, e, talvez, à mesma retornar. Na pista
esquerda, entretanto, um veículo ainda mais lento que os do seu lado, não lhe
permitiu, de imediato, realizar o movimento desejado; tentou avisá-lo do
intento, a princípio, piscando; como não obtivesse sucesso, sutilmente, buzinou,
pedindo passagem. Diante da buzina, a lesma que conduzia o veículo bloqueador,
colocando o braço esquerdo para fora, sugeriu que ele o ultrapassasse pelo lado
errado, o direito, ou continuasse atrás dos colegas tartarugas; o que parecia
impensável àquele cidadão era abandonar sua aconchegante pista. Fez a bobagem,
conseguiu espaço à frente dos velhos companheiros e cruzou o condutor turrão pela
direita; mas, como não tivesse ficado satisfeito com a atitude daquele sujeito,
segundos depois, retornou à pista esquerda, postou-se atrás dele, piscou várias
vezes, buzinou outras tantas, e o cara resistindo; não desistiu, ligou o farol
de luz alta, e como seu veículo era mais alto que o dele, o facho refletiu
intensamente nos seus retrovisores, encandeando-o. O vingativo ato de
vandalismo surtiu efeito e ele sucumbiu: não demorou, mudou para a pista
direita, e Sandoval seguiu adiante, não sem antes colocar o braço esquerdo para
fora e fazer um irônico sinal de positivo com o polegar. Poucos metros depois,
convergia para o logradouro onde residia; naquele momento, já inteiramente desestressado.
Chegou em casa mal havia começado o clássico da rodada do campeonato brasileiro. Não era seu time que jogava, mas o, pelo qual decidiu torcer, ganhou de lavagem do adversário. A resenha que não havia feito, fê-la com a patroa, a quem, alegremente, contou suas aventuras – e da qual levaria as devidas broncas - enquanto dividiam um bom tinto português.
Encontros
Fonte: Google |
Encontros
Sousa Filho
Poeta e escritor
Não creio em sorte, coincidência ou acaso. Também não me peça para dar nome ao que vou relatar. Deixo a cargo do leitor, nomear o que virá adiante, se for do seu interesse, é claro.
Entretanto, devo dizer que encontrei uma pessoa, que conheci por intermédio de um sarau musical, veiculado na na internet e muito comum (não os saraus), onde de bate-pronto, já me apaixonei por aquela talentosíssima voz, que atende pelo belo nome de Ana Adília.
Peço encarecidamente ao leitor que entenda que essa admiração avassaladora pela maravilhosa voz de Ana Adília, a priori ocorreu um dia antes, num sarau virtual, onde essa grande artista “desfilou” com seu talento musical, nos proporcionando, imensa satisfação em ouvi-la.
Penso ser importante ratificar que minha descrença na sorte, coincidência ou acaso, não mensuram esse encontro com tamanho talento musical, que atende pelo nome de Ana Adília.
Além disso , é necessário dizer que quando tive a honra de ver tanto talento no referido sarau, acima mencionado, fui contemplado, no mesmo dia, ouvindo-a novamente, e cantando meu pedidos , Elis e Adoniram, além de outros clássicos ; nada que não estivesse ao alcance da nossa cantora Ana Adília.
Também é importante dizer que até então eu estava abismado com tamanha voz , que não tinha noção que aquela artista de rosto lindo(com o devido respeito) era aquela aquele mesmo rosto angelical e talentoso que eu tive a honra de encontrar naquele sarau poético, que aconteceu na noite anterior, onde aquela bela e talentosa moça, me tornou refém do seu talento.
Portanto, não creio em sorte, coincidência ou acaso. Só creio, nesse contexto, no imenso talento de Ana Adília. Alguém que a conheça, diverge?
quinta-feira, 26 de agosto de 2021
DALILÍADA: UM POEMA E SUA HISTÓRIA
Capa feita pelo artista (João de Deus) Netto |
Fonte: Google |
DALILÍADA: UM POEMA E SUA
HISTÓRIA
Cunha e Silva Filho (*)
“Nas águas salobras da História
ainda não se perdeu o sabor do mito e da poesia”.
Alfredo Bosi, O ser e o tempo da
poesia
Na segunda-feira,
dia 23/08/2021, remexendo em velhos guardados, por livre e espontânea vontade
de minha mulher, encontrei o vertente texto do professor, escritor e crítico
literário Cunha e Silva Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira. Este ensaio era
para ser o prefácio do livro ou opúsculo em que seria agasalhado o poema a que
ele se refere. Cheguei a mandar fazer a capa, a contracapa e a programação
visual do livro. Mas depois, por razões de que já não estou lembrado, abandonei
esse projeto. Contudo, o enfadonho e cansativo trabalho “imposto” pela Fátima
não foi em vão, porque encontrei interessantes documentos e textos literários,
que já não via há mais de década, e que por isso mesmo os considerava perdidos. EC
Na obra de um autor, seja ele
poeta, ficcionista, dramaturgo, ou de outra natureza literária ou artística em
geral, há sempre uma certa curiosidade, ou mesmo um desejo insatisfeito por
parte do crítico de procurar penetrar nos mistérios imperscrutáveis que a
criação literária impõe por vezes à exegese. Não por ocaso um respeitado
crítico português, João Gaspar Simões, escreveu há muito tempo uma valiosa obra
com esse título belo e sugestivo: O mistério da poesia.
