Crônica para Nildomar
Humberto
Guimarães (*)
Foi por volta de um pouco mais de
duas décadas, o que significa no século passado, que eu o conheci – sem saber
da sua identidade, do seu perfil físico, do seu semblante, da sua sombra; sabia
apenas isto: que era um ente humano no sentido maior da raridade do que deveria
ser frequente nos indivíduos do reino animália que falam, que pensam e que
odeiam ser chamados de primatas, embora sendo; era o benfeitor invisível de
alguém que necessitava de tratamento especializado para o estado combalido da
saúde. A consulta era paga, a medicação era cara, tinha que ser mesmo a melhor,
e o que é melhor é caro. Foi um tratamento demorado e custoso.
Um certo dia, anos à frente,
começo de século novo, o já ex-cliente procurou-me, disse que queria fazer-me
um pedido: queria meu voto. Eu ri, perguntei-lhe se ele iria candidatar-se a
vereador, respondeu que não era para ele, era para o Dr. Nildomar da Silveira
Soares, que se inscrevera na vaga do Dr. Gerardo Vasconcelos. Era o ano dois
mil. Eu fui à APL conferir, tomei conhecimento, não tive dúvida, votei.
Eleito, Nildomar tomou posse da
titularidade da cadeira 22 no dia 27 de setembro do ano 2000, tornamo-nos
amigos, conversamos bastante quando das reuniões aos sábados, falamos um pouco
das nossas biografias, eu lhe disse ter estudado no Ginásio Leão XIII, turma de
1960 a 1964, ele disse ah, então foste colega do meu cunhado Pedro. Sim, fui,
ele era um cara engraçado, contador de piadas e gostava muito de rir; uma
companhia agradabilíssima, ninguém ficava de cara fechada em sua presença. O
que é feito dele? Ele já morreu, coitado, ainda muito novo – e disse da
enfermidade e onde foi que o Pedro morreu.
E foi assim que conheci o
desembargador Nildomar da Silveira Soares, um homem de estatura brevilínea,
cabeça braquicéfala, semblante aberto pela satisfação de viver; simples, jamais
simplório; humilde na aparência, econômico nas palavras, emitindo mensagens com
boa síntese do pensamento; não recuava de tarefas que requeriam minuciosas
pesquisas em alfarrábios. Jamais o vi antepor uma dificuldade, mesmo tendo seus
quefazeres no tribunal – e surpreendia pela perfeição do trabalho, fosse um
parecer jurídico, fosse uma realização enciclopédica, o que fosse; fazia-o com
a mesma singela grandeza. Nunca lhe vislumbrei ares de vaidade ou lordóticas
poses – nem no discurso, nem no gesto; e o seu silêncio à mesa das reuniões,
entretanto, surpreendia pela tenacidade da atenção de começo a fim, sem o
pestanejo do famoso cochilo acadêmico, sendo ele um verdadeiro acadêmico.
Conviveu conosco desde o dia da posse até… 22 de agosto de 2021, e deixou a
lembrança e os sinais de sua passagem na história desta casa.
Do que mais gostei no seu
discurso de posse, foi da defesa da língua portuguesa, que está a cada dia
sendo estuprada por uma enxurrada de palavras-clichês, locuções,
lugares-comuns, estereótipos, maneirismos, corruptelas ou gírias estrangeiras.
Não se trata de xenofobia; o problema é que chegam, assumem o lugar da nossa e
permanecem absolutas com a maior cara-de-pau: aí estão as lives que
escorraçaram as palestras, aulas ou conferências; as deliverys ou deliveres
(que lembram a délivrace francesa dirigida à expulsão da placenta e anexos após
o parto propriamente dito, e a livrança portuguesa do livrar-se ou ver-se
livre) que expulsaram as entregas em domicílio; os drive thrus americanos
(corruptela ou malformação da palavra throug)ou drive-ins aplicada na Europa
estendendo o sentido para outros serviços além das comidas recebidas através do
carro e por aí vai, enquanto as nossas se atrofiam e desaparecem por falta de
uso. Estas coisas lembram-me as abelhas italianas e as africanas que invadiram
a nossa flora, mataram as nossas abelhas nativas e se impuseram com rainha,
zangão e tudo.
Nildomar, naquele discurso,
reavivou a batalha inacabada do professor A.Tito Filho, e foi depois dele que
eu mandei fazer um quadro grande com o soneto de Olavo Bilac, Língua
Portuguesa, que doei à nossa Academia.
Mas, voltando ao ex-paciente que
me apareceu para pedir voto para Nildomar, na eleição acadêmica, citado no
começo destas linhas: “Você é amigo dele?” – perguntei. “Sou, doutor, ele é que
pagou meu tratamento”.
Era este o Nildomar da Silveira
Soares que admirávamos e que acabamos de perder!
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(*) Psiquiatra e membro da
Academia Piauiense de Letras, onde ocupa a Cadeira 7.
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