No conhecido poema “Áporo”, que
faz parte do livro A rosa do povo (1945), do consagrado poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade(1902-1987), exatamente na terceira estrofe, o eu lírico,
entre parênteses, em forma de exclamação, afirma que o “labirinto”, metáfora
utilizada para referir-se aos intrincados caminhos que levam o poeta à
construção final de seu poema, cerca-se do binômio razão e mistério. (1) Estes
dois componentes, em si antagônicos, na realidade se imbricam e constroem a sua
tessitura literária.
Manuel Bandeira (1886-1968),
outro notável poeta brasileiro, reserva para o ato da criação de alguns de seus
poemas um certo halo misterioso, brumoso. No seu utilíssimo ensaio do que eu
chamaria memórias de sua formação e criação literária, o seu famoso Itinerário
de Pasárgada, Bandeira chega a falar de alumbramentos, de poemas passados ao
papel como se fossem guiados por uma fonte mediúnica. (2) Ou seja, a criação
poética estaria, dessa forma, situada entre dois extremos, a razão e o
mistério, tomando os dois vocábulos no sentido em que aparecem no poema
drummondiano “Áporo”. O ato da poiesis faz-se poema na sua fisicidade
tipográfica na medida em que o artista reúne tanto a sua competência linguística
quanto um componente imponderável que, plasmando experiência retórica, memória,
sentimento, transforma isso tudo em peça poética, coadjuvado - e aqui se
encrava o mistério! – por processos criativos que se situam acima da
racionalidade e invadem os arcanos míticos dessa maravilha do espírito humano,
que é a criação poética.
É bem provável que todos os
poetas de superior qualidade artística passem por tais experiências quando se
deparam com o ato da escrita.
Essa mesma experiência propiciada
pelo ato da criação literária, envolvendo razão e mistério, competência e
naturalidade inventiva, me parece ter vivenciado o poeta Elmar Carvalho,
nascido no Piauí, quando se dispôs a passar ao domínio da escrita o belo e
complexo poema “Dalilíada.” Muitas vezes, um ou dois poemas são suficientes
para se aquilatar a dimensão superior de um poeta.
“Dalilíada” faz parte do conjunto
de poemas reunidos no livro Rosa dos ventos gerais”, (3) e aparece na seção
“Cancioneiros dos Ventos Gerais”, a última de quatro que compõem o livro. As
outras três são: “Cancioneiro do Ar”, “Cancioneiro do Fogo” e “Cancioneiro da
Terra e da Água”.
Por ser, por feliz coincidência,
amigo e leitor crítico da poesia de Elmar, disponho da vantagem de trocas de
profícuas conversas telefônicas ou mesmo por correspondência com ele sobre
questões literárias e sobretudo – porque isso sempre me interessou
profundamente -, acerca de temas da criação literária. Dessa forma, vim a saber
como Elmar chegou ao poema “Dalilíada”. Agora me lembro de uma situação semelhante
que ocorria entre Amado Alonso e o poeta Pablo Neruda, na qual este último era
insistentemente interpelado pelo primeiro sobre questões de interpretação de
passagens mais complicadas da poesia de Neruda e que desafiavam a argúcia
daquele crítico, conforme sobre o caso comentou recentemente o ensaísta e
professor piauiense M. Paulo Nunes (4) em artigo publicado no jornal Diário do
Povo.
Revelou-me Elmar Carvalho ter já
há algum tempo um interesse especial pela pintura de Salvador Dali. E mais,
perto de sua residência, em Teresina, conheceu um pintor entusiasta daquele
artista catalão. O pintor possuía um álbum ou dois com obras de Dali. Elmar,
então, fora à casa do pintor, conhecido como Sica, e, se não me engano,
pediu-lhe emprestado o álbum ou os álbuns, que passou a examinar com muito
interesse e curiosidade.
Parece-me também que Elmar
Carvalho tinha já sentido um desejo de trabalhar um poema nos moldes
surrealistas, manifestação poética de que também já havia experimentado em
poemas anteriores, todos incluídos no citado Rosa dos ventos gerais: “No reino
do surreal”(p.52); “Realidade fantástica” (p.76); “Em transe” (p.70; “(Ir)
real”(p.79).
Mais de um crítico, inclusive o
autor desta introdução, já aludiu à disposição de Elmar para a pesquisa e o experimentalismo
no domínio da poesia. que se explica em parte pela cronologia de sua
participação como jovem poeta da geração dos anos 70, denominada geração
mimeógrafo, e em parte pela sua real inclinação reavaliadora da práxis poética.
Em 1990, quando o conheci em Amarante, município do Piauí, me dei conta do
valor e seriedade de seus processos de produção poética, reconhecendo nele e em
outros poetas de sua geração, um viés subversivo e inovador de fazer poesia.
(5)
“Dalilíada”, por conseguinte, é o
resultado dessa vocação poética para um salto de qualidade que não concede, uma
única vez sequer, - postura intelectual que o engrandece - , lugar às
facilidades anacrônicas e a experimentalismos inconsistentes. “Dalilíada
poderia ser uma concessão à aventura irresponsável no terreno poético? Não,
nunca. Tanto assim é verdade que o poema, longo poema de 40 estrofes, em nosso
juízo, parece ser, me arrisco a dizer, na sua espécie, uma peça ímpar, na
lírica brasileira, a se aproveitar da simbiose entre arte da palavra, arte
particularmente significante em se tratando de poesia, e arte pictórica.
Uma palavra sobre o título O
vocábulo “Dalilíada” é formado da aglutinação de Dali, último sobrenome do
pintor, pelo qual frequentemente é chamado, com a exclusão até do sobrenome
Salvador, com o famoso nome da epopeia grega de Homero, a Ilíada, que, segundo
esclarece Hênio Tavares, corresponde à “forma portuguesa do grego ‘Iliás’,
vindo do latim ‘Ilíada’, significando ‘a respeito de Ilion’, que era o nome de
uma cidade da Ásia Menor.” (6) Esta circunstância me permite facilmente
estabelecer uma explicação no que respeita ao título do poema de Elmar, i.e., o
poema procura, antes de tudo, render um tributo ao conhecido pintor e escultor
Salvador Dali.
Esta explicação, entretanto, por
si só, demonstra um traço estilístico da poesia de Elmar, uma saudável
inclinação às mudanças e experiências formais, já testadas em composições
poéticas anteriores, conforme por mais de uma vez já ressaltei em estudos sobre
o poeta. (7)
Ao dar, porém, o título
“Dalilíada” ao poema, o autor, entre parênteses, define o gênero que escolheu,
ou seja, um “poema épico”, como ele próprio o classifica. (8) A princípio, me
pareceu inadequada a classificação por ele atribuída ao poema, se for levada em
conta a forma canônica do gênero literário em causa. Todavia, se considerarmos
a grandeza das imagens e das ideias convergindo para a exaltação do objetivo
temático da peça poética - a figura enigmática e ao mesmo tempo múltipla do
protagonista do poema, Dali e a sua obra - , compreenderemos que a aventura de
uma individualidade pode também representar uma dimensão nacional e mesmo
universal e cósmica, desde que para tanto ela consiga plasmar elementos
díspares da realidade, não só concreta mas tomada na sua abstração e nos seus
arcanos insondáveis. (9)
O esquema estrófico Mencionei
linhas atrás que “Dalilíada” compõe-se de 40 estrofes assimétricas de versos
livres, indicadas por números romanos, variando de 3 versos a 15 versos, assim
distribuídos: 1 estrofe de 15 versos, a 1ª; 1 estrofe de 10 versos, a 2; 6
estrofes de 3 versos, a 3 ª; 11ª, 12ª,28ª e 36ª; 7 estrofes de 4 versos, a 6ª,
7ª, 13ª, 18ª, 19ª, 37ª e 38ª; 11 estrofes de 5 versos, a 4ª, 9ª, 10ª, 22ª, 23ª,
24ª, 25ª, 26ª, 27ª, 30ª e 32ª; 6 estrofes de 6 versos, a 5ª, 14ª, 17ª e 20ª;2
estrofes de 7 versos, a 8ª e a última, a 40ª; 1 estrofe de 8 versos, 2 estrofes
de 9 versos, a 15ª e a 29ª; 2 estrofes de 12 versos, a 33ª e a 39ª.
O poema e sua espacialidade Uma
das peculiaridades marcantes da poesia de Elmar Carvalho são os recursos
buscados na configuração do espaço branco da página, expediente grafemático por
ele empregado em muitos outros poemas que, desde cedo, dele fizeram um poeta
atualizado, com o pé na modernidade e outro na grande tradição poética. Ainda
hoje paga tributo ao Concretismo brasileiro em virtude desse apego à
desintegração do vocábulo, à prática por vezes anti-discursiva e ao uso amplo
da espacialidade como elementos significantes e significativos do discurso
poético. De resto, tal procedimento contamina praticamente toda a poesia
brasileira contemporânea, conforme se pode ver nos seus mais variados poetas.
Na realidade, a tendência de utilizar-se de figurações, desenhos e
aproveitamento do espaço branco da página para fins estéticos de comunicação do
poético remonta à Antiguidade greco-latina, e me parece sem dúvida ter chegado
para ficar.
“Dalilíada”, menos do que em
outros poemas de Elmar, recorre, em dois momentos, a esse recurso de
experimentação espacial, o qual podemos encontrar na estrofe introdutória e na
sua penúltima estrofe. Essas duas estrofes, significativamente, em ludismo
plástico-visual, realizam um jogo de “palavra-puxa-palavra” no qual o epicentro
destaca, numa e noutra daquelas estrofes, a importância dos nomes de Dali e
Gala, a amada do pintor. É interessante aqui constatar-se o poder de
inventividade conseguido pelo poeta ao trabalhar esses dois nomes, quer no
plano interno do poema, quer no da sua significação exógena.
No primeiro caso, vemos o nome de
Dali: “Dali”, “Daqui”, "Dacolá”, “Daquém”, “Dalém”, versos 5 e 6. A
distância que o poema espacialmente mantém na página ressoa iconicamente como a
projetar a figura polêmica do pintor em várias direções e simultaneamente em
todos os lugares intra e extratextualmente.
No segundo caso, temos o nome de
Gala, que, no espaço da página, irrompe, em exclamação, em vocábulos derivados;
“Galamante”, “Galamada”, Galáxia,” “Galáctica, “Galharda”, “Galateia”,
“Gala”(repetida três vezes, “Galante”, “Galardão”, “galáxias”. Na formulação
lúdico-experimental de vocábulos dois se formam por aglutinação: “Galamante” e
“Galamada” e, neste caso, com valor de adjetivo. São formações lexicais,
observe-se, construídas pela intuição do próprio poeta. Os demais vocábulos
fazem parte do léxico português, cuja funcionalidade antes reside na mera
coincidência mórfica com o nome da amada de Dali, Gala. Saliente-se, por outro
lado, que, no caso, esses outros vocábulos reforçam a apóstrofe dirigida à
pessoa de Gala, em forma de amplificação laudatória das virtudes e qualidades
dela, culminando no melódico verso final da estrofe: “... em teu gesto delicado
de mulher”. (10)
Atente-se, finalmente, que o
vocábulo “Galateia”, tão imbuído de acepções mítico-helênicas, ainda reaparece
no 7º verso desmembrado em Gala + teia, o que completa a constelação de semas
gravitando em torno da beleza e delicadeza da musa de Dali.
A explosão vocálica como força
centrípeta do binômio: vida e obra de Dali Uma vez chamei Elmar Carvalho de um
“malabarista do verso, (11) porquanto seu verso em geral resulta de um trabalho
sério de pesquisa da linguagem. Nada nele denuncia gratuidade ou apenas
afetação de procedimentos por ele seguidos na composição de sua obra poética.
Seus recursos rítmicos, melódicos e de retórica lhe traem o empenho de
construtor de imagens e ideias com o sinete da originalidade, ainda que, como
não podia deixar de ser, se aproveitando das lições de grandes mestres da
tradição poética do Ocidente, brasileiros ou estrangeiros, não importa.
Parece-me que esta atitude intelectual é que forjará, de forma permanente, os
autênticos inovadores da poesia de qualquer época.
No poema “Dalilíada” essa
dimensão renovadora se acha patente a todo passo e nele quase chega a ser uma
obsessão o apego às preocupações metapoéticas.
No poema como este que venho
comentando, cuja pretensão de efetivar uma fusão entre o signo linguístico e a
linguagem plástica é mais que evidente, não é preciso grande esforço do leitor
para compreender as dificuldades enfrentadas pelo poeta durante o processo de
elaboração do poema e sua consequente realização escrita.
Sabemos que desde, pelo menos, os
parnasianos, existiu o interesse entre os poetas de concretizar uma poesia onde
a linguagem do verso pudesse se harmonizar à imagem plástica, donde resultasse
uma poesia aproximada às formas sólidas e marmóreas, de efeito táctil. Nesse
ponto, assumiram relevância especial o valor e a função desempenhados pelas
vogais e consoantes, às quais se atribuiriam “sons, cores e sentimentos”. (12)
Da mesma sorte, no Simbolismo
houve constantemente uma aproximação entre este estilo literário e a música,
consoante nos lembra a advertência verlaineana: “De la musique avant tout
chose...” Igualmente, ficaram famosas as “correspondences” que aparecem no
soneto “Voyalles”, de Rimbaud, destinando a cada vogal uma cor correspondente:
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu”. (13)
No mesmo sentido de
correspondência entre os sons das palavras e os elementos naturais, poder-se-ia
incluir o esforço despendido no soneto de Baudelaire, “Correspondences”, no
qual “Les parfums, les couleurs et les sons se répetent”. (14) Na mesma esteira
dessas correspondências existentes no soneto acima-mencionado de Baudelaire,
tivemos o que se chama “instrumentação-verbal”, quer dizer, haveria
correspondências sinestésicas entre as vogais e as cores, entre os
instrumentos, os sons e certas sensações Essa “instrumentação-verbal”
representaria, segundo George Lote, uma correspondência entre as vogais a, e,
i, o, u, e, respectivamente, um órgão musical, uma cor e um sentimento. (15)
Ao longo de “Dalilíada”
evidenciou-se um dado fônico-visual-semântico nos versos constitutivos do poema
que instauram uma tensão entre a sua significação como objeto verbal e sua
realidade histórico-social. Esse dado seria simbolizado pela altíssima
ocorrência da vogal extrema anterior fechada “i”, observável estrategicamente a
partir do locus interno do poema, i.e., em vocábulos que começam
significativamente pelo próprio nome de Dali, onde a vogal tônica recai no
próprio “i” final. Estou a me lembrar aqui, mutatis mutandis, da grande
incidência de vocábulos referentes à cor branca na poesia do simbolista
brasileiro Cruz Sousa (1861-1898).
Só para exemplificar, vejamos, na
primeira estrofe do poema, a elevada taxa de incidência dessa vogal anterior,
extrema, fechada nos vocábulos onde ela comparece (a vogal, ou o fonema
aproximado, está em negrito):
1º verso: bigode,
surreal
2º verso: chifre, aguilhão
3º verso: Dali, toureiro
4º verso: toureia, consigo
5º verso: Dali, Daqui
6º verso: Daquém, dalém
7º verso: de, arte
8º verso: de, arte
9º verso: de, ante,
maviosa
10º º verso: onde, arde,
tarde
11º verso: noite, dia,
surreal
12º verso: feita, de,
e
13º verso: de, cores,
(b)errantes
14º verso: e, de,
pusilânime
15º verso: Cores, cambiantes
Como vemos, só nesta estrofe, a
referida vogal e bem assim a semivogal que dela se aproxima foneticamente em
ditongos decrescentes e nas formas verbais terminadas em som nasal, estão
presentes 41 vezes! Note-se ainda que levei em conta igualmente as vogais
reduzidas assinaladas na escrita com a letra “e”, mas, na pronúncia nordestina
piauiense (o autor do poema, como sabemos, é piauiense), é equivalente a um “i”
reduzido inicial, medial ou final.
Em todo o poema essa ocorrência
me permite concluir pelo valor de natureza cratílica assumido pela vogal “i”
associada ao tema desenvolvido no poema, cujo epicentro de atração, no plano de
sua semântico, se apoia na figura de Dali e de sua obra.
O intertexto em “Dalilíada” No
poema o intertexto reveste dois aspectos, quer dizer, como prática alusiva
através da apropriação de uma vanguarda datada, sem embargo de seus reflexos
ainda sentidos na poesia contemporânea e como recurso de intertextualidade
exóliterária (16), ao procurar um fazer poético recorrendo a elementos fora da
área propriamente poética, ou seja, na biografia e na pintura de Salvador Dali.
O crítico inglês, (17) I. A.
Richards (1893-1979) uma vez afirmou que um traço no futuro da poesia seria o
amplo recurso das alusões, o que, na realidade, já está acontecendo em nossos
dias, Cada vez mais, estamos lendo uma poesia na qual existe mesmo uma certa
dificuldade de se poder delimitar as fronteiras fugidias do componente alusivo
e da contribuição pessoal, gerando, dessa forma, uma espécie de aparente crise
de originalidade.
Em “Dalilíada” pode-se reconhece,
em grau elevado, um desfilar de referências provindas de fontes
histórico-literário-culturais, afora a apropriação de recursos formais
imagísticos e de procedimentos tomados à poesia surrealista. Por sinal, na
estrofe inicial do poema, 12º verso, há até mesmo a nomeação do próprio
vocábulo “surreal”. (18)
Nos versos do poema se
entrecruzam referências intertextuais variadas, remetendo à figura de Picasso,
à mitologia greco-latina, a ecos drummondianos, a ecos bandeirianos, ao
sintomático nome do surrealista Paul Éluard, ao pintor renascentista Rafael, ao
Cristianismo, e sobretudo à própria textualidade do poema, esta, sim,
contaminada, em toda a sua inteireza, pela realidade magnetizada e fantástica
provocada pela obra ímpar de Dali.
Considerações finais Os
comentários aqui aflorados se direcionam mais a apontar algumas vias analíticas
de interpretação suscitadas pela leitura desse vigoroso e bem articulado poema,
talvez, como assinalamos antes, um trabalho pioneiro na lírica brasileira.
Elmar Carvalho, admirador antigo
de Dali, um dia resolve, em mais um exercício de malabarismo poético, após
cuidadosa pesquisa e amadurecimento sobre a visão que lhe passou Dali no campo
da pintura, empreender, guiado pela intuição e debruçado sobre um ou dois
álbuns com quadros do pintor catalão, escrever essa “epopeia moderna” como
resposta à inspiração, em parte brotada do inconsciente surrealista mimético
(de repente, delineou-se-lhe na cabeça o poema quase pronto, me confessou o
autor), em parte ditada pela competência literária de prestar este merecido
tributo à memória do grande e polêmico artista, que foi Salvador Dali.
NOTAS:
1 Ao escrever esta breve
introdução, preliminarmente, serviu-me de inspiração a engenhosa análise sobre
a poesia de Carlos Drummond de Andrade feita por Rosemary Arroyo, em estudo
acerca da prática da tradução literária no domínio do inglês, no caso
específico, a poesia. Ver ARROYO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na
prática. 4. ed. São Paulo: Ática. Coleção Princípios, 2002.
2 BANDEIRA, Manuel. O itinerário
de Pasárgada. In: ____. Poesia completa e prosa. Vol. único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1986, p. 32-102.
3 CARVALHO, Elmar. Rosa dos
ventos gerais. 2ed. Rev. Aumentada e melhorada, com fortuna crítica. Teresina:
SEGRAJUS, 2002, P. 173-181.
4 Ver NUNES, M. Paulo. A lição
poética de Neruda. Diário do Povo. Teresina, Pi., 29/07/2004.
5 Ver o meu artigo “A consciência
poética atualizada”, publicado primeiro no jornal Diário do Povo. Teresina,
Pi., 13/01/95, em seguida, incluído como posfácio para a primeira edição de A
rosa dos ventos gerais. Teresina: Editora Gráfica, 1996 e, finalmente, incluído
também em Rosa dos ventos gerais. 2. ed., op. Cit.
6 TAVARES, Hênio. Teoria
literária. 8. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1984. p. 241.
7 Ver um outro estudo de minha
autoria, “Elmar Carvalho: um malabarista do verso”, originalmente publicado no
Caderno de Teresina, Ano X, nº 23, agosto de 1996, e, posteriormente, também
incluído na 2ª ed. de Rosa dos ventos gerais, na qual ainda está incluído, como
introdução, meu ensaio sobre o poeta , “Encontro, poesia e vida.”
8 CARVALHO, Elmar. Rosa dos
ventos gerais. 2. ed. Op. cit., p. 173.
9 MENDONÇA TELES, Gilberto.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes,
1973, p. 122-125, e p. 126-160.
10 CARVALHO, Elmar. Op. cit., p.
181.
11 Cf. minha nota 7 supra.
12 WEY, Válter. Língua
portuguesa. 3ª série, curso colegial. São Paulo; Editora do Brasil, 1963, p.
158.
13 MOISÉS, Massaud. O simbolismo
(1893-1902). Vol. IV. São Paulo: Cultrix, 1966, p.41.
14 Idem, p. 37.
15 Ibidem, p. 39-40.
16 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel
de. Teoria da literatura. 6.ed. ver., vol. I. Coimbra: Livraria Acadêmica, p.
1984, p. 629.
17 RIACHARDS, I.A. Princípios de
crítica literária. Porto Alegre: Globo, 1967, p. 181-185.
18 Carvalho, Elmar. Op. cit., p.
173.
Rio de Janeiro, 29 de agosto de
2004
(*) Cunha e Silva Filho é mestre
e doutor em Literatura Brasileira, professor universitário no Rio de Janeiro e
tem vários livros e artigos publicados.
terça-feira, 24 de agosto de 2021
Cacá 70
Professora Amália do Espírito Santo Campos |
Cacá 70
Carlos Rubem
A professora Amália do Espírito Santo Campos, 97 anos, minha tia materna, curte a vida na paz do alto da sua lucidez e sensibilidade.
Após as abluções matinais, recolhe-se para rezar. Em suas orações, dentre outras pessoas, sempre suplica pela proteção do seu amigo João Cláudio Moreno, humorista e cantor. Diz que o JCM lembra muito o jeito histriônico do seu irmão Gerson Campos (1934 - 1973).
Em seguida, conduzida na sua cadeira de roda, toma seu café na maior tranquilidade. Assiste certo programa religioso na TV Rede Vida. Lá pelas 10h, se dirige à sua biblioteca onde ler livros e revistas, escreve cartas, cartões e bilhetes para gente do seu ciclo de amizade.
Maria do Carmo Ferreira de Carvalho, conhecida por Cacá, solteira, celebrou os seus 70 anos, no dia 21.07.2021. Com a morte de sua genitora, Dona Alina Ferraz, inesquecível dama, Cacá tem a tia Amália como sua mãe afetiva. Aliás, esta era contemporânea de Dona Alina na Escola Normal de Teresina, nos idos de quarenta. Amizade cultivada vida inteira. Pela passagem daquela data, a tia Amália mandou um presente para Cacá acompanhado de uma corbelha de flores.
A casa da Cacá é vizinha a do Sr. Oliveira Sinimbuh, falecido, pai de 08 filhos, dentre eles, a Ceicinha, viúva, residente em Fortaleza. No seu jardim há pés de bugarim, que brotam flores perfumosas. Aroma delicado, agradável.
Ao ensejo daquela efeméride, a Ceicinha Sinimbuh compôs um poema dedicado a Cacá, intitulado “Flor de bugarim”, um madrigal invocador de boas lembranças.
Recentemente, a Cacá disponibilizou a tia Amália uma cópia daquela poesia. Como forma de agradecimento pela atenção que lhe fora dispensada, a tia Amália escreveu, hoje (23.08.2021), uma carta à Cacá, na qual, com seu traço ora trêmulo — se sente encabulada por isso —, ressalta que “Também eu, Amália Campos, colega que fui de sua mãe Alina, participava do sentir do perfume do bugarim do seu jardim. Parabéns Cacá e por favor agradeça a Ceicinha Sinimbuh, poetisa, a sua poesia Cacá 70.”
segunda-feira, 23 de agosto de 2021
domingo, 22 de agosto de 2021
Seleta Piauiense - Antônio Chaves
Fonte: Google/WordPress.com |
Olhos
Ao
Dr. Clodoaldo Freitas
Antônio Chaves
Olhos tristes, fatais, em cuja
soledade
A ampla noite do Tédio abre as
asas de treva
E escuta as orações que aos
espaços eleva
A mística visão de uma enorme
saudade...
Olhos da cor do mal! Na vossa
imensidade,
Mais escura, talvez, do que a
noite primeva,
Anda um raio do amor que abriu os
olhos de Eva
Para a luz, para a vida e para a
liberdade...
Olhos sentimentais, negros olhos orgíacos,
Em cujos ermos se ouve a voz
desfalecida
De uma lira pagã em cantos elegíacos...
Olhos, por que dos meus fugis com
tanto medo,
Retendo, sem cessar, na lágrima
escondida,
Tão profundo mistério e tão
grande segredo? (*)
(*) No livro Nebulosas, Coleção
Centenário, APL, 2ª edição, 2013, o último terceto consta da seguinte forma:
Olhos, porque dos meus fugis com
tanto medo,
Retendo, sem cessar, na lágrima
escondida,
Tão profundo mistério e tão
grande segredo.
sábado, 21 de agosto de 2021
Leituras Compartilhadas da Avenida Frei Serafim em Crônica e Memória
sexta-feira, 20 de agosto de 2021
Alcenor – senhor e pastor de palavras
Alcenor em charge de Fernando di Castro |
Alcenor – senhor e pastor de palavras
Elmar Carvalho
Alcenor Rodrigues Candeira Filho. Poeta. Crítico e
historiador literário. Ensaísta. Conferencista. Advogado. Procurador Federal,
lotado no INSS. Agente da Previdência Social em Parnaíba, há quase dez anos.
Professor da Unidade Escolar Alcenor Candeira (O Cobrão) e da Universidade
Federal do Piauí – Campus Ministro Reis Velloso, ministrando, entre outras, as
disciplinas Português, Literatura Brasileira e Direito Administrativo. Casado
com Simone, com quem teve os filhos Dina, Diana e David. Nasceu em Parnaíba, em
10.02.1947.
Colaborador de vários jornais e revistas do Piauí, entre os
quais: Inovação, Norte do Piauí, A Libertação, Presença e Almanaque da
Parnaíba. Participou das seguintes obras coletivas: Poetas do Brasil, Aviso
Prévio, Salada Seleta, Poemágico, Poemarít(i)mos e Andarilhos da Palavra II.
Autor dos seguintes livros (publicados): Sombras entre Ruínas, Rosas e Pedras,
Das Formas de Influência na Criação Poética, A Insônia da Cidade e Aspectos da
Literatura Piauiense.
Sendo o poeta a antena da raça, no dizer de notável
versejador, ou profeta dos nossos dias, como já sustentei em palestra na cidade
de Luzilândia, cabe-lhe a tarefa de chamar a atenção, através de linguagem
artisticamente elaborada, para as mazelas e injustiças, que nos assolam a todos,
e para os grandes sentimentos e temáticas, sem os quais a vida seria insípida e
incolor.
Nesse aspecto, Alcenor cumpre bem a sua missão/função de
poeta, ao assenhorear-se de todos os temas. Porque ser vate – além e aquém de
todos os vaticínios e premonições – é cantar a vida, e a vida é a miragem e a
paisagem, as rosas e as pedras, as sombras entre ruínas, o amor e os
desencontros, a insônia da cidade, a amizade, os problemas sociais, e todos os
demais assuntos que a sua poesia aborda, com arte, emoção e muita pertinência.
De sorte que o nosso poeta é senhor de temas, e os molda, qual barro na mão do
oleiro, ao sabor de suas idiossincrasias e preferências artísticas.
Várias são as teorias sobre o tempo. A do tempo que flui do
passado para o futuro; a que do que corre do futuro para o passado; a do tempo
circular, sempre a se repetir, e que não remonta a Nietzsche, em seu eterno
retorno, mas a Eudemo, na Grécia de três séculos antes de Cristo. Todavia, em
qualquer dessas hipóteses, que não cabe aqui aprofundar, o passado está sempre
presente, sempre forte e poderoso – tanto quanto ou até mais que o presente e o
futuro. O presente ao tempo em que ocorre se exaure, encerrando-se, como uma
concha, em si mesmo, enquanto o futuro não aconteceu, e ao acontecer já não é
futuro e sim presente.
Pois Alcenor, ao afastar-se de preconceitos relativos a
época, é também senhor do tempo, e não escravo. O poeta deve transitar
livremente no tempo e no espaço, e mergulhar em todas as temáticas, matemáticas
e mágicas por um sincretismo (eu diria ecletismo, porquanto absorve e
aperfeiçoa o que de melhor existe nas várias correntes e escolas literárias),
em que versos neoclássicos convivem, sem nenhuma segregação, harmonicamente,
com versos simbolistas, concretistas, modernistas, experimentalistas.
E Alcenor o faz muito bem, graças ao talento de uma vocação
poética amalgamada sem as imperfeições da pressa, que não raras vezes acarreta
a primazia da quantidade sobre a qualidade, e temperada com o seu profundo
conhecimento de teoria literária, já que por força de sua profissão de
professor de literatura é um devorador de críticas e ensaios literários.
Ousaria dizer que o nosso vate é um experimentalista, a circular com
desenvoltura do passado para o futuro, e vice-versa, e em todas as direções
espaciais e temáticas. Considerei o futuro porque o timbre forte de sua
individualidade transparece nitidamente em seus poemas, como uma impressão
digital inimitável de sua alma, que lhe assegurará a permanência no tempo.
O poeta em tela, conforme frisei anteriormente, discorre
sobre todos os temas, com originalidade, competência e arte. Denuncia as
injustiças sociais, sem ser panfletário; canta o amor, sem pieguice; exalta a
paisagem, em seu telurismo de homem de seu tempo e de seu meio, sem ser
meramente descritivo; poeta sobre paixão e sexo, sem vulgaridades e sem
mau-gosto. Isso porque o autor de A Insônia da Cidade domina seu ofício, e
utiliza com m(a)estria todos os recursos que a linguagem proporciona, através
de metáforas inusitadas, mediante o ritmo com que faz a palavra dançar em seu
poema, por meio de aliterações, coliterações, rimas toantes e consoantes e
outros artifícios com que canta e nos faz (en)cantar. É hábil ao dispor as
palavras na página em branco, desenhando imagens concretas, com que enriquece a
mensagem. Exemplo do que acabamos de afirmar é o poema VITA, em que o poeta diz
o máximo com o mínimo de palavras, numa absoluta concisão em que existem
conectivos, verbos, advérbios, etc., mas que exprime tudo em sua precisão conteudística,
imagética e até (ma)temática:
nasc
ente
cresc
ente
do
ente
po
ente
Ressalte-se, ainda, em nosso poeta a inventividade, finamente
tecida em seus versos, mas que nunca descamba para um cerebralismo hermético e
frio. Ao contrário, sua arte é elaborada com emoção – emoção que nos toma de
assalto – mediante uma linguagem arrebatada, mas ao mesmo tempo contida em sua
depuração estilística.
No poema XIX. Pedra do Sal, pertencente à série Poemas do
Torrão Natal, comprova-se o alto nível da poesia de Alcenor, seu talento, sua
capacidade de síntese, sua inventividade, vasados em linguagem sonora, ritmada
e anti-discursiva, em palavras curtas e essenciais, onde as últimas de cada um
dos versos, de no máximo quatro letras, formam as vogais (a, e, i, o, u). V
Vejamos o poema referido:
Pedra do Sal
porta do céu
porto do cio
pista do sol
no sal azul.
Poderíamos, ainda, fazer várias observações sobre a
construção artesanal, de precisão cirúrgica, do pequeno/grande poema acima
transcrito, mas não o faremos para não retirar do presente trabalho o seu sabor
de crônica de crítica literária, como diria o professor Cunha e Silva Filho,
impingindo-lhe um caráter enfadonho e tecnicista. Deixaremos ao leitor, numa
leitura arguta, artística e astuta, esse mister misterioso de se tornar um
leitor/autor.
Alcenor é um senhor e pastor de palavras, em suas largas
lavras de versos. As palavras são suas escravas, atendem a seu chamado,
ajustam-se a seu lavor poético, e tomam a forma e o discurso que o poeta lhes
exige, com docilidade e harmonia. Mas semelhante ao bom pastor da parábola de
Cristo, Alcenor cuida bem do seu rebanho de palavras, sem permitir que nenhuma
se perca. Todas acodem – rosas pressurosas – ao seu chamado, e se vão abrigar
no redil aglutinador de seus poemas. As palavras são servas que se fazem
senhoras pelo desvelo/zelo do amante poeta/pastor.
A insônia nos contagia. Ao lermos Alcenor – esse mago
domador, senhor e pastor de palavras, em suas larvas de vida, vindima e
vindita, sono, sonho e sombras – o tédio, certamente, não nos afetará. E o
enlevo que sentimos nos elevará a páramos paradisíacos e dionisíacos a que só a
poesia dos grandes rapsodos consegue nos raptar.
As musas e sereias de seus poemas nos chamam, e às flamas flamejantes dessas “veludosas vozes” atenderemos, entre a compulsão e o desejo ardente.